40 anos depois da Revolução dos Cravos, Portugal sofre com austeridade
Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às tres e tal
para que a Lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal
[excerto de Poemarma, 1967]
Esses versos do poeta Manuel Alegre, de 77 anos, estranhamente anteciparam o movimento que, na madrugada de 25 de Abril de 1974, tomaria o Terreiro do Paço e o Quartel do Carmo, em Lisboa, enchendo as ruas de cravos vermelhos e depondo o então ditador Marcello Caetano. Ele substiituiu Salazar e se exilaria depois no Rio de Janeiro, trabalhando como professor universitário de Direito. O profético poema, difundido anos antes em fotocópias clandestinas, tornou-se em uma forte poética da mudança.
Civis no Largo do Carmo. Movimento das Forças Armadas (MFA) e populares ocuparam o local, em resistência naquele abril de 1974
As mudanças possibilitadas pela Revolução dos Cravos foram fulcrais para Portugal. “Construiu-se uma democracia ao meu entender robusta. Essa foi a grande conquista do 25 de Abril até hoje”, disse a Opera Mundi Boaventura de Sousa Santos, professor aposentado da Universidade de Coimbra e um dos mais respeitados intelectuais portugueses. O país por fim seguiu a onda democrática e a criação do Estado de bem-estar social conduzidas na Europa depois da Segunda Guerra.
A abertura democrática significou direitos civis e políticos, mas não só isso. Os direitos sociais foram garantidos pela Constituição: direito à habitação, saúde, educação, previdência social, justiça, cultura, entre outros. Também foi a época das nacionalizações, do fim da guerra colonial e do surgimento da classe média. A entrada na União Europeia ajudaria a modernizar o país por meio da transferência de 80 bilhões de euros em fundos entre 1986 a 2011 – o equivalente a 9 milhões de euros por dia.
Outras agendas, contudo, não foram cumpridas. Uma delas foi a reforma agrária, impulsionada depois da Revolução pela esquerda parlamentar mais radical e membros ligados ao Movimento das Forças Armadas, sobretudo na região do Alentejo. O grupo foi isolado na esteira de um golpe mililtar que em novembro de 1975 impôs uma linha política mais moderada.
Presente
Quarenta anos mais tarde, porém, as palavras que definem Portugal podem estar mais próximas dos versos desencantados escritos pelo mesmo Manuel Alegre em plena democracia dos anos 1990, quando o centro-direitista Cavaco Silva – atual presidente – era primeiro-ministro: “vinte anos depois Abril não rima”.
Portugal de hoje, com uma taxa de desemprego de 15% e um pacote financeiro conduzido pela Troika (Comissão Europeia, FMI e Banco Europeu), celebra a Revolução receoso dos lesivos impactos da austeridade em áreas decisivas na vida das pessoas.
“Estamos voltando ao modelo pré-Revolução”, lamenta Boaventura de Sousa Santos, que defende a auditoria da dívida externa portuguesa. Os baixos salários e a desigualdade social colocam o país entre os mais desiguais da Europa.
Atualmente, 18% das pessoas em Portugal vivem no limiar da pobreza (com média de renda de 400 euros mensais), enquanto 10,9% da população enfrenta privação material severa. A gestão dos fundos europeus, alocados em excesso em áreas de infra-estrutura como rodovias, não conseguiu aproximar os indicadores sociais em Portugal da média do bloco.
Se a entrada na União Europeia ajudou o país a se modernizar, foi ao mesmo tempo, junto com a moeda única, seu algoz. “Quando a Europa fez uma virada neoliberal, o país também a acompanhou”, diz Boaventura. As medidas de austeridade implementadas desde 2011 seguem o memorando assinado com a Comissão Europeia: privatizações, reforma previdenciária, subida de impostos, aumento dos custos de saúde e educação para os cidadãos e limitação das transferências sociais do Estado. Para o equilíbrio de forças dentro do bloco europeu, Boaventura aposta em uma união entre os países do Sul – os que mais sofrem com a crise econômica.
Diante desse cenário desolador, por que não há mobilizações populares como as que se seguiram à Revolução de 1974? Segundo o sociólogo, as manifestações populares requerem dois requisitos: a frustração e a expectativa de quem quer lutar por direitos ou que espera que os resultados sejam positivos. Em Portugal, falta a segunda. “No Brasil, por exemplo, há ambas neste momento”, contrapõe. “Alguns defendem que, se a situação aqui piorar, haverá movimentos populares. Eu acho justamente o contrário: ficaremos mais paralisados”.