Lições e Consequências da Primeira Guerra Mundial: de Volta para o Futuro?
O centenário da primeira guerra mundial é um momento para uma reflexão sóbria e profunda sobre as causas e consequências desta tragédia humana. Tem havido alegações de que a aprendizagem pode ser ‘uma visão perfeita’ [‘20/20’ em inglês= fácil após a ocorrência – NT]; mas, estando hoje tão distante do evento real em si, parece que a aprendizagem através das polêmicas polarizada de hoje é míope. A história está sendo reinterpretada para marcar pontos políticos a curto prazo, e esquece-se de que a intenção britânica do conflito original era para uma transformação a longo prazo e profética do arranjo (na época, reconhecido como ‘global’) das potências européias. Claro, nem tudo saiu como previsto e aconteceram ‘zebras’ [‘dark horses’: acontecimentos inesperados; o mesmo que ‘zebras’, ‘azarões’ – NT] para contrabalançar esses planos cuidadosamente concebidos e/ou colher dividendos imerecidos. Não importa que cem anos já tenham passado; o objetivo geoestratégico é o mesmo – as Potências Marítimas devem utilizar todos os métodos (incluindo intriga e maciço derramamento de sangue) para impedir que as potências continentais conspirem contra elas. O continuum da história estranhamente mostra que as sombras do passado ainda pairam sobre a cabeça do futuro, e as lições temáticas que antecederam e que se seguiram à I Guerra Mundial ainda soam perigosamente verdadeiras hoje.
1. Temas
Enquadramento geopolítico
Comumente, diz-se que ” geografia é destino”; e, em grande medida, a localização geográfica é um forte determinante da ação. Alfred Mahan e Halforth Mackinder compreenderam isso muito bem na virada do século passado.
Mahan publicou “A Influência do Poder Marítimo na História” em 1890, o qual argumentava que o poder no mar é chave para controlar a terra. Mackinder levou essa idéia um passo adiante em 1904, escrevendo em “O Eixo Geopolítico da História” que as óbvias limitações geográficas do poder marítimo exigem um forte controle sobre o Heartland [1] a fim de dominar a Eurásia. Esta foi originalmente entendida como a Ásia Central, mas mudou ao longo do tempo.
Por que importava então?
O Secretário do Exterior britânico em 1914, Sir Edward Grey, foi o principal instigador da Primeira Guerra Mundial.
O Reino Unido e a Alemanha estavam envolvidos em uma feroz corrida de armamentos navais até a véspera da Primeira Guerra Mundial. Embora a Marinha Britânica fosse suprema, a Alemanha era claramente uma ameaça crescente para essa hegemonia. Além disso, a Alemanha e a Áustria-Hungria eram os mestres da Europa Central e a Rússia controlava o Heartland (essencialmente ’ ganhando’ o Grande Jogo). O historiador russo Nikolay Starikov brilhantemente argumenta que o Reino Unido, usando sua experiência diplomática (e esperteza) de séculos no equilíbrio do grande poder, instigou a Alemanha e a Rússia à guerra após os acontecimentos de Sarajevo para destruir seus dois inimigos maiores (em diferentes teatros da Eurásia) em um único golpe.
Por que é importante hoje?
Brzezinski, escrevendo em ‘O Grande Tabuleiro de Xadres’ [‘The Grand Chessboard’] em 1997, adverte os americanos responsáveis pelas decisões sobre a possibilidade (à época distante, hoje mais realista) de uma aliança russo-alemã que isolasse a América da Europa e, assim, arruinasse a estratégia Euro-Asiática da América. Adaptando para a presente realidade geopolítica, faz sentido agora a razão porque existe tanta incriminação ocidental contra a Alemanha por ter supostamente começado a I Guerra Mundial – o objetivo é manter a Alemanha e a Rússia divididas e impedir sua coordenação política futura. A onda de Revoluções Coloridas destina-se unicamente a penetrar o Heartland soviético anterior e a remover a Rússia do jogo do Grande Poder. Na frente naval, os EUA estão tentando incitar a China em rota de colisão catastrófica com seus vizinhos do sudeste asiático sobre territórios marítimos disputados.
