Brasília, capital mundial das águas, merece banho de amazonidade.

 

Brasília, “Capital Mundial das Águas”, ilha da Modernidade, Distrito Federal do maior país amazônico do mundo. Gigante da América do Sul pela própria natureza, Brasília amazônica graças aos 2400 quilômetros do segundo maior rio cem por cento brasileiro, o Tocantins; do Planalto para a Planície há de amazoniar o Brasil com certeza pelas Águas Emendadas, Água Mineral e o milagre dos peixes do Cerrado: estação primeira da agroecologia brasileira a ocupar casas e apartamentos na mais avançada agricultura urbana do Pindorama.

 

No seio do primitivo e invisível Mar-Oceano das imaginações da Terra seu coração materno posto, poeticamente, no Planalto Central do Brasil a repartir águas batismais da constelação do Cruzeiro às bacias geoculturais do Amazonas, Prata e São Francisco.

 

A bom engendrar diversidade de vida e cultura pelas regiões naturais do antiquíssimo país tapuia do Arapari (Cruzeiro do Sul) — Brasil primordial –, desde as mais velhas migrações do mar do Caribe para Terra Firme através das Guianas e dos cinco mil anos de nomadismo Paleo-Índio na Amazônia com suas pinturas rupestres por certidão de nascimento.

 

Sem esquecer jamais nossa Amazônia mais velha, no Maranhão e Piauí, seus vestígios do velho homem americano em Pedra Furada e Serra da Capivara: o que faz do Norte e Nordeste o mais antigo e significativo torrão do país gigante. Portanto, não é caso do Brasil ocupar o imaginário “espaço vazio” da Amazônia, mas ao contrário: o espírito amazônico conquistar corações e mentes vazias do desnorteado Brasil, que por exemplo Ariano Suassuna criticava tanto.

 

Por falar em Guianas e Ariano Suassuna, sabem os brasileiros por acaso que na época colonial houve na faixa equatorial do novo mundo uma certa Guiana portuguesa e sebastianista (graças à paz de Mapuá-Marajó, 27 de Agosto de 1659), que pela Adesão à Independência (Muaná-Marajó, 28 de Maio de 1823) hoje é brasileira com o Amapá, Baixo Amazonas amazonense e paraense incluindo as ilhas do Marajó (o maior arquipélago fluviomarinho do planeta), a região do Rio Negro e estado de Roraima partes da grande “oval insular” (cf. o geógrafo brasileiro Raja Gabaglia) ou grande “ilha das Guianas” do francês Elisée Reclus?

 

Pois é, antigo país do lendário El Dorado conectado às Antilhas pelo delta do Orenoco reunindo regiões amazônicas do Brasil, Guiana, Guiana ou Amazônia francesa, Suriname e Venezuela. Desafio a novos descobrimentos pelos caminhos da geografia cultural a ser feitos, na época pós-colonial, por intrépidos viajantes do século XXI. 

 

Um outro Brasil de norte a sul visto e revisto por terra, rio, mar e ar pelos meandros do espaço milenar e 400 anos de história colonizadora além da metrópole da Amazônia Oriental e da Amazônia Ocidental, respectivamente Belém e Manaus. Qual grande cidade brasileira deve assumir sua própria amazonidade se não a capital do Brasil brasileiro?

 

Se não fosse por mais nada, notadamente o Distrito Federal ser uma das mais interessantes vertentes da bacia amazônica, através do rio dos Tocantins; bastaria o fato de Brasília ser sede permanente da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), coluna vertebral da integração sul-americana e fonte de inspiração do diálogo criativo no concerto das nações da América latina e do Caribe.

 

Portanto, na maturidade da cidade visionária ela precisa incorporar em sua cultura urbana a porção amazônica da nacionalidade brasileira, com muito orgulho e fé no futuro, para todo mundo ver o peso da história e como se deve fazer a ecocivilização do amanhã sem contradição mortal com o passado tropical pré-colombiano.

 

Por exemplo, neste reencontro entre a antiguidade e a modernidade do Brasil profundo, por que reprimir o pensamento libertador e não imaginar em Brasília uma combinação provocativa de ecomuseu pan-amazônico e centro de pesquisa do Homem Marajoara — primeiro artista brasileiro na história pré-colonial — destinado a reanimar a arte primeva do Brasil, em projeto com a UNESCO para repatriar coleções de cerâmica marajoara e amparo às comunidades tradicionais através do Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari?


 
Há que se resgatar os caminhos da geografia pré-colombiana, na lição perene de Sérgio Buarque de Holanda: onde carreiros da caça se transformaram em trilhas entre aldeias indígenas e fronteiras naturais até abrir os caminhos dos sertões da pajelança para o Mar profundo da encantaria africana e invenção judaico-cristão do catolicismo sertanejo. Berço natal do Brasil moderno e da integração continental da América do Sul.

