A política jurídica hoje e sua captura pelos meios de comunicação
O direito contemporâneo se estrutura de modo técnico, a partir de formas sociais estabelecidas, mas num processo contínuo de perfazimento político. Se é verdade que grandes aparatos normativos e institucionais são levantados nas sociedades capitalistas contemporâneas, não menos verdade é que tais núcleos institucionais operam de acordo com uma multiplicidade de interesses concretos, de tal sorte que os constrangimentos sociais atuam violentamente na constituição da multiplicidade de atos do mundo jurídico.
No campo estatal, tal processo se dá de forma mais patente. Os agentes estatais são diretamente influenciados pela ideologia da sociedade, pelas pautas dos meios de comunicação, pelos afetos médios que operam no tecido social, pelos valores pessoais e relações sociais que estruturam as subjetividades. Em todo esse espectro de concreção jurídica, a pretensão de um direito técnico e puramente normativo é abstrata e desconhecedora da realidade social.
Mas não se pode compreender a realidade microfísica do mundo jurídico e dos poderes judiciários apenas pelas insignes relações intersubjetivas, como se elas fossem obra de mero acaso ou pendor exótico de indivíduos. Há grandes estruturas que perfazem a própria subjetividade, além de conexões sociais profundas de classe, ideologia, valores e interesses, que estão sobre os indivíduos. Entender tais conexões é fundamental para se saber, inclusive, a respeito das luzes e das sombras que são jogadas nas informações do mundo jurídico, cujos proveitos políticos são notórios.
A concreção jurídica nos tempos atuais
Tenho insistido, em obras como “Estado e forma política” (Editora Boitempo), que as formas sociais se erigem como determinantes necessárias das sociabilidades específicas. No capitalismo, a partir do núcleo da forma mercantil – todas as coisas, as pessoas e suas relações tomam forma de mercadoria – a forma de subjetividade jurídica e a forma política estatal se fazem acompanhar como seus espelhos e correlatos necessários.
O campo processual judiciário e mesmo os campos administrativo e policial, ligados tanto ao próprio Poder Judiciário como também aos poderes Executivo e Legislativo, operam a partir de uma conjunção da forma jurídica com a forma política estatal. Em “Estado e forma política”, nomeio a esse fenômeno, de imbricação de formas, por conformação. Assim, para que o direito se realize em termos processuais e procedimentais, ele, que é diretamente advindo da sociabilidade capitalista na sua forma, é também estatal, não porque o Estado seja seu constituinte principal, mas porque o mesmo encadeamento de relações sociais do capitalismo demanda um terceiro em relação aos agentes sociais individuais, como controlador do sistema de julgamento, politicidade e força física de tal tipo de sociedade.
No seio de tais relações estruturais das formas sociais do capitalismo, cada momento histórico constitui específicas redes de valores, interesses, forças políticas e ideologias. Assim, no que tange ao poderes e aos campos de luta social, o mundo jurídico e judiciário atravessa fases de resistência, submissão, alheamento ou mesmo de combate. Em meu livro “Crítica da legalidade e do direito brasileiro” (Editora Quartier Latin), aponto para algumas dessas fases no caso do Brasil das últimas décadas, que constituem movimentos tendenciais majoritários dos operadores do direito.
Se é verdade que o direito brasileiro sempre formou uma elite jurídica tradicionalista, avessa a uma abertura maior aos interesses sociais, os tempos de ditadura militar e transição à democracia operaram relativas contradições nesse quadro. Breves e pontuais experiências de juristas progressistas foram vistas nas décadas de 1970 e 1980, em movimentos como o chamado direito alternativo. Em face de legislações duras da ditadura, no campo judicial tentou-se flexibilizar a crueza normativa.
Mas, entre as décadas de 1980 e 1990, maiores ganhos institucionais foram conseguidos por meio de legislações de conteúdo social e mesmo com a Constituição Federal de 1988. Nesse momento, a proeminência jurídica progressista estará também no campo legislativo, e não apenas no judiciário. Ocorre que tais ganhos surgem em momento de véspera da chegada do neoliberalismo no cenário político, econômico e social nacional. A partir da década de 1990, tal contradição se torna explícita: há um direito relativamente desenvolvimentista e de bem-estar social em face de uma política implantada, de tipo neoliberal.
Nesse quadro de contradição, desde a década de 1990 buscou-se um desmonte dos relativos ganhos do direito, operando-se na base de revogação normativa, via legislativo. Mas os custos de tal caminho são altos, na medida do desgaste político que envolve o retrocesso nos direitos. Então, o campo judiciário, cujo conservadorismo latente sempre existiu, mesmo em momentos de pontuais experiências progressistas, tomou as rédeas para realizar uma conjugação conservadora entre um direito de potencial bem-estar social e uma demanda econômica, ideológica e valorativa neoliberal.
Esse cruzamento vem sendo realizado desde a década de 1990 até os dias de hoje. No campo dos costumes, há um tenso balanço entre conservadorismo e progressismo moral, como se vê em questões de família, minorias ou laicidade do Estado. No campo econômico, há a falsa tentativa de compatibilizar a impossível arte de cumprir os princípios constitucionais sociais com a demanda neoliberal por ainda maior proeminência do capital. No campo político, dá-se o levante da moralidade pública com seu acoplamento à seletividade dos castigos.