Lição
A combinação do poder sobre o mar e a terra, devidamente coordenados e aplicados em toda a Eurásia, é a fórmula básica para o controle global. Uma olhada momentânea no mapa das implantações navais e militares americanas no exterior prova facilmente as teorias de Mahan e de Mackinder sem a necessidade de palavras. Porque a geografia não pode ser alterada, essas idéias vão continuar a orientar os EUA e qualquer outro aspirante à hegemon global. No mundo de hoje, os EUA mesclaram o conceito de Balcãs Euro-Asiáticos de Brzezinski [indo das margens do Mar Negro às fronteiras da China, incluindo o Cáucaso – NT] com as táticas de agitação de massa de Gene Sharp (estimuladas por redes de mídia social) para conceber a arma das Revoluções Coloridas para executar isso
Um sistema de aliança hobbesiano
Os países entram em alianças militares uns com os outros por algum tipo de benefício percebido, que pode variar dependendo do ator. Mesmo que tais alianças não decretem de jure [de acordo com a lei – NT] defesa militar mútua, se a percepção aceita é de que essa aliança acarreta tal compromisso, então as reputação e prestígio das partes podem fortemente estar em jogo se elas não levarem a cabo sua obrigação prevista. Quanto mais os sistemas de aliança crescem, mais complicados se tornam, eventualmente amaranhando a todos que são laçados na rede. Guerras em grande escala podem começar assim, com base em erro de cálculo ou eventos periféricos.
Por que importava então?
Cartaz russo “Entente Cordial” de 1914. São mostradas as personificações femininas da França, Rússia e Grã-Bretanha. No centro, a Rússia detém no alto uma cruz Ortodoxa (símbolo da fé); a Britânia, à direita, uma âncora (referindo-se à Marinha da Grã-Bretanha, mas também um símbolo tradicional da esperança); e Marianne, à esquerda, um coração (símbolo de caridade/amor, provavelmente em referência a Basílica de Sacré-Cœur) – “fé, esperança e caridade” sendo as três virtudes da famosa passagem bíblica I Coríntios 13:13. O cartaz revela uma postura russa sincera para com seus “aliados” na Primeira Guerra Mundial.
As percepções obrigacionais envolvendo alianças desempenharam um papel importante no longo período que antecedeu a I Guerra Mundial, pois Starikov escreve que “até o início da Primeira Guerra Mundial, a aliança Entente não foi enquadrada em um Tratado!” Claramente, havia sempre uma “saída”; mas; devido à duplicidade da diplomacia britânica (também devidamente elaborada por Starikov em suas obras), a situação foi cuidadosamente enquadrada para a Alemanha e a Rússia como se não houvesse alternativa. Uma vez ativado, o emaranhado da fibrosa aliança multiplicou-se exponencialmente até que a maioria de todo o continente (e o Oriente Médio através do Império Otomano) foi envolvido em guerra total. Um evento relativamente banal no grande esquema da política contemporânea (um assassinato político na periferia continental) levou a uma grande conflagração no seu núcleo.
Por que é importante agora?
Após a Guerra Fria, a OTAN continuou a crescer inabalável, devorando os restos do Pacto de Varsóvia e parte das antigas Iugoslávia e União Soviética. Embora a defesa militar mútua não seja legalmente vinculativa na OTAN (o Artigo 5º não estipula explicitamente assistência militar, deixando que cada estado-membro tome essa decisão por conta própria), a percepção é que é. Isto significa que os EUA e seus coortes podem acabar perigosamente envolvidos em um conflito regional a fim de salvar as aparências. As ações provocativas da Turquia na Síria ou seus planos fracassados de um ataque enganador lá deveriam enviar sinais de alarme ao resto do mundo. O mesmo pode ser dito para a Polônia e a Lituânia, também membros da OTAN, em relação a seus planos de criar uma brigada conjunta com a Ucrânia, a qual não é membro da OTAN. Claramente, uma potência média em uma grande aliança pode atrair o resto dos seus vinte e sete membros a uma calamidade desastrosa. Deixando de lado a OTAN, os EUA têm um acordo de defesa mútua com o Japão, o qual tem sido incitado a provocar a China. As garantias de segurança fornecidas pelos Estados Unidos a Israel e Arábia Saudita também poderiam facilmente envolvê-los em uma guerra regional com o Irã.