 

Já os brasileiros contemporâneos devem saber, de cor e salteado, da antiguidade do sonho candango desde o imaginário do velho mundo até a premonição de Dom Bosco inclusive; sua concretude moderna na pátria antiga brasílica dos povos originais Macro-Jê ou Tapuia no Planalto Central, conhecido no mundo pela ciência urbana moderna com Lúcio Costa e o concretismo poético da curvilínea arquitetura de Oscar Niemeyer.

 

Roteiros… Roteiros… Roteiros… E o “Manifesto Antropofágico” pelo grão-canibal literário Oswald de Andrade: “fizemos Cristo nascer na Bahia ou em Belém do Pará”.

 

Amazonizar o Brasil é preciso, “desenvolver” a Amazônia sob patas de bois e correntão a rastros de trator derrubando a Floresta Amazônica custe o que custar, não é preciso… Pelo contrário, tamanha imprudência e afoiteza bandeirante foi longe demais. Urge inventar o desenvolvimento sustentável com sabedoria e humildade de uma grande nação tropical multicultural com visão de mundo e fundamental compromisso com a humanidade.

 

Um banho de amazonidade, quero dizer, a fim de despertar o gigante: o espírito amazono encantado há de produzir, desde Brasília sobre a Rosa-dos-Ventos, a ecocivilização que o mundo tanto espera. O fim da estória do “celeiro do mundo” pela concretude cultural, científica e política da utopia brasílica da Terra sem Mal que, com certeza, Darcy Ribeiro com Florestan Fernandes dentre outros tuxauas da intelligentsia tupiniquim explicam com mais profundidade. E, seguramente, o imortal Ariano Suassuna não se faria de rogado para endossar sob aplauso do índio sutil chamado Dalcídio Jurandir, defensor intransigente da Criaturada grande amazônida.

 

Mas, espera aí, de que ecocivilização estamos nós falando de acordo com Ignacy Sachs e outros gurus da pós-modernidade? Não carece inventar a roda. Pois não há discordância insuperável entre tais teorias e a velha práxis dos povos tradicionais, todavia é preciso olhar atrás e descobrir — bem debaixo do nosso arrebitado nariz civilizado –, de fato que de dentro do mato mais de 1500 anos nos contemplam desde tesos arqueológicos da ilha do Marajó. Onde a singular Arte primeva brasileira e primeira cultura complexa da Amazônia, a Cultura Marajoara, se perde entre chuvas e esquecimento em triste confusão mental e disritmia entre o país real e o país oficial pra inglês ver.

 

Um banho de amazonidade, por exemplo, será levar “Banho de Cheiro” de Eneida em embaixada da república cultural marajoara a Brasília apresentando a Criaturada grande de Dalcídio ao Planalto Central pela Academia do Peixe Frito em convite aberto ao bravo povo brasileiro. Como fazer? Não sei, só sei que há de ser assim. Parodiando Suassuna, no Auto da Compadecida (“Não sei, só sei que foi assim!):

 

o navio encantado, ou seja a cobragrande Boiúna do rio Marajó-Açu, tal qual o “Ita do Norte”, na ilhinha Itaguari prestes a zarpar em viagem ao alto curso do Tocantins. Dalcídio Jurandir no timão como piloto-mor e Bruno de Menezes no comando aguardam a confraria vindo do Ver O Peso em canoa à vela: Vicente Salles partiu do Caripi e foi buscar sabença de velhos pajés e pais de santo em Maiandeua para avio espiritual desta extraordinária jornada.

 

Desde o Nordeste, na Paraíba distante, saiu pelo mar em jangada o poeta Rodrigues Pinajé rumo ao Salgado Paraense. Fez ele parada obrigatória na ilha de Dom Sebastião, no Maranhão; para trazer encantaria da Mina e já no Pará tomou bença ao Rei Sabá, em São João de Pirabas, para enfim pegar o trem da Estrada de Ferro de Bragança e vir a pé do Largo do Operário até o Mercado do Peixe, em Belém.

 

Lá já estava Eneida de Moraes com estoque imenso de “Banho de Cheiro”, Tó Teixeira com seu violão mágico chamava os “Vândalos do Apocalipse” a embarcar antes da maré virar. Jacques Flores e os mais estavam prestos a bordo da canoa “Caripirá” na Doca… Abguar Bastos vem do Acre passando antes por Manaus, Raul Bopp foi buscar “Cobra Norato” nas funduras do Xingu o qual, depois de ter sentado praça como marinheiro no Rio de Janeiro, vai ser guarda marinha no lago do Paranoá a cabo desta jornada.