No caso da moral, embora haja juristas progressistas, há prevalência do viés conservador, na medida em que o jurista, indivíduo de classe média, tem por leitura ideológica típica a importância da ordem e dos valores morais estabelecidos, quase sempre teológicos. No caso da economia, o peso da lógica econômica neoliberal é altíssimo, menos em casos quotidianos mas, em especial, em grandes decisões. No caso da política, o controle do que é pauta jurídica se faz externamente ao mundo jurídico e judiciário, em especial pelos meios de comunicação de massa.
A política da informação jurídica
É verdade que, no estabelecimento do direito contemporâneo, sua técnica determina ao jurista que esteja adstrito a atos e competências normativamente previstas. Mas não se deve olvidar sua constituição subjetiva, atravessado ideologicamente por valores, informações e horizontes de mundo que são externos a si e mesmo a muito das normas jurídicas com as quais lida. O jurista age no contexto de uma ideologia que o perfaz.
A ideologia se apresenta, nas sociedades capitalistas, não apenas como uma construção ocasional ou de relações idiossincráticas. Pelo contrário, ela opera a partir de grandes aparelhagens, cujo controle permite uma plena e praticamente imediata constituição das subjetividades. Louis Althusser chamava a tais mecanismos de Aparelhos Ideológicos de Estado, na medida em que operam em campos estatais ou que organizam publicamente a ordem social, como a escola.
Nas sociedades contemporâneas plenamente capitalistas, que já perderam muito das referências tradicionais como família, vizinhança ou religião, os meios de comunicação de massa tomam primazia no talhe das subjetividades. São onipresentes, na medida em que a informação sobre o que se passa no mundo – e mesmo sobre o que o mundo é – só há justamente porque tais meios a anunciam. O grau de aderência aos seus horizontes ideológicos é altíssimo, dado que a desconstituição daquilo que se vende como fato, verdade, boa opinião, bom-senso ou melhor valor exige uma outra estrutura de informação e de visualização de mundo, o que demandaria uma outra totalidade. Nas sociedades contemporâneas, de multidões de classes e massas exploradas e sem capacidade de crítica, tal desconstituição é na prática inexistente ou insignificante.
Os mecanismos ideológicos, controlados por meios de comunicação de massa, penetram a todos os campos da vida social, sendo o direito um deles, com práticas exemplares e eminentes nesse sentido. O jurista é afetado diretamente pelas pautas, valores, interpretações e horizontes daquilo que é notícia. Inclusive também porque sua informação sobre os fatos é, via de regra, a mesma informação dos meios de comunicação de massa. Mesmo o jurista que mais opera na base dos fatos concretos – como aquele do mundo policial ou do Ministério Público – não consegue maior ou distinto acesso aos fatos ou, então, mesmo que assim o consiga, não resiste, em sua leitura dos fatos, à interpretação bombástica da imprensa.
Duas grandes vertentes se abrem nessa imbricação de ideologia, aparelhos de comunicação de massa e prática jurídica. A primeira delas advém do próprio mundo do direito: a incorporação de tal conjunção como prática política do jurista. Um caso jurídico tem mais peso e ganha ares de importância quando a imprensa o anuncia. Isso faz com que haja um pendor por bons acessos dos operadores do direito aos meios de comunicação de massa. Essa política, que a princípio pode parecer útil aos próprios fatos em tela, pelo fato de serem divulgados e levados a conhecimento público, faz perder, também, uma isenção necessária com outros fatos semelhantes, obriga a ganhar pressões sociais que são, de início, desconhecidas aos fatos e, em especial, torna a maquinaria jurídica, acoplada aos meios de comunicação de massa, um jogo de sombras e luzes. O poder do arbítrio jurídico se majora quando amplificado, iluminado ou ocultado pela imprensa.
Ao mesmo tempo, outra vertente peculiarmente se abre: a captura do mundo jurídico e judiciário pelos meios de comunicação de massa. O mesmo jogo de sombras e luzes da simbiose entre juristas e imprensa faz com que esta se torne a ultima ratio da opinião pública, do julgamento “apropriado” e da constituição do que seja escândalo ou normal. Com isso, o mundo jurídico não resiste a ser um terceiro em face dos aparelhos de comunicação. Trata-se de um processo pleno de sua captura por ideologia.
Como tantas outras áreas, a política da informação jurídica é constituída na atualidade de uma imbricação entre afazer jurídico e interesse dos meios de comunicação de massas. Lutas progressistas precisam, portanto, vencer duas barreiras – a do interesse dos juristas e a do interesse dos órgãos da imprensa – que se prestam quase sempre a mesmos fins. É de se perguntar qual o poder do direito e do jurista, constituídos pela ideologia de massas, contra esse mesmo controle ideológico. O poder autônomo e técnico do direito nessa hora se esvai.
Para além de um pretenso avanço confinado ao mundo jurídico, a luta é ideológica, passando pelos próprios controles sociais dos meios de comunicação de massa. É de fora para dentro que o mundo jurídico se torna progressista. Nessa luta, ainda muito pouco enfrentada, passa a definição de horizontes transformadores para nosso tempo.
(*) Jurista e filósofo do direito. Professor da USP (Faculdade de Direito do Largo São Francisco) e do Mackenzie.
Fonte: Carta Maior