Lição
As alianças militares são um tipo de acordo quase sacrossanto que os estados fazem uns com os outros, colocando seu prestígio e a vida dos seus cidadãos em risco pelos seus parceiros. Elas não deveriam ser entendidas como uma forma de afirmação política. Quanto maior é a aliança, maior é a chance de surtos não-intencionais de grave guerra e de os jogadores do meio manipularem os outros membros. É totalmente instável quando Obama, referindo-se aos Estados Unidos, conta com orgulho para a turma de graduação do West Point [academia militar do exército dos EEUU – NT] que, “Da Europa à Ásia, nós somos o centro de alianças sem rival na história das nações.” Excepcionalmente perigosas são as chamadas alianças “defensivas” que só têm um histórico de ação militar ofensiva (por exemplo, as guerras da OTAN). As alianças tanto podem complicar a situação política quanto podem esclarecê-la.
Manipuladores (distantes) do equilíbrio de poder
Os conceitos de equilíbrio de poder e de Dividir para Reinar são tão antigos quanto as páginas do tempo; no entanto, igualmente tão velho é o conhecimento de que quanto mais distante o praticante dessas estratégias, menos provável é que seja afetado diretamente pelas consequências negativas de suas ações. Isso os torna mais calculistas e letais no potencial de danos que podem colher nos teatros alvos. O poder do estado manipulador de equilíbrio deve também ser levado em consideração. Se um estado forte está manipulando os mais fracos, então o risco potencial de consequências negativas diminui; da mesma forma, uma vez que fortes estados começam a manipular seus pares, o risco de consequências negativas (mesmo que os estados sejam distantes uns dos outros) aumenta dramaticamente.
Por que importava então?
O Reino Unido havia sido historicamente a prima donna do equilíbrio de poder e das políticas de Dividir para Reinar na Europa, e desempenhou perfeitamente esse papel no processo que conduziu à I Guerra Mundial. Conforme descrito por Starikov, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido Edward Grey diligentemente jogou todas as potências continentais uma contra a outra a fim de que seu país colhesse os benefícios esperados de um conflito continental hobbesiano. As consequências da guerra não foram exatamente as que haviam sido antecipadas (como é fato, isso não acontece com grandes manobras estratégicas); mas, no entanto, é importante observar o impacto da interferência do Reino Unido na gênese da Grande Guerra. Sua visão de equilíbrio europeu e de Dividir para Reinar contribuiu diretamente para a tragédia, inadvertidamente ou não.
Por que é importante agora?
Os EUA substituitam o Reino Unido como equilibrador global do mundo e praticante de Dividir para Reinar. Sua nova política de ‘Liderar por Trás’ [‘Lead from Behind’] é um eufemismo para essas práticas. Eles nomeiam aliados regionais para realizar o que é percebido como sendo condições mutuamente vantajosas (para a vantagem objetiva da grande estratégia dos EUA, mas apenas para a vantagem subjetiva do ’aliado’) enquanto Washington supervisiona e gerencia eventos. A Turquia e Polônia são os principais exemplos dessa política em ação, e a influência da CIA e do FBI sobre a junta de Kiev é ainda outra aplicação dela. Mais sinistramente, as Revoluções Coloridas também podem associar seu nascimento ao de um poder manipulativo (distante) tentando gerenciar eventos regionais para seu próprio interesse. Ao manipular globalmente multidões de atores simultaneamente, surge um risco crítico de má gestão e conseqüências não intencionais. Isso é ainda mais apocalíptico devido aos avanços na tecnologia militar (armas nucleares, drones, guerra electrônica, etc.) que podem igualar o jogo entre as grandes potências manipuladoras e as manipuladas.
