O mercado contra Dilma
O ex-ministro Delfim Netto vale-se de uma comparação para explicar a democracia moderna. Ela seria resultado, diz ele, de um equilíbrio entre “as urnas e os mercados”. Um existe para corrigir o outro e formar um equilíbrio. Nas últimas duas eleições presidenciais, em 2006 e 2010, o deus “mercado” parecia resignado em aceitar o desejo soberano do voto. Embora nunca tenham gostado e provavelmente nunca venham a gostar do PT ou de qualquer outra alternativa à “esquerda”, os representantes do sistema financeiro atuaram de forma discreta naquelas disputas.
Em 2014, o cenário é bem diferente. A exemplo de 2002, quando o terrorismo financeiro virou uma arma contra Lula, os “mercados” reavivaram o apetite pela atuação política mais incisiva. Ainda não apareceu um dilmômetro, o equivalente ao lulômetro, criado para medir riscos associados à eleição do petista. Mas, se verá adiante, os analistas financeiros formularam uma equação para “precificar” as possibilidades de vitória ou derrota da atual presidenta. Composta de maneira até certo ponto pueril, a equação virou no mínimo uma diversão nas horas vagas de quem nutre obsessão por números. Ganhe Aécio Neves, vença Eduardo Campos, o importante é derrotar o PT, parece sugerir o índice da BM&FBovespa, na correlação estabelecida com as pesquisas de intenção de voto. A cada sondagem favorável à oposição, ele sobe e o inverso ocorre quando há uma recuperação de Dilma. Ou, ao menos, assim justificam as mesas de operação.
Na quarta 23, a presidenta tinha 48% de probabilidade de se reeleger, calcularam corretoras e bancos atuantes na BM&FBovespa. No dia seguinte, a chance aumentou para 50%. A primeira estimativa refletiu o resultado da pesquisa Datafolha da quinta 17, com empate técnico dos candidatos no segundo turno. Essa perspectiva, considerada auspiciosa pelo chamado mercado, elevou o índice da bolsa para 57.983 pontos. A segunda projeção espelhou outro levantamento, feito pelo Ibope, com vitória da candidata do PT no primeiro turno. Uma má notícia, consideraram analistas e operadores, suficientemente ruim para o Ibovespa regredir a 57.390 pontos, às 16h20 (fecharia em 57.419).
A fórmula utilizada para chegar às estimativas apontadas acima tem complexidade pouco superior à de uma conta de balcão de padaria, e é ainda mais tosca diante dos cálculos de derivativos e outros instrumentos financeiros herméticos usados pelas mesmas instituições antes e depois da crise mundial de 2008. Eis a equação:
Pganha = (preço hoje – Xperde) / (Xganha – Xperde)
Onde:
Pganha: é a probabilidade implícita de Dilma vencer, hoje precificada na Bolsa
Preço hoje: é o Ibovespa atual
Xperde: é a estimativa do quanto
o Ibovespa pode atingir se ela perder
Xganha: é a estimativa do quanto o Ibovespa pode atingir se ela ganhar
O uso dessa fórmula, emprestada da área de renda fixa das instituições, é cotidiano e generalizado. As referências para o cálculo das probabilidades dos candidatos nas eleições de 2014 são o Ibovespa do dia e os extremos inferior e superior alcançados nos últimos cinco anos. O índice atingiu um vale de 45 mil pontos duas vezes nesse período, em 12 de julho de 2013 e em 17 de março de 2014. O pico foi de 72.995 pontos, em 4 de novembro de 2010 (na maior parte dos casos, usam-se como referência 70 mil pontos). A Merrill Lynch estima agora uma alta menos espetacular, para 65 mil pontos, no caso de uma derrota de Dilma.
A fórmula corporifica os interesses e a ideologia do sistema financeiro e faz lembrar do lulômetro, expressão matemática criada pelo banco Goldman Sachs para prever qual seria a cotação do dólar caso Lula vencesse as eleições presidenciais de 2002. Nem o mercado equipara, porém, os riscos daquela conjuntura econômica com a atual. Lula herdara do segundo governo FHC um país combalido por uma crise cambial e maxidesvalorização do real, com reservas de irrisórios 35 bilhões de dólares. Quando transmitiu o cargo a Dilma Rousseff, o total das reservas somava 288,6 bilhões de dólares e hoje atinge 368,7 bilhões. Essa é uma das diferenças. Há várias outras, mencionadas adiante.
