Horizonte cerrado* 6: A saudade anticapitalista de Pasolini
Há exatos 40 anos, Pier Paolo Pasolini fazia publicar no jornal “Paese sera” uma carta aberta a Italo Calvino, que o havia criticado pelas suas posições políticas, linguísticas e estéticas relacionadas ao que seria uma espécie inocente de nostalgia do mundo pré-burguês. Tal nostalgia, para Calvino, impediria Pasolini de compreender a fundo o mundo que lhe era contemporâneo. Nesta famosa carta, Pasolini responde às críticas realizando, na verdade, uma súmula do seu pensamento apaixonadamente anticapitalista. Há ali a crítica ao consumismo, ao fascismo, à modernização homogeneizante das classes populares, à posição isolacionista dos intelectuais em relação ao povo. Tudo isso embalado pelo rancor com a perseguição que Pasolini sofreu por parte do conservadorismo da sociedade italiana. O texto, com isso, é dialeticamente datado e atualíssimo, pois nos ajuda a ver as raízes de um movimento global que atinge hoje feições paroxísticas.
Como forma de lembrar este grande escritor e a sua combatividade, apresento, na coluna desta semana de Horizonte Cerrado, uma tradução livre da referida carta, também com o objetivo de dar ao leitor brasileiro a oportunidade de sentir um pouco de saudade do empenho estético/político apaixonado de Pier Paolo Pasolini (1922-1975).
———————————————————-
8 de julho de 1974
Mesquinhez da história e imensidão do mundo camponês
Caro Calvino,
Maurizio Ferrara diz que eu tenho saudade de uma “idade de ouro”, você diz que eu tenho saudade da “Italietta”: todos dizem que tenho saudade de alguma coisa, conferindo a esta saudade um valor negativo e, portanto, tornando-a um alvo fácil.
Isto de que sinto saudade (se é que se pode falar em saudade) expus claramente, até mesmo em versos (“Paese sera”, 5-1-1974). Que outros tenham fingido não me entender é natural. Mas me espanto de que você (que não tem razão para fazê-lo) não tenha desejado me compreender. Mas então você não leu nem um verso das Cinzas de Gramsci ou de Calderón, não leu uma só linha dos meus romances, não viu um só enquadramento dos meus filmes, não sabe nada de mim! Porque tudo aquilo que eu fiz e que sou, exclui pela sua natureza que eu possa ter saudade da “Italietta”. A menos que você me considere radicalmente mudado: coisa que faz parte da psicologia miraculosa dos italianos, mas que exatamente por isso não me parece digna de você.
A “Italietta” é pequeno-burguesa, fascista, democrata-cristã; é provinciana e às margens da história; a sua cultura é um humanismo escolástico formal e vulgar. Você deseja que eu tenha saudade de tudo isso? Por aquilo que me compete pessoalmente, esta “Italietta” foi um país de militares que me prendeu, processou, perseguiu, atormentou, linchou por quase duas décadas. Isto um jovem pode não saber. Mas você não. Pode ser que eu tenha tido aquele mínimo de dignidade que me permitiu esconder a angústia de quem, por anos e anos, esperava todo dia a chegada de uma citação do tribunal e tinha terror de olhar as bancas de revista para não ler, nos jornais atrozes, notícias escandalosas sobre a própria pessoa. Se tudo isso posso eu esquecer, entretanto, você não pode…
De outra parte, esta “Italietta”, por aquilo que entendo, não acabou. O linchamento continua. Talvez agora quem o organize seja o “Espresso”; veja a notinha introdutória (“Espresso”, 23-06-1974) a algumas intervenções sobre a minha tese (“Corriere della Sera”, 10-06-1974): notinha na qual mofa de um título não dado por mim, extrapola lepidamente o meu texto, naturalmente deturpando-o horrendamente, e, enfim, lança sobre mim a suspeição de que eu seja uma espécie de novo Tribuno da Plebe: operação da qual até agora cri que fossem capazes apenas os delinquentes do “Borghese”.
Eu sei bem, caro Calvino, como se desenvolve a vida de um intelectual. Sei porque, em parte, é também a minha vida. Leituras, solidão no escritório, cercado em geral de poucos amigos e muitos conhecidos, todos intelectuais e burgueses. Uma vida de trabalho e substancialmente honesta. Mas eu, como o doutor Hyde, tenho uma outra vida. Ao viver esta vida, devo romper as barreiras naturais (e inocentes) de classe. Romper as paredes da “Italietta”, e impelir-me, então, para um outro mundo: o mundo camponês, o mundo subproletário e o mundo operário. A ordem em que elenco estes mundos respeita a importância da minha experiência pessoal, não a sua importância objetiva. Até poucos anos este era o mundo pré-burguês, o mundo da classe dominada. Era só por meras razões nacionais, ou, melhor, estatais, que tudo isso fazia parte da “Italietta”. Para além desta pura e simples formalidade, tal mundo não coincidia de fato com a Itália. O universo camponês (a que pertencem as culturas urbanas subproletárias, e, precisamente até pouco tempo, aquelas minorias operárias – que eram verdadeiras e legítimas minorias, como na Rússia de 1917) é um universo transnacional: que, ademais, não reconhece as nações. Tudo isso é o avanço de uma civilização precedente (ou de um acúmulo de civilizações precedentes todas muito parecidas entre si), e a classe dominante (nacionalista) modelava tal avanço segundo os próprios interesses e os próprios fins políticos (para um natural da região de Lucca – penso em De Martino – a nação era estranha, foi primeiro o Reino Borbônico, depois a Itália do Piemonte, depois a Itália fascista, depois a Itália atual: sem solução de continuidade).