Lição
Poderes equilibradores e manipuladores (distantes) têm paradoxalmente visão e cegueira. Eles têm uma certa visão do que a ordem global ou regional deve parecer; mas, a fim de trazer esta idéia à fruição, muitos movimentos complicados devem ser feitos com antecedência. A cegueira decorre do fato que, quando manobras arriscadas de enormes consequências são feitas, conseqüências não intencionais de natureza variável geralmente se seguem e, mais do que provável, estas tendem a ter algum tipo de resultado desastroso para algumas ou todas as partes afetadas. Quanto mais distante e forte o poder manipulativo, mais provável que tenha visões grandiosas (e perigosas) daquilo que o futuro deve parecer e que na verdade atue sobre esses sonhos. Mesmo se este tipo de ator esteja apenas manipulando uma pequena ou média potência, se o alvo eventual for uma potência de força igual ou próxima à dele, então é o mesmo que tentar manipular o dito poder (por exemplo, a manipulação da Ucrânia pelos EUA para afetar a Rússia). Isso nunca leva a resultados pacíficos e estáveis.
2. Consequências
‘Zebras’
Essas são as consequências não intencionais que acontecem devido à manipulações e grandes planos que correm mal. Elas são impossíveis de se prever com precisão, e só às vezes podem parecer esperadas, em retrospectiva. As ‘zebras’ são as ‘cartas fora do baralho’ [‘wild cards’] que surpreendentemente alteram a dinâmica no jogo e causam uma mudança que os manipuladores originais não pretendiam. Elas aparentemente surgem do nada.
Por que importava então?
Em conformidade com o argumento de Nikolay Starikov, a intenção do Reino Unido, ao transformar os eventos em Sarajevo em uma guerra européia, era eliminar dois de seus principais rivais simultaneamente, Alemanha e Rússia. Londres se antecipara, tendo a mão livre para impor sua vontade por toda a Eurásia, de Berlim a Bagdá e do Mar de Barents até ao Mar de Bering. A história, no entanto, não foi assim, e algumas notáveis ‘zebras’ entraram em cena:
– Os EUA entraram na Primeira Guerra Mundial e foram capazes de ter poder decisório na composição da Europa pós- I Guerra Mundial. O Reino Unido não era mais o rei do continente e, daquele momento em diante, sua influência global começou a diminuir relativamente enquanto a dos EUA aumentava.
– O Japão, observando de longe como o fratricídio Europeu estava enfraquecendo o poder coletivo dos estados coloniais, tomou alguns territórios alemães do Pacífico e definiu seus projetos de maiores conquistas asiáticas menos de duas décadas mais tarde.
– A Rússia levantou-se das cinzas, transformada internamente em União Soviética mas externamente semelhante às suas fronteiras imperiais.
– Os turcos travaram o que identificam como uma guerra de independência, derrubando o Tratado de Sevres (que procurou alocar esferas de influência européia em Anatólia) e substituindo-o com o Tratado de Lausanne.
Essas quatro ‘zebras’ eram imprevisíveis em 1914; mas, em 1924, elas definiram uma parte significativa da arena internacional.
Por que é importante agora?
Assim como a estratégia britânica pelo poder, fomentando as salvas de abertura da I Guerra Mundial, levou ao surgimento inesperado de vários centros de poder, o mesmo o fez o fiasco unipolar dos EUA após o fim da Guerra Fria. A China, com a qual os EUA haviam-se aliado para conter a União Soviética, experimentou a ascensão econômica mais rápida da história da humanidade, e está a um passo de superar a economia os EUA este ano. A Rússia mais uma vez se ergueu, com Putin retornando o país ao seu status histórico de grande poder após a década de crises de 1990. Na verdade, a Rússia e a China agora estão desfrutando o melhor estado de relações mútuas em sua história. Isso os levou a coordenar as suas políticas na ONU, nos BRICS, na APEC e no Oriente Médio e Norte da África. Claramente, olhando para trás, em 1991, não foi isso que os planejadores da política norte-americana anteciparam para o seu mundo “unipolar”. Na verdade, o futuro multipolar está crescendo sobre o passado unipolar, e o processo parece ser irreversível, agora.