“A desconfiança expressa na aposta diária do mercado contra a reeleição se concentra no descontentamento de minoritários com os rumos da Petrobras e começou há quatro anos, com o lançamento de 115 bilhões de reais em ações da empresa, em setembro de 2010”, analisa o consultor de investimentos Luiz Antonio Vaz das Neves, sócio da KNA. A operação de captação de recursos necessários aos investimentos da empresa diluiu excessivamente o valor dos títulos em poder desses acionistas, nas contas do setor financeiro. A conclusão foi seguida de uma venda maciça dos papéis, com destaque para a posição de George Soros, equivalente, na época, a 640 milhões de dólares. O movimento acentuou a tendência de realização dos títulos da empresa entre as instituições financeiras estrangeiras, detentoras de 85% da subscrição, dada a influência do megainvestidor, conhecido nos anos 1990 pela especulação bem-sucedida contra o Banco Central da Inglaterra, quando ganhou 1 bilhão de dólares em um dia.
Parênteses: em 2002, o mesmo Soros, ex-patrão de Arminio Fraga, principal consultor econômico de Aécio Neves nesta eleição, verbalizou o medo do mercado financeiro em caso de vitória de Lula. “Será o caos”, afirmou à época. O próprio Arminio valeu-se recentemente do mesmo recurso. Segundo ele, seria “um desastre” a reeleição de Dilma Rousseff.
Com a aproximação do período eleitoral, a mídia revisitou temas considerados relevantes pelo mercado, entre eles a associação, em 2005, da Petrobras com a estatal venezuelana PDVSA para a construção da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, resultado de um acordo firmado entre os presidentes Lula e Hugo Chávez. A obra é objeto de inquérito por suspeita de superfaturamento e lavagem de dinheiro. As suspeitas aumentaram com a prisão de Paulo Roberto Costa, ex-diretor da estatal acusado de operar um esquema de propina em parceria com o doleiro Alberto Youssef. Retornou também às manchetes a compra, em 2006, pela Petrobras, de 50% da empresa Pasadena Refining System, no Texas, em operação supostamente superfaturada. O conselho de administração da estatal brasileira era presidido por Dilma Rousseff, à época ministra da Casa Civil. A presidenta alegou ter votado favoravelmente à aquisição com base em informações incompletas. A oposição e a mídia tentaram responsabilizá-la pelo “mau negócio”, mas o TCU a considerou inocente. A possibilidade de as CPIs sobre o assunto prosperarem no Congresso é limitada pelo risco de atingirem a oposição.
Os casos de Abreu e Lima e Pasadena aumentaram a insatisfação de investidores, principalmente dos estrangeiros, com a gestão da empresa. A eleição em abril para uma vaga do conselho de administração da Petrobras foi alvo de disputa internacional acirrada. A gestora de recursos britânica Aberdeen, os fundos de pensão California State Teachers’ Retirement System e Universities Superannuation Scheme, a gestora F&C Management e a consultoria Hermes Equity Ownership Services fizeram campanha por José Guimarães Monforte, conhecido executivo do setor financeiro com passagens pelo Citibank e a Merrill Lynch. No material de campanha, os estrangeiros fulminaram as aquisições das refinarias e a política de contenção de preços dos derivados de petróleo, praticada, no seu entendimento, com objetivos eleitorais. A Bradesco Asset Management propôs a reeleição do empresário Jorge Gerdau Johannpeter, controlador de uma das principais empresas privadas nacionais. Monforte e seus patrocinadores derrotaram Gerdau e a Bradesco Asset Management e conquistaram um assento no conselho da estatal.
