De Mercator ao Google Maps
Mais ou menos na metade do impressionante e espirituoso poema do irlandês Jonathan Swift, “Sobre a Poesia: Uma Rapsódia”, o escritor satírico do século 18 volta brevemente sua atenção para os mapas da África, escrevendo:
“Assim, os geógrafos, em cartas africanas,
Com cenas selvagens preenchem as lacunas,
E no interior, inóspito e distante,
Em vez de cidades, colocam um elefante.”
Na época de Swift, os exploradores europeus haviam apenas margeado as regiões costeiras da África; seu interior permanecia, para todos os fins, um mistério. Mas, como observa o poeta, em vez de simplesmente deixar o interior do continente vazio, os cartógrafos “preenchem as lacunas” com aquilo que acreditam residir nestas regiões remotas do mundo, como estranhos macacos, leões itinerantes e “em vez de cidades, colocam um elefante”.
Tais mapas da África, desenhados por um pequeno grupo de cartógrafos ocidentais, reafirmam simbolicamente o sentimento de controle dos europeus sobre os territórios e temas mapeados, mas abdicam de informações verdadeiras no processo de criação. Embora fossem vistos como objetivos e imparciais no momento de sua criação, retrospectivamente torna-se evidente como são subjetivos, ideologicamente orientados e, de muitas maneiras, fantasiosos.
Avançando até os dias de hoje, poderia parecer que a situação é completamente diferente. Qualquer lacuna em nosso conhecimento geográfico foi cuidadosamente preenchida graças a tecnologias sofisticadas e às imagens por satélite.
No entanto, as coisas podem não ter mudado tanto quanto, a princípio, presume-se. Nenhum mapa é completamente objetivo e cada cartógrafo tem de tomar inúmeras decisões sobre o que é mais ou menos importante. Algumas dessas escolhas podem ser puramente técnicas; outras podem derivar de convenções históricas; ainda há aquelas que são realizadas com base em presunções ideológicas.
Projeção de Mercator
Um dos modos pelos quais imaginamos a África é por meio dos mapas-múndi. Mas, desde Ptolomeu, durante o século 2º no Império Romano, os cartógrafos sabem que desenhar um mapa preciso do mundo é praticamente impossível. O mundo é esférico, um mapa é plano, e não há nenhuma maneira óbvia de contornar este problema.
O problema de reduzir um mundo tridimensional a uma representação bidimensional sempre assombrou os cartógrafos, e as formas dos mapas-múndi sempre foram enormemente variadas, indo de corações e semicírculos a nabos esmagados.
Esta diversidade diminuiu, no entanto, quando um modelo específico superou todos os outros e se tornou o mapa-múndi hoje presente nas paredes de todas as salas de aula, em livros e mesmo no Google Maps. Para muitas pessoas, hoje, esta projeção inventada pelo cartógrafo flamengo Gerardus Mercator em 1569 é o verdadeiro mapa-múndi.
A principal razão pela qual a projeção de Mercator tornou-se tão popular foi sua utilidade na navegação; em seu mapa, linhas retas representam trajetos constantes orientados por uma bússola. No entanto, manipulando o mapa para obter tal característica, Mercator distorceu enormemente os tamanhos dos países. Particularmente, o hemisfério sul parece muito menor do que efetivamente é.
Por exemplo, na projeção de Mercator (abaixo), a América do Norte parece pelo menos tão grande, senão um pouco maior, do que a África. E a Groenlândia também parece ter um tamanho similar.
Mapa-múndi feito pelos cartógrafos Wright-Molyneux ,1599 , segundo projeção de Gerardus Mercator
Na realidade, a África é maior do que ambas. Como pode ser observado no mapa de projeção igualitária de Gall-Peters (abaixo), é possível colocar toda a América do Norte dentro da África e ainda sobra espaço para a Índia, a Argentina, a Tunísia e um pouco mais. A Groenlândia, por sua vez, tem cerca de um quatorze avos o tamanho do continente.
Mapa de Gall-Peters, com projeção igualitária: África em nova dimensão
Outra convenção antiga, que desprivilegia o hemisfério sul de maneira sutil e aparentemente inócua nos mapas-múndi, é a de posicionar o norte sempre no topo dos mapas. Nem sempre foi assim. Em mapas cristãos medievais, o leste era colocado no topo, porque se acreditava que o mundo e o Jardim do Éden tiveram origem a partir desta localização. Enquanto isso, nos mapas islâmicos do mesmo período, o sul encontrava-se no topo.
