Mário Soares e Lula debatem os 40 anos da Revolução dos Cravos
Em um feriado de sol em Lisboa, com a cidade tomada por manifestações, cartazes e cravos lembrando a retomada da democracia, o debate discutiu a influência que a revolução que acabou com a ditadura em Portugal teve no exterior, com seu impacto sobre a independência dos países africanos.
Mário Soares lembrou sua volta do exílio no início da revolução, vindo da Alemanha e retornando a Portugal, e depois, seu esforço de viajar pela Europa, inclusive ao Vaticano, para explicar a revolução. Ele explicou como a revolução foi feita em reação ao enorme sacrifício dos militares nas guerras coloniais, que depois entregaram o poder aos civis. “É extraordinário ver as manifestações hoje de apoio ao 25 de Abril, 40 anos depois.”
O ex-presidente português apresentou Lula como um “grande amigo de Portugal”. Lula falou sobre os exilados portugueses que viveram no Brasil, como Miguel Urbano Rodrigues, o general Humberto Delgado e o capitão Henrique Galvão.
Lula também lembrou a solidariedade entre exilados portugueses e brasileiros na França, como na livraria aberta por Mário Soares em sociedade com dois brasileiros: José Maria Rabello e Miguel Arraes. Lula também ressaltou o papel de Brizola na solidariedade entre brasileiros e lusitanos na luta pela democracia nos dois lados do Atlântico.
Lula rememorou o impacto da revolução dos Cravos na África, onde as antigas colônias portuguesas ganharam a independência em um desdobramento do retorno da democracia em Portugal.
Lula encerrou pedindo que a juventude continue lutando por um mundo melhor. “O mundo, o novo mundo com o qual sonhamos há gerações, amigo Mário, ainda está por ser feito. É o desafio dessa juventude que tem um passado de que se orgulhar e um imenso futuro a construir.”
Leia abaixo a íntegra do discurso de Lula sobre os 40 anos da Revolução dos Cravos:
Antes de tudo preciso registrar a sempre renovada alegria por estar mais uma vez em Portugal, esse país admirável, o único em que nós, brasileiros, nos sentimos realmente em casa.
Ao caminhar pelas ruas de Lisboa, somos surpreendidos por visões familiares que se sucedem: aqui é a azulejaria maranhense, ali o barroco de Ouro Preto e Mariana, acolá o casario da Lapa carioca e mais adiante as igrejas de Salvador, na Bahia.
Ao prazer de estar de novo na terra dos nossos ancestrais soma-se, desta vez, uma honraria muito especial. Estamos aqui para celebrar os quarenta anos da Revolução dos Cravos, o mais importante acontecimento político de Portugal no Século XX.
No amanhecer de 25 de abril de 1974 os ventos da liberdade escancararam portas e janelas e varreram o país. Despertado pelos acordes de “Grândola, Vila Morena”, naquela manhã de abril o povo português anunciou ao mundo que meio século de tirania tinha chegado ao fim.
Para nós, brasileiros, a notícia da revolução portuguesa chegou como um bálsamo que nos encheu de esperanças. Quando o Movimento das Forças Armadas tomou as ruas de Portugal, já fazia dez anos que o Brasil vivia sob uma implacável ditadura militar.
Olhávamos para Portugal com um misto de saudável inveja e sincera admiração. Sonhávamos com o dia em que voltariam a soprar daqui para lá os ventos que quinhentos anos antes haviam conduzido as caravelas de Pedro Álvares Cabral rumo ao Brasil – desta vez levando à Terra de Santa Cruz o pólen da liberdade.
Quando vocês conquistaram a Liberdade, compreendemos que também nós poderíamos recuperá-la. Aquele ano de 1974 terminou, no Brasil, com a vitória da oposição nas eleições para um terço do Senado. Foi uma pequena brecha aberta na muralha da opressão, que o movimento democrático e popular alargaria pela década seguinte.
A Revolução dos Cravos tocou de tal forma a alma brasileira, que o grande compositor Chico Buarque de Holanda, numa parceria com o moçambicano Ruy Guerra, conseguiu irritar duplamente a ditadura militar, na canção Fado Tropical.
Os censores já viam a música com suspeição, por causa do verso que dizia:
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
Depois do 25 de abril, o rancor aumentou ainda mais, por que outro verso da canção ganhou um novo e libertário sentido:
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal,
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal.
Os censores não tiveram outra saída senão recolher os discos e inutilizar com estilete, em cada um deles, a faixa com a canção subversiva.
A Revolução dos Cravos estreitaria ainda mais os seculares laços entre portugueses e brasileiros. Da noite para o dia passaram a chegar a Lisboa centenas de exilados brasileiros que haviam se dispersado pelo planeta em uma diáspora fragmentada por vários países.
Muitos dos meus compatriotas que aqui aportaram haviam sobrevivido, seis meses antes, ao cruel golpe militar chefiado pelo general Augusto Pinochet que pôs fim ao governo constitucional do presidente Salvador Allende. Eram exilados de duas ditaduras latino-americanas,
A generosidade com que aqueles brasileiros foram recebidos por vocês, portugueses, robustecia o velho cimento da solidariedade que nunca deixou de existir entre os dois povos – a despeito das divergências políticas que pudessem separar os respectivos governos.
Foi assim nos intermináveis 48 anos do salazarismo, quando o Brasil abriu suas portas e recebeu como filhos as dezenas de vítimas de perseguições políticas em Portugal.
Poetas, dramaturgos, artistas plásticos e ativistas políticos silenciados por aquele regime deitaram raízes no Brasil.
