“Eu durmo e vivo ao sol como cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!
Ando roto, sem bolso nem dinheiro
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza. […]
Tenho por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores […]
O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro […]
Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua […]
Sinto-me um coração de lazzaroni;
Sou filho do calor, odeio o frio […]”
(Álvares de Azevedo, Lira dos Vinte Anos, São Paulo, 1853)

Qual a rua mais representativa de São Paulo? A resposta a essa pergunta depende, obviamente, do momento que se considere e da perspectiva que se assuma. No início do século XX, quando foi inaugurado o moderno urbanismo da capital, provavelmente se tomaria a Rua Direita ou, mais amplamente, o conjunto integrado do Triângulo Central – Direita, 15 de Novembro e São Bento –, como o núcleo articulador da vida da cidade em processo rápido de remodelação. Com o desdobramento da área urbanizada para o lado oposto do Vale do Anhangabaú e o rápido crescimento do que passou então a ser chamado de Cidade Nova, vieram a assumir destaque predominante a Rua São João e a Rua Ipiranga. O deslocamento do eixo de investimentos para o espigão central, a sudoeste, projetaria a primeira e mais moderna das grandes avenidas, a Paulista, tornada desde os seus primórdios até hoje no principal cartão-postal da cidade. A contínua migração da fronteira de investimentos imobiliários na direção sudoeste geraria, porém, uma rápida sucessão de novas vedetes urbanas, a Faria Lima, a Berrini, a Águas Espraiadas e, mais recentemente, o complexo Avenida das Nações Unidas-Nova Faria Lima. Como se vê, não faltam candidatas competindo pela honra de responder à pergunta acima.
Se me fosse dado responder àquela questão, no entanto, diria que a rua mais emblemática da cidade é a Rua São Paulo. Claro, muitíssimo pouca gente sabe, soube ou jamais saberá onde fica a Rua São Paulo. Ela, portanto, e com mais justiça, talvez devesse figurar no rol das vias mais obscuras, desconhecidas e irrelevantes desta metrópole de mais de 100 mil ruas. Em que sentido então ela pode ser emblemática? Essa é a questão na qual pretendo me concentrar neste ensaio de reflexão sobre a urbanização paulista.
Quando se elege alguma via em particular como a mais representativa de uma cidade, o que se leva em consideração, em geral, é seu potencial de polarização de recursos, centralidade orgânica, articulação de fluxos, referência espacial, simbolização e visibilidade. Ou seja, o que define o seu papel e identidade é a sua condição ao mesmo tempo de núcleo da cidade-centrífuga, vitrine da cidade-mercadoria, de passarela da cidade-desfile, de palco da cidade-espetáculo e de pódio da cidade-poder.
Evidentemente a Rua São Paulo não se enquadra em nenhuma dessas categorias, muito pelo contrário. Mas, então, talvez coubesse perguntar se essa é a única maneira pela qual se pode definir a fisionomia e a substância de uma cidade. Ou será que também se pode tentar compreendê-la por aquilo que ela oculta, pelo que relega, pelo que escamoteia? Há desvãos, espaços e presenças que são como que resíduos varridos para debaixo do tapete vistoso da paisagem urbana. São seus pontos-cegos, justamente porque revelam seu avesso ou suas vísceras. Eles são o contraponto da identidade pretendida, são a sua mais completa negação, mas por isso mesmo também são a revelação daquilo que ela mais teme revelar: não a máscara exuberante, mas o rosto nu por trás da fantasia.
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A Rua São Paulo, originalmente chamada de Rua dos Ingleses, não fica em nenhum ponto remoto da capital. Bem ao contrário, ela está ligada ao coração do coração da cidade, no contexto da colina histórica em que foi fundada. Fica a uns 500 metros do marco central da cidade, na Praça da Sé e, portanto, a uns 700 metros do seu marco de fundação, no Pátio do Colégio. Ela fica no então chamado Distrito do Sul da Sé, depois denominado de Distrito da Glória e hoje conhecido como Bairro da Liberdade. Até meados do século XIX o Distrito da Glória assinalava o limite sul da cidade, compreendendo o Caminho do Carro de Santo Amaro (hoje Avenida da Liberdade), até o Largo da Pólvora, e se estendendo pelas duas baixadas, a do Tamanduateí ao leste (chamada de Caminho do Mar, atual Glicério) e a ribanceira do Anhangabaú a oeste. Como um espaço tão próximo, tão central e tão histórico pode se tornar invisível, abandonado e desconhecido?