Lição
Para citar Donald Rumsfeld, “há incógnitas desconhecidas ” [‘there are unknown unknowns’], e é impossível prever que conseqüências resultarão de qualquer ação determinada. No entanto, parece que quanto maior a escala do empreendimento, quanto maior o ator que o está iniciando, e quanto maior(es) o(s) alvo(s), tanto mais provável que os resultados inesperados sejam extremamente profundos e marcantes. Pode-se assim avaliar que a “batalha pela Eurásia” dos EUA resultará consequentemente em uma miríade incalculável de ‘zebras’ que podem completamente inverter o equilíbrio de poder global.
Lenocínio político
Estados de segunda e terceira ordens (não-grandes poderes) estão sempre sujeitos a ameaças de manipulação; mas, essa ameaça torna-se um fato depois que um manipulador (distante) do equilíbrio de poder decide perseguir sua visão estratégica. Esses estados são com certeza imolados de uma forma ou de outra se eles estiverem no teatro de operações, e sua vitimização vai ser lucrativa para o estado manipulador. Isso pode assumir a forma clara de traição, de voltar atrás em promessas anteriores, ou de francamente submeter o parceiro de segunda/terceira ordem contra sua vontade ou expectativa. Estados de primeira ordem podem ter relações respeitosas com os de segunda/terceira ordem, mas uma vez que o estado de primeira grandeza vai para a ofensiva para perseguir sua visão (messiânica), essas relações imediatamente tornam-se dispensáveis e nada mais do que ‘cartas do pôquer político’.
Por que importava então?
Faisal ibn al-Hussein (1885-1933), rei do Iraque entre 1921 até sua morte. Note a bandeira do Reino Árabe da Síria, que coroou Faisal como seu rei em março de 1920 e caiu sob a conquista francesa quatro meses mais tarde.
Dois dos principais problemas no Oriente Médio assentam-se nesse período: a questão de Israel e da Palestina e as fronteiras coloniais artificiais da região. Os árabes foram encorajados a revoltar-se contra os turcos em troca de sua independência após a guerra, conforme a Correspondência Hussein-McMahon; mas, obviamente isso não aconteceu. Enquanto as raízes da questão Israel e Palestina durante esse tempo são bem conhecidas (Declaração de Balfour), menos conhecida é a traição do Reino Árabe da Síria depois da I Guerra Mundial.
O Protocolo de Damasco de 1914 serviu de base para a Correspondência McMahon-Hussein de 1915 – 1916, em que as fronteiras do futuro Reino Árabe da Síria seriam especificadas. Ele incluiria os estados modernos da Síria, Líbano, Israel, a maioria da Jordânia Ocidental e o Iraque e partes do Sul da Turquia. Falsamente, os britânicos estavam ao mesmo tempo ocupados a conspirar com os franceses para dividir no Oriente Médio em zonas coloniais através do Acordo Sykes-Picot. Mais tarde, em 1917, eles concluíram o acordo de Balfour (que se sobrepôs ao território prometido para o Reino Árabe da Síria), indicando claramente que nunca tiveram qualquer intenção de honrar suas promessas de garantir um estado árabe independente centrado em torno da Síria. A destruição e ocupação do Reino Árabe da Síria pela França em 1920 destruiu o sonho da independência síria até após 1946. Ainda assim, os francêses já haviam então deslocado forçosamente o Líbano da Síria e até mesmo entregue a província de Hatay para a Turquia em 1939, apesar de ambas as áreas terem sido historicamente parte da civilização Síria há séculos.
A traição da Síria depois da I Guerra Mundial é um caso clássico de lenocínio político, e seu legado é o desconfigurado Oriente Médio de hoje.
Por que é importante agora?
A embaixadora dos EUA April Glaspie encontrou-se com Saddam Hussein em 25 de julho de 1990, apenas uma semana antes da invasão iraquiana do Kuwait.
