Tomar ou não tomar o Chicabon?, eis a questão
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São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a 17ª crônica da série: “Tomar ou não tomar o Chicabon?, eis a questão”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
“Até Deus, lá do alto, há de admirar-se e há de concluir: — “Esse Garrincha é o maior!” O “seu” Mané não trata a bola a pontapés como fazem os outros. Não. Ele cultiva a bola, como se fosse uma orquídea rara.”
Tomar ou não tomar o Chicabon?, eis a questão (1)
Amigos, eu podia fazer de Saldanha o meu personagem da semana. É um técnico malicioso, astuto, sutil. Nós sabemos que nem todos os técnicos usam o raciocínio. E Saldanha tem isto de bom: — sabe pensar. Sempre que o Botafogo vence, podemos estar certos de que foi grande, foi considerável a influência de Saldanha no triunfo. Mas, por hoje, o meu personagem da semana é outro. Antecipo suas iniciais: Garrincha. Eu disse que Saldanha pensava. Pois acontece o contrário com Garrincha. Sim, amigos: Garrincha não pensa, nem precisa pensar. Saldanha ou qualquer outro vive do raciocínio. Nós pensamos todos os nossos atos. Não fazemos nada sem um penoso processo mental. Antes de atravessar a rua, ou de chupar um Chicabon, o homem normal é lacerado de dúvidas. Ele estaca diante da carrocinha amarela e, acometido de uma perplexidade hamletiana, pergunta, de si para si: — “Tomo ou não tomo o Chicabon? Talvez seja melhor não tomar o Chicabon. Ou devo tomar?” Em futebol, a mesma coisa. Ao praticar um reles arremesso lateral, o jogador esbanja um tempo precioso ao escolher o companheiro que deve receber a bola. O ser humano pensa demais e é pena, pois a vida é, justamente, uma luta corporal contra o tempo. Repito: — o ser humano vive pouco porque pensa muito. Ora, a máxima característica terrena de Garrincha é a seguinte: — ele não precisa pensar. E, por isso, porque não pensa, posso apontá-lo como a única sanidade mental do Brasil. Por ocasião da Copa do Mundo foi cômico, ou melhor, foi sublime. Tínhamos, na delegação, uma preciosidade, que era o psicólogo, o dr. Carvalhais. No seu primeiro contato com Garrincha, o dr. Carvalhais caiu na mais torva e dolorosa perplexidade. Pela primeira vez, em toda a sua experiência humana e profissional, descobria alguém que jamais usara o raciocínio. Imagino que o preclaro dr. Carvalhais há de ter concluído: — “Esse cara não pode jogar!” Foi preciso que os colegas do “seu” Mané explicassem: — “O Garrincha é assim, mas joga pra burro!” E, de fato, tido como retardado, Garrincha provou, no Campeonato do Mundo, que retardados somos nós, e repito: — nós que pensamos, nós que raciocinamos. Resta perguntar: — se Garrincha não pensa, vive então de quê? Vive do instinto, da prodigiosa e instantânea clarividência do instinto. Enquanto os outros se atrapalham e se confundem de tanto pensar, Garrincha age com rapidez instintiva e incontrolável. Foi assim na Suécia. Ninguém pensa mais do que o europeu. Mas enquanto o sueco, o francês ou o galês pensavam no que faria “seu” Mané, já o brasileiro se tinha disparado como um tiro, já invadira a área inimiga, com uma velocidade superior à do som, da luz. Viu-se, então, que o raciocínio é uma draga, uma carroça diante da agilidade vertiginosa do instinto.
Ainda ontem, Garrincha, no jogo Botafogo x Flamengo (2), foi quem deu melhor nível, melhor qualidade ao jogo. Ao lado do estádio, no Maracanãzinho, exibiam-se, no mesmo instante, com um êxito estrondoso, os acrobatas chineses. Então, eu pensei cá comigo: — por que cargas d’água esses chineses vieram de tão longe se temos aqui, à mão, nas nossas barbas, um “seu” Mané, que é mil vezes mais acrobático? E com uma vantagem a mais para o nosso patrício: — nos rapazes da China o que existe é o esforço, é a técnica, é o virtuosismo, ao passo que Garrincha é puro instinto. Possui uma riqueza instintiva que lhe dá absoluto destaque sobre os demais. Até Deus, lá do alto, há de admirar-se e há de concluir: — “Esse Garrincha é o maior!” O “seu” Mané não trata a bola a pontapés como fazem os outros. Não. Ele cultiva a bola, como se fosse uma orquídea rara. Domingo, ele puxou o Botafogo para a vitória. Ao avançar, ia desintegrando a defesa rubro-negra. O centro que deu para a cabeçada de Paulinho, o centro de Garrincha só faltou falar, tão justo, exato, perfeito, irretocável. Sim, amigos: “seu” Mané ensina-nos que nada é mais lindo do que a velocidade. Ninguém tem, ninguém, a instantaneidade dos seus reflexos! Diante dele, que não pensa, todos nós, que pensamos, somos uns lerdos, uns bovinos, uns hipopótamos. E porque Garrincha não pensa mesmo, eu faço dele, com muita honra, o meu personagem da semana.
Manchete Esportiva, 15/11/1958
(1) Título sugerido pela edição deste livro. A crônica foi publicada originalmente sem título na coluna “Meu personagem da semana” e faz referência ao jogador Garrincha. (N.E.)
(2) Campeonato Carioca, no Maracanã (9/11/1958). Botafogo 3 x 2 Flamengo. (N.E.)