Coutinho não é nome de jogador de futebol!
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São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a 20ª crônica da série: “Coutinho não é nome de jogador de futebol!”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
“Mas o povo, com o seu instinto agudo, sua vidência terrível, reconhece e aponta os jogadores que “comem” a bola, como se a estraçalhassem nos dentes, fazendo esguichar o sangue da redonda.”
Coutinho não é nome de jogador de futebol! (1)
Amigos, o jogo Santos x Vasco, que deu o título ao Santos, comporta vários personagens da semana (2), Antes de mais nada, teríamos a diretoria do clube da Cruz de Malta. E que fez ela, a diretoria do Vasco da Gama, para que assim eu a destaque, em alto relevo? Fez apenas isto: atirou às feras um time de reservas, remeteu o time de reservas para o matadouro do Pacaembu. Qualquer paralelepípedo previra o que, fatalmente, aconteceu. O Santos deu um passeio, um baile, um banho de futebol. Imagino que, a essas horas, nas prateleiras de São Januário, as taças, os troféus inumeráveis hão de estar chocalhando de humilhação. Vamos e venhamos: a Cruz de Malta não merecia tão horroroso vexame. E o velho almirante, o próprio do Caminho das Índias, se vivo fosse, estaria sentado num meio-fio, a chorar lágrimas de esguicho. Glória, pois, ao imortal Barbosa. Debaixo dos três paus, ele foi algo como uma rocha oceânica, como uma bastilha invicta. Amigos, sua velhice não é velhice, mas uma soberba, uma salubérrima eternidade. E o falso velhinho impediu que a goleada fosse mais abundante, mais torrencial.
Mas eu não farei da diretoria cruz-maltina o meu personagem da semana. Não. Repito: o meu personagem da semana há de ser um santista. E penso no ataque. Sim, amigos: o Santos não é como os outros. Qualquer time é um conjunto, que inclui o goleiro, a zaga, os médios e os cinco dianteiros. No Santos, não. No Santos tudo é ataque e só ataque. A defesa pode falhar, o goleiro pode papar frangos homéricos, frangos camonianos. Mas desde que o ataque esteja em estado de graça, de plenitude, não há o que temer. A gente não sabe como se chama o quíper (3), a gente não se lembra como se chama o zagueiro. O que ninguém esquece é a linha, com suas penetrações fulgurantes, suas tramas geniais. Basta dizer o seguinte: o Santos tem um Pelé. Eu sei que Pelé, contra os ingleses, jogou pedrinhas. Mas é Pelé mesmo jogando mal, e vou mais além: Pelé, mesmo em casa, mesmo lendo gibi, já infunde um pânico religioso. E, além do Pelé, o ataque do Santos tem o Coutinho. Lembro-me que ao ouvir falar em Coutinho, pela primeira vez, tomei um susto. Comentei, então, de mim para mim: “Coutinho não é nome de jogador de futebol!” De fato, o nome influi muito para o êxito ou para o infortúnio. Napoleão, se tivesse outro nome, já seria muito menos napoleônico. Outro exemplo: por que é que Domingos da Guia foi o que foi? Porque esse “da Guia” dava-lhe um halo de fidalgo espanhol, italiano, sei lá. Ainda hoje, o sujeito treme quando ouve falar em “da Guia”. Mas o Coutinho tem contra si o nome. O sujeito que se chama apenas Coutinho dá logo a ideia de pai de família, de Aldeia Campista, Vila Isabel, Engenho Novo, com oito filhos nas costas e a simpatia pungente de um barnabé. Pois bem. Apesar de chamar-se liricamente Coutinho, o meu personagem da semana é um monstro, um Drácula, um “Vampiro da Noite” de futebol. Eu não sei se me entendem a imagem. Mas o Coutinho não sugere outra coisa, senão o sujeito que come a bola de uma maneira, por assim dizer, material, física. Ao sair de campo, parece-lhe escorrer dos lábios o sangue, ainda vivo, ainda efervescente da bola recém-vampirizada,
As inteligências simples, bovinas e, atrevo-me mesmo a dizê-lo, vacuns, hão de rosnar: “Literatura!” Parece, amigos, parece! Mas o povo, com o seu instinto agudo, sua vidência terrível, reconhece e aponta os jogadores que “comem” a bola, como se a estraçalhassem nos dentes, fazendo esguichar o sangue da redonda. E se, na verdade, existem os “tarados” da pelota, Pelé ou Coutinho há de ser um deles. Com o doce e inofensivo nome de Coutinho, o meu personagem fez, ontem, contra o Vasco, barbaridades sem conta. A um confrade que veio, de avião, do Pacaembu, eu perguntei: “Que tal o Coutinho?” O colega baixa a voz: “Bárbaro!” Insisti: “E o Pelé?” Resposta: “Bárbaro!” Fui adiante: “E Dorval? Pepe?” A tudo, o sujeito respondia, de olho rútilo: “Bárbaro!” Então, eu me convenci, de vez, que o ataque do Santos se constitui, realmente, de sujeitos que não respeitam e, pelo contrário, brutalizam a bola, e cravam, nela, os seus caninos de vampiro. Só o Coutinho fez, contra a velhice genial e quase imbatível de Barbosa, dois gols. Dizem que, nas bolas altas, ele se tornava elástico, acrobático, alado. O seu salto realmente era um voo.
Guardem esse nome de pai de família e de barnabé: Coutinho. Ou muito me engano ou estará ele no escrete brasileiro que, se Deus quiser, vai ser bicampeão no Mundial do Chile.
Manchete Esportiva, 23/5/1959
(1) Título sugerido pela edição deste livro. A crônica foi publicada originalmente sem título na coluna “Meu personagem da semana”, e fazia referência ao jogador Coutinho. (N.E.)
(2) Torneio Rio-São Paulo, no Pacaembu (17/5/1959). Santos 3 x 0 Vasco. (N.E.)
(3) Forma aportuguesada da palavra inglesa keeper, que significa goleiro.