A resposta é que aquele era o espaço maldito da cidade. A presença sinistra que galvanizava o Distrito da Glória por muito tempo foi a de um monte saliente, como uma gigantesca verruga geológica em meio à crista elevada do Caminho do Carro de Santo Amaro, conhecido pelo nome sombrio de Morro da Forca. O patíbulo fora ali estabelecido, desde 1775, por ordem expressa do vice-rei, o Marquês de Lavradio.
Aquele espaço estava portanto longe de ser invisível. Ele fora deliberadamente escolhido por ser visível de praticamente todos os quadrantes da cidade, expondo assim cruamente a todas as gentes a força da justiça implacável de Sua Majestade Imperial pairando sobre todos os seus súditos e supliciando exemplarmente os réprobos, recalcitrantes e insubordinados, mas sobretudo intimidando os escravos rebeldes.
Mesmo porque, a poucos metros dali, na conexão do Caminho de Santo Amaro com o Largo de São Gonçalo (atual Praça João Mendes), ficava o Largo do Pelourinho (atual Largo Sete de Setembro), ao lado da Cadeia, símbolo do poder municipal, onde os escravos eram açoitados aos olhos do público.
No espaço circunjacente a oeste do Morro da Forca se estendia o Cemitério Geral ou Cemitério dos Aflitos, o primeiro cemitério público da cidade (1779), destinado ao enterro dos condenados, dos indigentes e dos soldados. As sepulturas rústicas levavam apenas uma cruz de pau, sem nomes, datas, bênçãos ou encomendações.
Era o cemitério dos anônimos, dos desprezíveis e dos indignos. Naturalmente era também o cemitério dos escravos. Como, dentre os africanos – fossem eles bantus ou iorubas e jeje-nagôs subsaarianos –, o fulcro da tradição religiosa se concentra no culto dos antepassados, toda a região, o redor da forca e do cemitério, cercou-se da aura da mais elevada sacralidade. A capela do cemitério, chamada de Igreja dos Aflitos, tornou-se um centro devocional da religiosidade popular.
Mas, naturalmente, era o contexto espacial do Morro da Forca que catalisava as imaginações e as mais fortes cargas emocionais. Daí o hábito de fincar cruzes e acender velas naquele espaço. Dele derivaria a quintessencial Santa Cruz dos Enforcados.
Criou-se uma tradição lendária a respeito desse monumento crucial na história da cidade, que deve ser redimensionada em função da sacralidade intrínseca adquirida pelo local. A lenda gira em torno da figura do cabo Francisco José das Chagas, um homem negro. Em 1821, um ano antes da Independência, ele e o praça Joaquim José Cotindiba, também negro, encabeçaram um motim pelo pagamento de soldos atrasados, no 1oBatalhão de Caçadores aquartelado na cidade de Santos. Tendo sido presos e condenados à morte, o soldado foi executado primeiro. Mas quando procederam ao enforcamento do cabo Chagas, diz a lenda, a corda se rompeu por três vezes seguidas, o mesmo ocorrendo após uma última tentativa com um laço de couro. A vítima foi então executada diretamente no chão, pelas mãos de seus algozes, para revolta dos populares presentes, que exaltavam o milagre da intervenção divina através das cordas rompidas e exigiam a comutação da pena capital.
Chagas teria se tornado então um mártir e um santo na devoção da população local.
Um beato, Olegário Pedro Gonçalves, e um negro, Chico Gago, teriam erguido um cruzeiro aos pés do Morro da Forca, em frente ao qual teriam posto uma mesa para oferendas. Diz a lenda que velas acesas naquele altar improvisado jamais se apagavam, mesmo sob os mais fortes ventos daqueles altos de morro ou sob as tempestades mais torrenciais, confirmando a santidade do mártir Chagas. Multidões acorriam para cultuar o que passou a ser chamado de a Santa Cruz dos Enforcados. Criou-se uma festa anual, com grande afluxo popular, exacerbando o prestígio do culto e alarmando as autoridades.