É deste ilimitado mundo camponês pré-nacional, e pré-industrial, que sobreviveu até pouco tempo atrás, que eu me sinto saudoso (não por acaso passo o maior tempo possível nos países do Terceiro Mundo, onde ele sobrevive ainda, apesar de o Terceiro Mundo estar também entrando na órbita do assim chamado Desenvolvimento).
Os homens deste universo não viveram uma idade de ouro, pois não estavam envolvidos, senão formalmente, com a “Italietta”. Eles viveram aquela que Chilanti chamou de a idade do pão. Eram, isto sim, consumidores de bens extremamente necessários. E era isto, talvez, que tornava extremamente necessária a sua pobre e precária vida. Aqui fique claro que os bens superfulos tornam superfula a vida (isto para ser extremamente elementar, e concluir com este argumento).
Que eu sinta ou não saudade deste universo camponês, isto é, de qualquer modo, problema meu. Isto não me impede, de fato, de agir sobre o mundo atual, assim como na minha crítica: ou antes, tanto mais lucidamente quanto mais dele me destaco e quanto mais aceito vivê-lo apenas estoicamente.
Disse, e repito, que a aculturação do Centro consumista destruiu as várias culturas do Terceiro Mundo (falo agora em escala mundial, e me refiro também às culturas do Terceiro Mundo, às quais as culturas camponesas italianas são profundamente símiles): o modelo cultural oferecido aos italianos (e de resto a todos os homens do globo) é único. A conformação a tal modelo se acha antes de tudo no vivido, no existencial; e, portanto, no corpo e no comportamento. É aqui que se vivem os valores, não ainda expressos, da nova cultura da civilização do consumo, isto é: do novo e do mais repressivo totalitarismo que jamais foi visto. Do ponto de vista da linguagem verbal, se tem a redução de toda língua a língua comunicativa, com um enorme empobrecimento da expressividade. Os dialetos (os idiomas maternos!) estão afastados no tempo e no espaço: os filhos são coagidos a não falá-los mais porque vivem em Turim, em Milão ou na Alemanha. Lá onde esses dialetos são falados agora, eles perderam sua potencialidade inventiva. Nenhum rapaz das periferias romanas seria hoje capaz de, por exemplo, compreender a gíria dos meus romances de dez ou quinze anos atrás: e, ironia do destino!, ele seria obrigado a consultar o glossário anexo como um bom burguês do Norte!
Naturalmente, esta minha “visão” da nova realidade cultural italiana é radical: observa o fenômeno como fenômeno global, não as suas exceções, as suas resistências, as suas sobrevivências.
Quando falo de homogeneização de todos os jovens, segundo a qual, desde o seu corpo, desde o seu comportamento e desde a sua ideologia inconsciente e real (o hedonismo consumista), um jovem fascista não pode ser distinguido de todos os outros jovens, enuncio um fenômeno geral. Sei muito bem que existem jovens que se distinguem. Mas são jovens pertencentes à nossa própria elite, e condenados a ser ainda mais infelizes que nós: e, portanto, também provavelmente melhores. Digo isso devido a uma alusão (“Paese sera”, 21-6-1974) de Tullio de Mauro, que, depois de ter se esquecido de convidar-me para um congresso linguístico de Bressanone, reprovava-me por não ter a ele comparecido: lá, disse ele, eu teria visto alguns jovens que contradizem a minha tese. É como dizer que, se algumas dezenas de jovens usam o termo “eurística”, quer dizer que tal termo é utilizado por cinquenta milhões de italianos.
Você dirá: os homens sempre foram conformistas (todos iguais uns aos outros) e sempre existiram elites. Eu respondo a você: sim, os homens sempre foram conformistas e o mais possível iguais uns aos outros, mas segundo a sua própria classe social. E, no interior dessa distinção de classe, segundo as suas particulares e concretas condições culturais (regionais). Hoje, ao contrário, (e aqui reside a “mutação” antropológica) os homens são conformistas e todos iguais uns aos outros segundo um código interclassista (estudante igual operário, operário do Norte igual a operário do Sul): ao menos potencialmente, na ansiosa vontade de uniformizar-se.
Enfim, caro Calvino, gostaria de fazer-lhe notar uma coisa. Não como moralista, mas como analista. Na sua apressada resposta às minhas teses, no “Messagero” (18 junho 1974), escapou a você uma frase duplamente infeliz. Trata-se desta frase: “Os jovens fascistas de hoje não conheço nem espero ter ocasião de conhecê-los”. Todavia: 1) certamente você não terá nunca tal ocasião, também porque se, numa cabine de trem, na fila de uma loja, na rua, em uma sala de visitas você encontrasse jovens fascistas, não os reconheceria; 2) felicitar-se por não encontrar nunca jovens fascistas é uma estupidez, porque, ao contrário, nós devemos fazer de tudo para identificá-los e para encontrá-los. Eles não são os fatais e predestinados representantes do Mal: não nasceram para serem fascistas. Ninguém – quando eles se tornaram adolescentes e ganharam capacidade de escolha, segundo qualquer razão ou necessidade – colocou neles de modo racista a marca dos fascistas. É uma atroz forma de desespero e neurose a que precipita um jovem a uma escolha como essa; e talvez bastasse uma só experiência diversa na sua vida, um simples e só encontro, para que o seu destino fosse diverso.
Pier Paolo Pasolini
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com