Os estados de segunda e terceira ordens estão mais ameaçados agora do que antes. A estratégia destrutiva dos Balcãs Euro-Asiáticos de Brzezinski visa especificamente os estados no Rimland [área da Eurásia no entorno do Heartland –NT], a maioria dos quais se encaixam nessa categoria (excluindo a Índia e a China). Revoluções Coloridas, por exemplo, pretendem criar um terremoto geopolítico para quebrar o Rimland Euro-Asiático e provocar o colapso do Heartland. Outras vezes, no entanto, os métodos mais tradicionais de guerra são empregados a par com decepção diplomática. O caso mais impressionante é o do envolvimento militar do Iraque no Kuwait, em 1990.
April Glispie, a embaixadora dos EUA no Iraque, na época, deu “luz verde” total a Saddam para suas ações. Depois, isso foi usado como justificativa para o assentamento de militares dos EUA na Arábia Saudita e no Golfo, para a Primeira e a Segunda Guerras do Golfo, e para o projeto para um “Novo Oriente Médio”. A Primavera Árabe é apenas a mais recente iteração [repetição] dos grandes planos estratégicos dos EUA para a região; mas, se não fosse pela Primeira Guerra do Golfo (provocada por garantias enganosas que os EUA não iriam intervir, da mesma forma como os britânicos garantiram aos alemães no período que antecedeu a I Guerra Mundial), talvez nada disso tivesse acontecido e pelo menos mais de 1 milhão de vidas poderiam ter sido poupadas.
Lição
Assim como a liberdade foi falsamente prometida aos árabes para que se rebelassem contra os turcos, e Saddam foi tapeado a acreditar que o Iraque poderia anexar o Kuwait, os manipuladores (distantes) do equilíbrio de poder normalmente exploram os estados de segunda e terceira ordens exclusivamente para promover seus próprios objetivos estratégicos. Muito raramente eles realizam suas promessas ou decretam assistência a longo prazo aos seus ’aliados’. Essas pessoas e estados são objetos na busca de objetivos maiores e, sendo reconhecidos como tal, são descartados quando já não são mais úteis. Compreendendo a natureza predatória de gigolôs políticos tais como o Reino Unido e os Estados Unidos, os estados de segunda e terceira ordens podem trabalhar para evitar o destino que se abateu sobre o Reino Árabe da Síria e Saddam Hussein.
Mapa da Europa após a Primeira Guerra Mundial até 1929
Duplicidade perigosa
A duplicidade só pode ser ’estável’ se for imposta por um hegemon global sem rival – em todos os outros casos, ou uma vez que o referido poder começar a declinar ou outros a revoltar-se contra ele (o que inevitavelmente acontece), esses padrões duplos perigosamente abrem uma caixa de Pandora de ‘zebras e azarões’ [‘black horses and black swans’]. Independentemente, estados (ou grupos de estados) que sentem que estão em uma posição de poder e influência esmagadora podem levar à imposição de padrões duplos por pura conveniência política míope. É mais fácil aplicar uma norma para os vencidos e outra para os vencedores.
Por que importava então?
A duplicidade de auto-determinação e nacionalismo étnico são talvez as mais perigosas hipocrisias do século passado. Após a Segunda Guerra Mundial, as potências vitoriosas jogaram um jogo de equilíbrio sobre o sangue étnico. Seu duplo standard destinava-se a reformular o mapa da Europa a seu bel-prazer, potencializando alguns e fragilizando outros. Ironicamente, alguns estados sentiram ambos os efeitos. Isto foi provocado pela vinculação e separação de vários grupos étnicos, unindo alguns enquanto criando diásporas [dispersões] entre outros.