Em meados do século XIX a forca foi desativada e o nome do local mudado, em 1851, para Praça da Liberdade, por sua ligação com o Chafariz da Liberdade, localizado junto ao Largo do Curso Jurídico (atual São Francisco). Aquele chafariz, por sua vez, fora assim denominado em 1832, numa homenagem da Câmara Municipal à revolta popular que culminara, no Rio de Janeiro, no ano anterior, com a queda do governo absolutista de D. Pedro I e seu retorno a Portugal. A homenagem assinalava assim a vocação liberal da elite paulista e o papel-chave que vinha assumindo na gestão da jovem nação independente. Do chafariz, o nome se estendeu à praça, depois à rua que os ligava e finalmente passou a abranger toda a área do que fora o Distrito da Glória.
Com o declínio da forca e a nova conotação liberal, o motim comandado por Chagas foi sendo interpretado crescentemente, dentre os círculos dirigentes, como uma resistência ao jugo português, já preconizando a jornada heróica da luta dos paulistas pela Independência, cujo gesto decisivo haveria de ocorrer em seu território, no Ipiranga, em área vizinha ao Distrito da Glória, ou melhor, a essa altura, da Liberdade. O Cemitério dos Aflitos foi desativado e loteado (1885), assim como o Morro da Forca foi arrasado e o paiol da pólvora demolido, sendo a área em seguida repartida em lotes para a venda. A população, contudo, reerguia a Santa Cruz dos Enforcados em pontos cada vez mais distantes, toda vez que as obras chegavam a ela. Essa situação perdurou, até que em 1891 foi construída uma capela, a qual, diante do contínuo afluxo de multidões, teve que ser sucessivamente ampliada, culminando na reforma final, em 1917, que resultou na atual Igreja da Santa Cruz dos Enforcados. O empenho das autoridades e da Cúria persistiu no sentido de vinculá-la à figura do Chagas e não às tradições rituais afro-brasileiras. Uma breve visita àquele templo porém – local de intensa vibração mística especialmente às segundas-feiras, com a oferta ritual de pipocas, velas e flores dedicadas às Almas – comprovará a vitória do sentimento popular e, em particular, da comunidade negra.
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Que a Glória tinha uma presença e significados peculiares para as comunidades negras ficou atestado pelo fato de que as figuras mais populares e conhecidas da região, conforme testemunhos de cronistas e memorialistas, eram negros como o Chico Gago, o Preto Badaró, o Baduíra (Pai Zarabinda) e o Chico Mimi. Sobre o primeiro, o Chico Gago, já vimos que era homem de sólidas convicções devocionais, sempre ativo na organização das celebrações, festividades e rituais relacionados tanto ao cemitério e à Igreja dos Aflitos, quanto ao cruzeiro e depois à Capela e à Igreja da Santa Cruz dos Enforcados. Já o Preto Badaró era uma criatura caminhante, sempre errando pelas ruas, becos e desvãos da Glória, do Bexiga, do Lavapés, do Cambuci e do Morro do Piolho. Veterano da Guerra do Paraguai, dotado de extraordinária cultura oral e contador de casos irresistível, esse rapsodo tornava suas narrativas sobre as peripécias dos batalhões negros nas guerras do Prata numa autêntica epopéia afro-americana. Já o Baduíra era babalorixá respeitadíssimo, com tenda nos baixos do Lavapés, no então chamado Caminho do Cambuci. Visitado pelo espírito do Pai Zarabinda, um negro morto no suplício do tronco, ele dispensava conselhos, curas, orientações, bênçãos e profecias.
Apegado a convicções cristãs, identificava-se como espírita. Seu prestígio era sem igual e sua reputação atravessava toda a cidade. E também todas as classes. As crônicas confirmam que era visitado por senhoras e cavalheiros da mais alta elite paulista. As damas se achegavam à sua tenda com a identidade discretamente encoberta, tal como, aliás, as senhoras e cavalheiros que visitavam os babalorixás do Morro do Castelo, marco fundador do Rio de Janeiro, arrasado no começo do século XX. Nesse sentido, ressalte-se de passagem a extraordinária homologia que há em se vislumbrar a história do Rio sob a perspectiva do Morro do Castelo e a de São Paulo pelos relevos acidentados da Glória.