Mapa perfeito
Apesar das antigas convenções ainda hoje usadas nos mapas-múndi, seria possível argumentar que, graças às novas tecnologias, entramos em uma nova era da cartografia.
No centro de tudo isso encontra-se o Google Maps, que passou a dominar a cartografia atualmente, tanto em termos de recursos, quanto de popularidade. Bilhões de pesquisas são feitas pelo Google todos os dias, e o Google Maps é, de longe, o aplicativo mais usado em smartphones no mundo. O Google Maps apresenta-se como uma “busca interminável pelo mapa perfeito”, e pode-se esperar que, com a enorme quantidade de informação nova disponível, o objetivo de criar um mapa realmente preciso e objetivo possa finalmente ser alcançado.
Jerry Brotton, historiador da cartografia e autor de “Uma história do mundo em doze mapas”, alerta, no entanto, sobre tais noções: “Os cartógrafos sempre alegaram objetividade”, diz, “e sempre imaginaram que estão criando mapas a partir de uma espécie de ponto de vista onisciente e divino. Em se tratando do Google Maps, a realidade é que estão sendo produzidos na Costa Oeste dos Estados Unidos”.
Todos os mapas, argumenta Brotton, pertencem ao seu tempo, ao seu lugar e servem a certos propósitos. Os cartógrafos medievais queriam mapear sua orientação em relação ao Jardim do Éden ou a Meca; Mercator queria facilitar a vida dos navegadores marítimos; os colonizadores queriam rastrear a extensão de seus impérios. “Para mim, parece claro que o Google Maps é orientado para gerar lucros a uma multinacional”, diz Brotton. “Em última instância, ele é orientado pela perspectiva de lucros com publicidade.”
De fato, o Google depende de publicidade para a geração de quase todos os seus US$ 60 bilhões de lucros anuais. Uma maneira de pensar no modelo de negócios do Google é reconhecer que seus enormes lucros com publicidade permitem que a empresa ofereça serviços gratuitos. No entanto, outra maneira de pensar a questão é a seguinte: o monopólio quase total obtido pela empresa, ao fornecer seus serviços de graça, dá a ela o domínio necessário para gerar os dólares advindos da publicidade.
“Certos vilarejos na África do Sul são apenas espaços em branco nos mapas [do Google]”, diz Brotton. “No modelo corporativo da empresa, algumas comunidades simplesmente não apresentam interesse. O mapeamento se tornou uma atividade privada, nem mesmo os Estados possuem os recursos necessários para competir; inevitavelmente, isto gera o velho problema de que a África se encontra nas últimas posições da ordem de preferência.”
Mundos divididos
A história da projeção Mercator e da convenção “norte-para-cima” mostra como pequenas decisões cartográficas podem fazer enorme diferença na forma como percebemos o mundo. As decisões feitas pelos engenheiros do Google podem apresentar repercussões igualmente enormes sobre como interpretamos o mundo, embora este argumento seja mais difícil de demonstrar com clareza.
É muito mais difícil evidenciar as particularidades do Google Maps, já que não temos nenhuma alternativa real com a qual comparar. Podemos imaginar que, se todas as habilidades de programação e computação de dados do Google simplesmente caíssem nas mãos de um agricultor namíbio, um nômade do Sahel ou uma pescadora senegalesa, o mapa criado seria certamente muito diferente. Eles poderiam priorizar os tipos de solo ao invés da localização de lojas Starbucks, a presença de poços em vez de supermercados Walmarts e o estado da degradação do solo mais do que vistas panorâmicas de ruas americanas. Mas apenas podemos imaginar.
Em 1976, o escritor e ex-presidente da Estônia, Lennart Meri, escreveu: “Se a geografia é prosa, os mapas são iconografia”. Enquanto o estudo das características da Terra pode ser um processo descritivo ainda em andamento, sugere Meri, um mapa é, ao mesmo tempo, mais e menos do que isso. A informação que um mapa pode fornecer é bastante limitada, mas seu poder simbólico ou icônico quase não tem limites.
Tradução Henrique Mendes para Opera Mundi
Texto originalmente publicado em Think Africa Press, revista on-line com matérias e artigos sobre temas relacionados aos países africanos