A ação da Petrobras tem grande peso no cálculo do Ibovespa e as instituições estrangeiras dominam os negócios na Bolsa. São as principais detentoras de posições compradas a futuro, uma aposta na alta do índice e na vitória da oposição. Na terça 22 tinham 96.370 contratos comprados e a BM&FBovespa acumulava 256 mil contratos em aberto, um recorde. De janeiro até a primeira quinzena de julho, as 15 instituições financeiras mais ativas nesse mercado movimentaram 1,706 trilhão de reais. No topo, com 236 bilhões de reais, a corretora UBS, antiga Link, dos filhos de Luiz Carlos Mendonça de Barros, nascida com perspectivas radiosas de desenvolvimento depois da privatização promovida pelo governo Fernando Henrique, a envolver, por conduta suspeita, o então ministro e pai da rapaziada, afastado no final do episódio. Segue-se a Credit Suisse, ex-Hedging Griffo, com 195 bilhões. A terceira posição é ocupada pelo Morgan Stanley (160 bilhões) e em quarto lugar está a corretora brasileira XP, com um movimento de 133 bilhões. Seguem-se Merrill Lynch (116 bilhões), Itaú (83 bilhões), BTG Pactual (65 bilhões), JP Morgan (59 bilhões) e Goldman Sachs (55 bilhões). Reunidas, detêm o maior volume entre as 15 instituições mais atuantes no mercado futuro do Ibovespa.
A especulação do mercado não assumiria as proporções atuais sem equívocos do governo. “Para 2015, há enormes desafios nas áreas fiscal, externa, de rearticulação dos grandes projetos de investimento da Petrobras e do pré-sal, de infraestrutura. Mas a dificuldade maior vai ser o resgate da confiança”, prevê o consultor Antônio Corrêa de Lacerda, professor da PUC de São Paulo. O primeiro motivo para a perda de credibilidade foi a tentativa de reduzir os juros em 2012 e corrigir o câmbio seguida de um recuo diante da resistência encontrada. O governo voltou a elevar as taxas e gasta bilhões para manter o câmbio controlado. “O ideal seria realmente fazer o ajuste do câmbio, mas aí começaria aquele terrorismo quanto ao perigo da inflação e o governo ficou no meio do caminho”, avalia o economista. No fim, sucumbiu-se à “mesma tentação de todos os governos desde pelo menos 20 anos atrás, de usar o câmbio não como instrumento de desenvolvimento, mas como uma variável de ajuste de curto prazo”. A consequência foi uma forte ampliação do déficit em conta corrente (cômputo de todos os pagamentos e recebimentos relativos às exportações e importações de mercadorias e serviços e daqueles relativos a rendas, como juros e lucros), equivalente hoje a quase 4% do PIB.
A tentativa de desonerar o consumo para melhorar a competitividade, combinada à contenção do câmbio, equivaleu a pisar no freio e no acelerador ao mesmo tempo. A decisão de compensar a insuficiência da competitividade, de origem basicamente cambial, pelo lado fiscal, abalou as contas públicas. Seguiram-se tentativas de maquiar os maus resultados protagonizadas pelo secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin.
De quebra, Brasília decidiu conter os preços dos derivados da Petrobras. Um combustível de alta octanagem para a especulação e um baque no poder de geração de caixa da empresa, um freio para os investimentos destinados a alcançar a autossuficiência em petróleo. “Os erros são enormes, e a comunicação, muito falha. Quem é que fala sobre a política econômica? Antes, era o ministro Guido Mantega, um desastre, ele se comunica muito mal. Depois, o secretário Arno Augustin. Parece que agora é Dilma, mas o forte dela não é comunicação”, ressalva Lacerda.
O resultado é uma inflação pressionada, crescimento contido e desânimo geral. A interrupção da redução dos juros e da desvalorização do real afastou os aliados defensores dessas mudanças e não aproximou os partidários de políticas opostas. O governo não entendeu a falta de aplausos dos empresários quando baixou os juros. Empurrados para o rentismo durante anos seguidos de condições adversas à produção, ficaram inseguros diante da ameaça às suas aplicações financeiras.
O clima é ruim, mas as condições e as perspectivas do País são boas. O nível de reservas permite atravessar sem maiores solavancos o período necessário às correções da economia. A inflação está alta, mas não difere daquela dos principais países em desenvolvimento. É possível fazer a correção dos preços e melhorar a comunicação com o setor privado, por meio da nomeação de uma equipe sem desgaste, de boa interlocução com o mercado e conhecedora das questões brasileiras, em qualquer resultado eleitoral, inclusive o de reeleição. O governo, se reconduzido, terá de mudar a estratégia, pois ela se esgotou.