O caso do Chico Mimi não é menos interessante. Sua fama se devia à sua destreza na produção artesanal de bainhas para facas e facões por um lado e petecas pelo outro. A importância das lâminas, com sua infinidade de formas, tamanhos e usos, atesta os hábitos mateiros e a grande importância para as classes populares da caça, da pesca e da coleta na natureza ainda abundante dos arredores da capital. As petecas constituem outro elemento interessantíssimo. A peteca é ao mesmo tempo uma brincadeira e um esporte, sendo o mais autenticamente americano dos folguedos. A palavra é tupi e assinala o modo específico de os indígenas baterem as petecas com as mãos. Já os africanos e afro-brasileiros, quando a adotaram, introduziram o uso, concomitante ou exclusivo, dos golpes com os pés na brincadeira. Ainda está para ser avaliado o impacto que essa tradição teve no desenvolvimento da paixão e do estilo brasileiro de jogar futebol.
As petecas do Chico Mimi ajudam a lembrar que a Rua São Paulo conectava o alto do Morro da Forca – onde ele tinha sua oficina ribanceira abaixo – com o Morro do Tabatingüera, área em que se estabelecera, desde a fundação da cidade, a comunidade tupi do cacique Caaubi. A evocação é imperativa, já que foram ele e seus bravos guerreiros que salvaram São Paulo da extinção, em 1562, quando a aldeia foi invadida, justamente pelo flanco sul, sua zona mais vulnerável, por uma legião enfurecida de guaianás, tamoios e carijós confederados. Foi Anchieta em pessoa quem relatou a coragem e determinação cega com que os tupis defenderam a vida dos padres e dos colonos, rendendo-lhes a mais exaltada homenagem. Já no século XIX o quadro era bem diverso, mas a molecada ainda descia a Rua São Paulo para ir nadar e se divertir, jogando peteca pelados nas águas do Tamanduateí, na altura do Porto dos Ingleses. A brincadeira era proibida e a polícia da cidade, os Urbanos, tentava cercar a garotada pelas duas margens, mas eles escapuliam, caçoando da guarda, os “espanta-gatos”, nadando até desaparecerem nas matas densas rio abaixo.
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Mas nem só negros, índios e seus descendentes rondavam pela Rua São Paulo e pelas adjacências da Glória. Também os metecos eram convenientemente induzidos a se estabelecerem ali. Como vimos, originalmente ela se chamava Rua dos Ingleses.
A bem da verdade, ela apresentava uma descontinuidade de nome, embora não de curso, chamando-se Rua dos Ingleses até à altura da Rua da Glória e a partir daí assumindo o nome de Beco do Rath. Como se sabe, desde a vinda da Corte Imperial Portuguesa para o Brasil, sob a proteção da flotilha britânica, e por decreto depois confirmado pelo Tratado de Abertura dos Portos e mantido após a Proclamação da Independência, estrangeiros passaram a ser admitidos em todas as partes do Brasil. Mas, se não fossem católicos, só poderiam praticar seus credos e cerimônias na intimidade dos lares, sem qualquer sinal externo identificador de suas convicções heterodoxas, mantidas sob a máxima discrição, sobriedade e recato. Não poderiam ademais ser enterrados em campo-santo, consagrado pela Igreja Católica. Razão pela qual muitos estrangeiros, especialmente os do norte da Europa e de filiação protestante, tendiam a se sentir mais à vontade às margens do contexto urbano.
Assim se deu com o coronel John Rademaker, que adquiriu a quinta de Francisco José Machado, instalando-se num casarão no Largo da Glória (depois Largo dos Ingleses, Largo São Paulo e atualmente Praça Almeida Junior). Desde então a via íngreme, que dava acesso direto ao solar Rademaker, passou a ser chamada de Rua dos Ingleses. Seu vizinho em direção ao alto da Glória era o alemão dr. Karl Joseph Fredrich Rath, médico, naturalista, cartógrafo, escritor e pintor, que ao morrer legou sua rica coleção de história natural, de arte e de mapas da cidade para se tornar uma das bases do acervo do futuro Museu do Ipiranga. A extensão da mesma via mudava de nome para Beco do Rath (hoje Rua Américo de Campos) ao adentrar em sua propriedade. A futura Rua São Paulo se tornou assim uma via que conectava o contexto afro-brasileiro do alto da Glória com o contexto indígena-brasileiro do Tabatingüera, através de um eixo anglo-germânico. Com o posterior arrasamento do Morro do Tabatingüera para a criação do aterro do Glicério, a Glória se conectou com o Bexiga, abrindo um novo flanco italiano de convívio, marcado pela pequena e elegantíssima Igreja de Nossa Senhora da Paz. Depois vieram os migrantes de Minas, do Norte e Nordeste, os japoneses, os coreanos, os chineses, os bolivianos, os nigerianos…