Não é preciso puxar muito pela memória para recordar alguns personagens. Miguel Urbano Rodrigues, mesmo sendo um intransigente militante do Partido Comunista Português, viveu durante décadas no Brasil como editorialista do jornal O Estado de São Paulo.
Assim como ele, socialistas de diversos matizes e anti-salazaristas de incontáveis tendências ocupavam cátedras universitárias, editavam jornais e livros na pátria de adoção.
Mas não foram apenas artistas e intelectuais perseguidos que buscaram refúgio entre nós. Seria injusto omitir aqui os nomes de dois militares que não viveram o suficiente para ver a bandeira da liberdade tremulando em mastros lusitanos.
O primeiro deles é uma figura de quem o nosso Mário Soares deve guardar as melhores lembranças. Refiro-me ao general Humberto Delgado, postumamente promovido ao posto de Marechal da Força Aérea, e cujos restos mortais encontram-se hoje depositados no Panteão Nacional.
O segundo é o capitão Henrique Galvão, personagem quixotesco que em 1961 capturou em alto mar o transatlântico “Santa Maria”, e que terminaria seus dias em 1970, exilado em São Paulo.
O golpe militar de 1964 fechou as portas do Brasil o para os refugiados portugueses, mas nem essa fatalidade foi capaz de separar os que lutavam pela democracia dos dois lados do oceano.
As duas ditaduras e a inefável mão do destino se encarregariam de juntar na capital francesa três grandes personalidades da nossa política. A primeira delas é o nosso anfitrião de hoje, Mário Soares. Exilado na França, Mário montou em Paris a pequenina Livraria Portuguesa, ponto de encontro permanente da comunidade anti-salazarista lá residente.
Logo se juntariam a ele os brasileiros Miguel Arraes, ex e futuro governador de Pernambuco, e José Maria Rabelo, jornalista mineiro que em menos de dez anos enfrentara golpes de estado no Brasil, na Bolívia e no Chile.
Rebatizada com o nome de Livraria Portuguesa e Brasileira, a portinha do número 12 da rua das Escolas, em Paris, passaria a ser também o ponto de convergência dos exilados brasileiros.
Completo essa lista pessoal lembrando dois companheiros que se encontram no topo da fraternidade luso-brasileira: Álvaro Cunhal e Leonel Brizola.
Tivemos divergências, meu amigo Mário, com um e com outro. Mas aprendemos a respeitá-los por suas grandes qualidades: a coerência política e a coragem com que se dedicaram à causa da liberdade e do socialismo.
Recordo essas trajetórias pessoais como parte de um processo mais amplo da História. É o processo que nos leva adiante, sempre, na busca de um mundo mais justo e de uma humanidade cada vez mais fraterna.
Meus amigos, minhas amigas,
Afortunadamente, a revolução que vocês fizeram era grande demais para se encerrar em si mesma. O poder irradiador da liberdade conquistada em Lisboa logo chegaria a outras plagas.
O ano de 1974 ainda não havia terminado quando você, Mário, já na condição de Ministro dos Negócios Estrangeiros, assinou os Acordos de Argel com o comandante Pedro Pires, pelos quais o Portugal reconhecia a República da Guiné-Bissau como estado soberano.
Era o início do processo que levaria as antigas colônias africanas a conquistar a independência.
A soberania das antigas colônias foi um desdobramento da revolução que teria consequências diretas no futuro do Brasil.
A partir das relações diplomáticas e culturais com os países lusófonos do continente africano, fomos descobrindo aos poucos todo o potencial de um reencontro histórico entre os povos da África e do Brasil.
Fomos unidos à força, pela brutalidade do tráfico de escravos, mas o tempo nos transformaria em povos irmãos, por tudo que os africanos nos legaram material e culturalmente.
O Brasil é simplesmente a maior nação em população negra fora da África. Ao longo do meu governo visitei 26 países africanos em 33 viagens — e de pedir perdão, em nome do povo brasileiro.
Estamos construindo relações políticas, econômicas e de cooperação em alto nível. O comércio do Brasil com os países da África cresceu mais de quatro vezes desde 2003.
Tive a honra de inaugurar, no Brasil, a Universidade Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, que nos une a todos – portugueses, brasileiros e africanos – na construção comum do desenvolvimento.
Meus amigos, minhas amigas,
Enormes foram as mudanças em Portugal, no Brasil e no mundo ao longo desses 40 anos. Toda uma geração nasceu e cresceu sem ter experimentado diretamente o gosto amargo da ditadura, do atraso e da iniquidade.
A Revolução dos Cravos e todos os processos transformadores, em Portugal e no Brasil, devem chegar às novas gerações como um estímulo para que não deixem de sonhar com um mundo novo e melhor.
Os ventos da liberdade e da justiça, quando sopram, nada pode impedi-los. Este é o sentido mais forte da Revolução dos Cravos nos dias de hoje.
Este bravo povo português, que desafiou os mares quando eles eram a fronteira do medo, que ensinou à Europa o caminho de um novo mundo, sempre será capaz de novas proezas.
Quem soube vencer um regime odioso – que aos olhos estrangeiros parecia eterno em seus 48 anos – poderá superar qualquer obstáculo.
Um povo que soube renovar seu país, tornando-o uma economia pujante, que em pouquíssimo tempo alcançou os mais altos padrões sociais, não pode desistir de sonhar.
É isso que temos a dizer aos que nem eram nascidos 40 anos atrás: Tomem de novo aqueles ventos, tomem outra vez aqueles cravos, e sigam adiante.
O mundo, o novo mundo com o qual sonhamos há gerações, amigo Mário, ainda está por ser feito. É o desafio dessa juventude que tem um passado de que se orgulhar e um imenso futuro a construir.
Muito obrigado.