Uma reconstrução das bases da política econômica será beneficiada pela inexistência de uma crise cambial, um déficit manejável de 4% do PIB, desemprego ainda baixo (apesar do seu aumento na indústria), renda relativamente sólida e algum espaço para crédito e financiamento. A maioria das economias enfrenta desafios parecidos.
Na comparação com a década de 1990, os pontos fortes da economia atual sobressaem. Em 1999, o déficit em conta corrente estava próximo do atual, em proporção do PIB, entre 3,5% e 4%, mas o País estava indefeso. Em janeiro daquele ano, enfrentou uma crise cambial com reservas equivalentes a um décimo das atuais, estas suficientes para o financiamento do déficit de 80 bilhões de dólares por ano. Não por outra razão, há quatro anos o ingresso de investimento estrangeiro direto se mantém acima de 60 bilhões de dólares anuais.
A diferença de qualidade entre as reservas cambiais da década de 1990 e as de agora revela uma barreira à especulação bem mais sólida do que sugere uma comparação limitada a valores. Em 1996, totalizavam 60 bilhões de dólares, em grande medida dinheiro aplicado a curtíssimo prazo, o chamado smartmoney, atraído por uma taxa de juro de 25%. Na crise da Rússia, em 1998, no fim do primeiro mandato de FHC, o País perdeu 30 bilhões de dólares das suas reservas em pouco mais de um mês, o governo recorreu ao FMI, o Banco Central elevou a taxa de juro para 45% e adotou o câmbio flutuante. A queima de reservas por pouco não iguala a receita total das privatizações do período de Fernando Henrique, de 40 bilhões de dólares.
Se a especulação se apoia em fatos ligados à Petrobras, sua superação deve passar pela resolução de problemas da empresa. Apesar de a contenção tarifária limitar os investimentos, a empresa confirmou a CartaCapital a previsão de aumentar em 7,5% a produção média neste ano. Duas novas plataformas começaram a produzir no primeiro semestre e outras três deverão fazê-lo no segundo semestre. A interligação de novos poços contribuirá para aumentar o resultado. O crescimento da produção de janeiro a junho, estimado em 1,4% por instituições do mercado, atingiu 4,7%, diz a empresa. Trinta novos poços submarinos entraram em operação no período, o dobro do primeiro semestre de 2013. A eficiência operacional de todas as unidades de produção alcançou 91,6% em junho, recorde dos últimos 50 meses. No mesmo mês, a estatal informa ter atingido seu máximo histórico de produção de gás natural, com 66,4 milhões de metros cúbicos diários. O crescimento da produção no segundo semestre de 2014 será garantido pelo início de produção dos novos sistemas P-61, FPSO Cidade de Ilhabela e FPSO Cidade de Mangaratiba, e também pela interligação de novos poços às plataformas P-58 e P-62, com atividades iniciadas no primeiro semestre, e a melhora da eficiência operacional.
“O volume de poços interligados às plataformas dobrou no último ano e será ainda maior no segundo semestre, com a chegada de mais seis PLSVs (embarcações para interligar poços) até o fim de 2014. Além disso, a produtividade dos novos poços interligados na camada pré-sal tem se mostrado bastante elevada, frequentemente atingindo vazões superiores a 30 mil barris diários por poço”, informa a Petrobras.
Quem vencer as eleições presidenciais se verá diante destas opções definidas pelo professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP, Gilberto Bercovici, no livro Direito Econômico do Petróleo e dos Recursos Minerais: ou o excedente gerado pela exploração dos recursos naturais, especialmente o petróleo e os minérios, contribuirá para manter a economia brasileira dependente e associada, a reboque das variações de preços do mercado internacional de produtos primários, ou terá um papel decisivo no financiamento das políticas necessárias para superar o subdesenvolvimento e completar a construção da nação.
Arrefeça ou não o ímpeto imediato em relação à Petrobras, os dois meses de corrida eleitoral antes do primeiro turno devem intensificar o protagonismo do setor financeiro. É mais uma força contra o projeto de
Publicado em Carta Capital