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O casarão dos ingleses tem também uma história interessantíssima. Com a morte do coronel John Rademaker ele foi vendido no início de 1820 para o coronel João de Castro Canto e Melo, cuja filha, Domitila, futura Marquesa de Santos, se tornaria amante do primeiro imperador. Foi portanto para visitá-la na Glória que D. Pedro subiu a Serra do Mar em direção a São Paulo, emancipando de passagem o país do estatuto colonial, no célebre episódio do Ipiranga. A situação marginal da Glória também servia para essas indiscrições. E para outras. Em 1824 o casarão foi vendido para a Santa Casa de Misericórdia, que ali instalou, no ano seguinte, seu hospital e, a pedido das autoridades, uma Roda dos Enjeitados, para aliviar crescentes tensões socioconjugais dentre as elites. Para fazer as vezes de amas-de-leite dos órfãos da instituição, as irmãs apelaram para as índias do aldeamento de Santo Amaro. Como outros indígenas foram incorporados para atividades diversas, houve um como que segundo repovoamento indígena dos baixos da Glória. A propósito, o local bem que comportaria um monumento à mãe-índia, semelhante àquele dedicado à mãe-negra no Largo do Paissandu. Um personagem afinal, menos conhecido, mas não menos relevante das histórias paulista e brasileira.
Em 1840 a Santa Casa de Misericórdia teve que mudar para um prédio maior na Rua da Glória, esquina com a Rua dos Estudantes, e o casarão se tornou uma turbulenta república de estudantes, onde, entre muita esbórnia e bandalheira, brilhou a mais fina flor da juventude romântica da cidade, encabeçada por Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo. Alguns de seus textos clássicos foram escritos ali mesmo. No seu transgressivo Noites na Taverna, quando Álvares de Azevedo revela o endereço do demônio, ele não poderia ser outro senão o insólito solar da Chácara dos Ingleses, nos altos da Glória. Revela Satã, para o sobressalto dos seus leitores: “– Tenho uma casa aqui na entrada da cidade. Entrando à direita, defronte ao cemitério…”
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Como se vê, a Glória, quando não era o inferno, era o purgatório. A cidade empurrava para lá tudo aquilo que percebia como ameaçador, desagradável, tumultuário, desprezível, repugnante ou indigno. Em diferentes épocas e distintos locais, foram instaladas lá instituições as mais problemáticas. Em primeiro lugar, como vimos, a Forca e, ao seu lado, o arsenal e depósito de pólvora da cidade, razão pela qual o morro e o largo ora eram referidos como “da Forca”, ora como “da Pólvora”, nome que permaneceu atualmente para o largo remanescente, ao sul da antiga praça. Adjacente estava o cemitério dos supliciados e dos indigentes. Vieram depois o hospital, a Roda dos Enjeitados, o Asilo dos Alienados e o Asilo de Mendicidade. No início da Rua da Liberdade (antigo Caminho do Morro da Forca), ficavam a Cadeia Pública, a Casa de Correição e Trabalho e o pelourinho. Nos limites da Boa Morte se instalou o quartel da Milícia. Com a boemia dos estudantes, vieram o pequeno teatro Rath, depois o Colombo (onde, aliás, D. Pedro foi declarado o primeiro rei do Brasil independente, na noite do dia 7 de setembro de 1822) e o São Paulo. As salas de espetáculos por sua vez atraíram as tascas, as bodegas ratés e as casas de moças alegres, que viriam a dar um ar de festa às noites da Glória.
Quando se criaram as feiras livres, uma das primeiras foi instalada no Distrito da Glória, na baixada da Rua São Paulo, onde está até hoje, em plena vitalidade. As pensões, cortiços, freges, zungas e moquiços se apertavam disputando as ladeiras em direção às várzeas, recebendo a multidão de migrantes e imigrantes que buscavam aquela área, ao mesmo tempo central e de passagem. Dentre as habitações populares, entremeadas com elas, concentravam-se inúmeras cocheiras, abrigando os contingentes de cavalos, burros e carroças que rodavam pela cidade. Naquele contexto, mas na vertente do Anhangabaú, ficavam também o matadouro e o Curtume e, mais tarde, no próprio Largo São Paulo, instalou-se um mercado de carnes verdes. As tropas de gado, vindas do sul e invernadas nos campos, capoeiras e alagados do Ibirapuera, desciam em longas caravanas diárias, troando em passo cadenciado pelo calçamento de pedra da Rua da Liberdade, tangidas para o seu destino final. Pelas encostas da Glória ecoavam os gemidos dos animais sacrificados, tingindo as águas do córrego de um vermelho encarnado e sinistro. O cheiro do Curtume e do Depósito de Ossos criava uma atmosfera mefítica, mórbida e macabra. A Glória era o fundunço, o lumbambo, o sarrabulho e a trabuzana de São Paulo.
