Refiro-me à aprovação pelo Congresso Nacional do Plano Nacional de Educação (PNE), cuja sanção pela Presidência da República ocorreu em 25/06/2014, e também ao Decreto 8243/2014, que institui a Política Nacional de Participação Social.

PNE e Decreto 8243/2014 estão relacionados para muito além da coincidência temporal. Eles são dois exemplos decisivos do amadurecimento da relação da sociedade brasileira com as instâncias políticas do país e demarcam uma importante fronteira a partir da qual não se pode retroceder. Por um lado, não se aceita mais, no Brasil de hoje, a condução da representatividade política apenas pela via altamente viciada dos partidos tradicionais. Por outro, a vida brasileira conferiu recentemente à educação uma importância até aqui não registrada em nossa história pregressa.

Especialistas que possuem uma mirada progressista concordam que, embora relativamente limitado em termos de modernização estrutural da educação no Brasil, o PNE aprovado no Congresso Nacional é o melhor que já se desenhou no país. É inédita a maneira como a matéria foi intensamente discutida com organizações da sociedade civil ligadas à educação no âmbito das tramitações no legislativo e isso garante que interesses de setores essenciais da luta por uma educação mais ampla e de melhor qualidade ficaram garantidos no PNE. Vale notar que esse aspecto foi absolutamente ignorado na cobertura que a mídia fez do projeto, a qual, marcada por um olhar conservador, fixou-se de modo fetichista nos números, especialmente na cifra de 10% do PIB direcionado à educação ao final dos dez anos do PNE. O curioso é que muito do argumento retrógrado relacionado ao PNE tenta nos fazer ver que, para a melhoria da educação, o importante não é necessariamente mais investimento. É inegável o avanço que o Brasil conheceu em termos de educação pública recentemente. Isso se deve, também, ao fato de que houve, entre 2001 e 2011, um aumento de 140% no gasto público médio por estudante. Mais dinheiro garantido por lei para a educação pública é sinal de que ela deve estar não apenas na pauta dos projetos de governo, mas que deve ser uma das mais importantes políticas do Estado brasileiro na conformação de um projeto de país livre, democrático e socialmente desenvolvido. Doravante, qualquer retrocesso nesses valores do PIB dedicados à educação, que são úteis para medir o peso que a educação tem no projeto de Brasil, significará também um esmaecimento da ideia de sociedade mais igualitária e mais madura em termos de civilidade.

Outro pilar importante no PNE encontra-se na sua Meta 19, praticamente ignorada na cobertura jornalística tradicional. Ela diz respeito à gestão democrática da educação. Textualmente, esta meta diz ser necessário: “Assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto”. Hoje em dia, para se ter uma ideia, somente nove estados e uma parcela mínima dos municípios possuem alguma legislação sobre a gestão democrática da educação. Se assegurar recursos é decisivo, não se pode deixar de considerar fundamental que sejam garantidas em âmbito estadual e municipal as regulamentações necessárias para uma verdadeira gestão democrática da educação pública. Ela garantirá a qualidade, a eficiência e a intensificação da concepção de educação como emancipação. Sem escola e sociedade civil estarem decididamente articuladas em torno de um debate verdadeiramente democrático a respeito dos seus rumos, não há garantias de que os recursos da educação sejam bem aplicados, a bem das populações mais carentes do país.

Neste princípio de ocupação do espaço político e público pela sociedade civil organizada está o liame decisivo entre o PNE e o Decreto 8243/2014. Eles garantem balizas importantes para o avanço da democracia participativa no Brasil. Historicamente vinculados a setores brutalmente reacionários da sociedade brasileira, uma boa parte de nossos legisladores esperneou nos últimos dias contra o Decreto em questão. Munidos de argumentos insustentáveis, tentaram desqualificar o documento como estratégia de aparelhamento de instâncias menos engessadas de representação e participação política. O que no fundo esses setores temem é que a sua distância do Brasil real (estrategicamente garantida na corrompida lógica representativa tradicional) os faça perder controle sobre o povo que, cada vez mais, impõe-se à classe política como força crítica e mobilizada. O Decreto precisa ser enxergado como importante tentativa de fazer adensar-se no Brasil a interelação entre democracia representativa e participativa. Devemos, sim, estar atentos aos dispositivos que configuram e regulam a participação democrática, para que o risco do aparelhamento seja evitado ou minimizado. Mas isso só um povo mais educado politicamente e em sentido amplo é capaz de fazer.

Não nos esqueçamos da lição de T. Adorno, que, ao falar da educação, sublinha a importância de que ela esteja engajada na “produção de uma consciência verdadeira”, uma consciência emancipada que tem como fim último a realização política da democracia verdadeira. Nas palavras do velho mestre alemão: “uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado. Numa democracia, quem defende ideais contrários à emancipação, e, portanto, contrários à decisão consciente e independente de cada pessoa em particular é um antidemocrata, até mesmo se as ideias que correspondem a seus desígnios são difundidas no plano formal da democracia” (1).

Por isso, educação e participação só se podem conceber, em um país complexo como o Brasil, enquanto elementos da vida política saudavelmente integrados e votados à emancipação dos cidadãos pela via das lutas cotidianas da sociedade organizada; uma sociedade que esteja o mais possível protegida dos interesses das elites, veiculados pelos meios de comunicação tradicionais. Quem viu a proto-democracia brasileira recém saída do período da ditadura militar, há de considerar que ela amadureceu bastante em trinta anos e que algum dado muito profundo desse processo histórico vai estar em disputa nas próximas eleições. Extratos conservadores da vida política brasileira estão decisivamente empenhados em barrar esse amadurecimento, que não se conseguiu sem muito sacrifício. Precisamos estar atentos ao que vem por aí sob a forma de simulacro modernizador que, no entanto, carrega uma pesada herança de classe paternalista, para quem educação e participação são privilégio de poucos e não operadores da democracia real.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.

(1)  ADORNO, T.W. Educação e emancipação. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 142.