Grupos étnicos que foram forçosamente divididos:
– Alemães (Tratado de Versailles)
– Húngaros (Tratado de Trianon)
Grupos étnicos autorizados a permanecer unidos:
– Poloneses
– Romenos
Falso estado:
– Checoslováquia
Os alemães e húngaros procuraram alterar esse equilíbrio artificial da distribuição étnica; essa foi uma das causas da Segunda Guerra Mundial. Os poloneses e os romenos, enquanto sediando uma grande maioria de seus grupos étnicos dentro de suas fronteiras, tinham minorias substanciais também (ucranianos e bielorrussos na Polônia, húngaros na Romênia). Eles eram ‘estados-nação’ no sentido de que as nacionalidades dominantes eram o polonês e o romeno; mas, eles não eram estados-nação ’puros’ por causa de grandes grupos minoritários. A Checoslováquia era algo completamente diferente: uma mistura de alemães, tchecos, eslovacos e húngaros. Era uma entidade artificial criada puramente para fins políticos. A duplicidade de critérios sobre etnia predominante durante toda a Europa no pós-I Guerra Mundial eventualmente provocaria a Segunda Guerra Mundial.
Por que é importante agora?
Mais uma vez, auto-determinação e nacionalismo étnico foram liberados da caixa de Pandora, embora desta vez pelos Estados Unidos e seus aliados. Começando no Kosovo, que havia sido declarado uma “exceção” à regra: um grupo étnico agitou violentamente para obter auto-determinação (tendo recebido apoio militar internacional para isso) e a declarou unilateralmente em 2008. Naquela época, Putin disse que “a independência do Kosovo é um terrível precedente. Com efeito, ela rompe com todo o sistema de relações internacionais, um sistema que tomou não apenas décadas mas séculos para evoluir… E, sem dúvida, isso pode implicar em toda uma cadeia de consequências imprevisíveis”. Ele concluiu dizendo que “em última análise, é uma espada de dois gumes, e a outra borda vai bater-lhes na cabeça, qualquer hora”, o que é exatamente o que aconteceu nos casos da Ossétia do Sul, Abecásia, Crimeia, e possivelmente Donbass e a totalidade do Novorossiya… E o gato apenas começou a pular fora do saco.
Lição
A duplicidade nunca resulta em estabilidade, e carrega dentro de si as sementes e embriões para futuros conflitos e desordem. A questão é quanto tempo levará para o duplo standard amadurecer em um problema de pleno direito, e que forma e alcance a oposição a essa falsa norma vai tomar. Como pode ser visto pelos casos da Europa pós-I Guerra Mundial e pelo mundo dos dias modernos, certos padrões duplos completamente revolucionaram a política internacional e podem trazer os mais imprevisíveis dos resultados. Eles são com certeza uma receita para o desastre eventual.
Pensamentos finais
Os temas e as consequências da Primeira Guerra Mundial são ainda estranhamente verdadeiros hoje. A diferença, no entanto, é que o escopo da instabilidade e o teatro potencial de operações saltou da Europa para toda a Eurásia. Enquanto os britânicos foram os condutores privilegiados da política de equilíbrio de poder e das políticas de Dividir para Reinar do período pré-Primeira Guerra Mundial, os EUA agora herdaram esse trono. A aliança da OTAN, tendo superado sua finalidade e inchado com membros desnecessários, representa o agrupamento militar mais instável, o qual pode muito bem provocar uma guerra por erro de cálculo.
O cálculo geopolítico permanece o mesmo – o Poder Marítimo (EUA) e seus aliados não podem permitir que uma combinação de estados continentais (Rússia, China, Irã e Índia) se una para repelí-los da Eurásia. O estratagema dos Balcãs Euro-Asiáticos de Brzezinski e as táticas de Gene Sharp cindiram-se na criação de uma nova arma perigosa de guerra global – as Revoluções Coloridas. A combinação de Revoluções Coloridas com o precedente de Kosovo, realizado sob a égide da ’liderança’ de EUA/OTAN, fraturou as relações internacionais contemporâneas e carrega o potencial de minar a paz que prevaleceu durante quase 70 anos entre as grandes potências.
Andrew Korybko é estudante de Mestrado na Universidade Federal de Relações Internationais de Moscow (MGIMO).
Tradução por Marisa Choguill para Rede Voltaire
Fonte Oriental Review
[1] Heartland significa, literalmente, Coração da Terra. Mackinder situou o Heartland na zona territorial que abrange os continentes europeu e asiático, e que recebe a denominação de Eurásia – NT