Manifesto ictiofágico
Manifesto ictiofágico
No princípio era a Fome (lei da Gravidade e lei do Homem),
uma fome desconforme sem nome
do tamanho do mundo e o novo mundo nascente
não havia fronteiras nem fim, que nem enormíssimo tabuleiro
de desova de tartarugas e viveiro de outros gados do rio.
Em riba do céu sem nuvens brilhava o sol sem descanso
um olho aceso que tudo vê até o âmago do coração da gente
era, diz-que, sempre meio-dia panela no fogo barriga vazia
sapo seco da beira da baía: ciência da vida e da morte
o disco solar pairava sobre o Nilo, Gânges e o primitivo Amazonas
ou Paraná-Uaçu, aliás Guiene…
Arte primeva marajoara na universidade da maré
mestrado da cobra Jararaca no invento da zarabatana vingadora
e a guerrilha metafísica dos caruanas revoltados
contra a destruição da natureza da terra e dos filhos da terra,
Criaturada grande sempre esperta:
que nem saracura na reponta da maré…
“Deus quanto quer matar primeiro dementa”, diziam os antigos:
modernamente eis o Apocalypso
ou a patuscada do “fim da História”
revelação supimpa da Mu/dança climática
e outras baratarias performáticas.
Ditadura da água e do trabalho filho da dura labuta
naquele tempo pré-histórico, paresque, não havia acontecido ainda
a primeira noite do fim do primeiro dia do mundo
aquela coisa estúrdia no fundo do rio
guardada secretamente dentro dum caroço de tucumã
magia da cobragrande Boiúna a dar como dote de casamento
da filha dela com um certo índio protegido do espírito Jurupari
ser encantado que fala e ri pela boca do pajé:
passagem da mãe Natureza para a riqueza da Cultura
no ventre da noite grande
e a fome era tanta que a gente comia tudo que aparecia pela frente:
foi aí antão que o peixe do mato foi a salvação da lavoura.
Aleluia, peixe frito no prato e farinha na cuia! Piracema
e Mandioca utilíssima, dança do peixe… Pirapuraceia,
contação de estória e reprodução da humanidade,
a aldeia em vésperas de vir a ser feira e cidade
no Ver O Peso da vida ribeirinha das ilhas filhas da Pororoca.
Sem eira nem beira a gente andava tão-só atrás do de comer
cinco mil anos contemplam a velha estória sem outra escrita
que não seja a memória desta gente debuxada no espingarito das estrelas
pela escada da terra ao céu pelas gerações armoriais
e a pintura rupestre na aba das serras nos confins na recriação do mundo.
Canoa, remo e pari estavam ainda no cerne da árvore da imaginação
pra vir a ser inventados pela necessidade mãe de todas invenções
os sonhos mais que esperavam a vinda da primeira manhã
após a primeira noite do mundo
trazendo libertação do império do trabalho segundo a lei do Jurupari
pelo direito à Preguiça ou o ócio com dignidade para os eleitos de Tupã
anunciado em segredo na Casa dos Homens verdadeiros ou abaetés.
Apesar da grande grandeza da fome no mundo da humanidade
filha da animalidade
não é verdade que a gente coma gente pra encher o bucho e matar a fome…
a santíssima antrofagia é uma coisa sagrada: eucaristia do bom Selvagem
cheia de mistério e respeito profundo pelo inimigo invejado
trata-se da sublimação da fome original pelas virtudes da guerra
até que o venerável Tempo, o ancião e senhor da razão
disse basta e inventou maneiras outras
de competição natural em busca da infinita paz da Terra sem mal
(utopia de bem-aventuranças: onde não há Fome, trabalho escravo,
doença, velhice e morte):
“venha a nós o vosso reino”… o comunismo final igual
ao que era nos princípios da Terra mãe original
depois daquele dia infernal e do purgatório
da Primeira noite do mundo.
Eis a razão oculta pela qual a ictiofagia é o progresso santificado
da antropofagia através da espiral evolutiva do enlace
entre o acaso e a necessidade: encontro da fome com a vontade de comer.
E não foi sem porém que um dia por vias tortas
chegou a desconforme notícia entrando como vento pelas portas
que, paresque, grandes igaras do mar traziam males infinitos
com falsas promessas de bonança desde as ilhas do Caribe
lá fora onde o Pará tem seu mais antigo porto que era seguro.
Quando o repiquete branco estrondou com os canhões do Presépio
esta gente já estava escolada…
Deixa estar que mesmo assim a gente carecia aprender falar
com os inimigos: o preço da aula foi enorme…
e já que não os podíamos vencer nos juntamos a eles.
Portanto, juntos e misturados aos bravos tupis
e aos negros da Guiné
“fizemos Cristo nascer na Bahia ou em Belém do Pará”
agora vamos ver o peso da mistura e saber onde tudo isto vai dar.
José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.
autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com