 

Logo mais o navio encantado com toda Academia do Peixe Frito a bordo vai zarpar e subir o Rio Pará até a confluência deste com a baia de Marapatá e remontar os 2.400 quilômetros do rio dos Tocantins. Haverá paradas necessárias no percurso. No estado do Pará ainda será preciso fazer conferência de carga literária no porto de Cametá e apurar a “História do Futuro”, do payaçu dos índios Padre Antonio Vieira, rememorar o “Sermão aos Peixes” proferido no Maranhão a caminho de Portugal. O Quinto Império do Mundo e a pax dos Nheengaíbas… quanto os sete caciques do Marajó, a tripulação de Tupinambás da flotilha portuguesa e Jesuítas em Mapuá atiraram no que viam, de cada lado, e acertaram no que não viam: a mistura fina do mito da Yby Marãey (terra sem mal) e o messianismo da lenda do Rei Dom Sebastião. Esta notícia supimpa, mas retrasada; a ser lembrada ao distinto público do Teatro Nacional de Brasília.

 

Em Tucuruí, o navio encantado há de criar asas que nem peixe voador; enquanto a eclusa não funciona; e passar por cima da barragem da hidrelétrica. Tempo de lembrar o sonho faraônico de Henri Coudreau com aquela enormíssima ferrovia de Belém do Pará, atravessando o Tocantins em Alcobaça (hoje Tucuruí), até o Pacífico, no Chile. Em Marabá um minuto de silêncio em memória dos mortos da Guerrilha do Araguaia antes de seguir ao Maranhão e ancorar em Imperatriz.

 

Pausa para meditação. Este trecho maranhense do rio dos Tocantins foi talvez o mais importante entroncamento da saga da nação Tupinambá pelos caminhos do sertão, desde Pernambuco, afora o caminho do Maranhão pela costa do Salgado para dentro do Pará pelo Caeté e Guamá.  Relato do mameluco Diogo Nunes, em 1538, antes do descobrimento do “rio das Amazonas” pelo espanhol Francisdo de Orellana, fala de uma grande migração durante doze anos, com 14 mil tupinambás incluindo mulheres e crianças, saídos de Pernambuco pelo sertão, chegaram ao Solimões, no Alto Amazonas. Fugindo da escravidão dos portugueses, na extração de pau-brasil na costa do Nordeste, caíram os migrantes tupis na escravidão dos conquistadores espanhóis nas minas do Peru.

 

Nem o poeta paraibano Rodrigues Pinajé encontra explicação para tamanha façanha e desgraça ao mesmo tempo do Bom Selvagem. Há que imaginar a travessia do sertão pela Caatinga adentro e o motivo que poderia fazer aquela brava gente comedora de carne do tapuia, a fugir do litoral para seguir a esperança dos caraíbas, não mais rumo ao sol nascente, mas para o poente a comer caça pequena e sofrer sede até encontrar a mata verdadeira (caa eté) e fartura de águas. Não apenas água, mas águas assim no plural sob regime pluvial avultado. Era, então, o paraíso procurado na terra dos Tapuias? Ou o inferno verde…

 

Abguar Bastos, o mais entendido nas águas do grandíssimo Amazonas; disse que era preciso subir o rio das Amazonas até suas fontes para ter ideia da formidável saga dos Tupinambás. Precisamente, o que os caraíbas fizeram depois de chegar às barrancas do Tocantins. Mas, onde até a imaginação deixa furos no casco do navio encantando; a realidade terrena do caminho da geografia refaz a grande viagem com ajuda de GPS e estudo do clima arqueológico a saber da trilha dos precursores das migrações do Nordeste para o grande Amazonas ou Grão-Pará.

 

Como hipótese de trabalho, o caminho do sertão de Pernambuco até a beira do Tocantins aponta ao antigo sítio que hoje é Imperatriz ou outro ponto onde o sol costumava atar a rede para passar a primeira noite do mundo. Bandeirantes de São Paulo de Piratininga preando índios para escravidão também chegaram a estas paragens maranhenses, entre fins do século XVI e inícios do século XVII.

 

Bandeirantes navegavam da nascente em direção à foz dos rios, enquanto entradas e missões subiam tentando chegar às nascentes. Tal qual o navio encantado nesta entrada literária às Águas Emendadas. Das entradas ao rio dos Tocantins, a que mais interessa agora foi a que se realizou no ano de 1658, um ano antes do padre Antonio Vieira proclamar Bandarra como verdadeiro profeta do Quinto Império, em Cametá; pelos jesuítas Manuel Nunes e Francisco Veloso, os primeiros a fazer missão no sítios onde, talvez, mais de cem anos antes passaram os antropófagos buscadores da Terra sem Mal e hoje está assentada a cidade de Imperatriz.

 

Deixando a margem do Maranhão, uma nova parada será feita na cidade de Peixe (TO) para depois penetrar Goiás vencidos os 1900 quilômetros navegáveis por embarcações físicas. Todavia para o navio encantado tudo neste mundo são profundas águas emendadas e o destino da jornada não pode sofrer obstáculo. Vez por outra o navio encantado será caravela voadora até chegar às margens plácidas do lago Paranoá e a embaixada da Academia do Peixe Frito habitar a paisagem cultural de Brasília.

 

 

 José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com