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O boom da cafeicultura transfigurou a cidadela provinciana desde o terço final do século XIX, desencadeando um processo de reforma urbana que se estende até hoje.
Essa primeira fase do processo de urbanização moderna, assinalada pela atualização em sintonia com os padrões cosmopolitas do mercado capitalista internacional, definiu já o que seria o caráter disfuncional do desenvolvimento da cidade. A aversão das novas elites em relação aos rios, às várzeas e à natureza exuberante da Piratininga, que faziam justamente dessas as áreas sagradas para os índios e as mais atraentes para os negros e seus descendentes, secretou um pendor deletério das camadas dirigentes para estabelecer os referenciais da cidade na sua própria área construída, nos portentos da engenharia, nas dinâmicas dos fluxos de mercadorias, finanças e comunicações, nos processos de valorização cumulativa pela concentração de riquezas, nos nichos de segregação social e assepsia ambiental.
O surto de prosperidade, coincidindo com uma reconfiguração do mercado de mão-de-obra em escala mundial, atraiu para a região paulista gentes dos diversos cantos do mundo, particularmente do sul e centro da Europa, do Oriente Médio e do Extremo Oriente, em sucessivas ondas migratórias. Destinados em especial para as lavouras, com o progressivo declínio dos preços do café nas três primeiras décadas do século XX, esses grupos foram buscando refúgio e novas oportunidades na crescente economia urbana da capital do estado, atraídos pelo crescimento das atividades industriais e comerciais. A pressão demográfica logo se tornou tão intensa que, já por volta das primeiras décadas do século, a atividade mais rentável passou a ser a especulação imobiliária, para a qual muitos cafeicultores decadentes passaram a desviar seus recursos. A perpetuação dessa situação se tornou o problema crônico da cidade, com uma demanda de imóveis sempre exponencialmente maior do que a oferta. Era esse o quadro expresso pelo slogan pífio, porém dramaticamente verdadeiro, louvando São Paulo como “a cidade que mais cresce no mundo”.


A Crise de 29 e depois a Segunda Guerra Mundial tenderam a reduzir a imigração estrangeira, que foi no entanto compensada por um intenso movimento migratório interno, principalmente encabeçado pelos estados de Minas Gerais e do Nordeste, acentuando um grave padrão de desnível regional. O resultado é que o crescimento vertiginoso da cidade prosseguiu, assumindo proporções ainda mais alarmantes entre as décadas de 1940 e 1980 (ver quadros 1 e 2). Só recentemente, a partir dos anos 90, a população urbana de São Paulo tendeu a alguma estabilidade, com um crescimento mais acentuado, se não explosivo, concentrando-se nas áreas ao redor do município, que com ele constituem uma zona de ampla conurbação, normalmente referida como Região Metropolitana.
De fins do século XIX até o final da década de 1920, a expansão da mancha urbana se concentrou sobretudo nos chamados bairros centrais. A norma consagrada foi a de as camadas dominantes se estabelecerem nos terrenos mais altos da topografia, relegando as baixadas, as várzeas e demais zonas alagáveis ou vizinhas às estradas de ferro para as fábricas, armazéns, oficinas e populações operárias. No caso da Glória, o arrasamento do Morro do Tabatingüera e a retificação do curso do Tamanduateí abriram amplas áreas nos baixos do Glicério, atraindo fábricas, depósitos, pequenas lojas, oficinas e manufaturas. De entremeio, difundiram-se conjuntos homogêneos de habitações populares, geralmente em sobrados geminados, de três pavilhões, que eram repartidos internamente, sendo então alugados e compartilhados por várias famílias. Até os porões, em geral com janela ou saída direta para a rua, eram alugados e compartilhados. Paradoxalmente, a parte mais elevada da Glória foi alvo de uma reurbanização exuberante pelo então prefeito, o Conselheiro Antônio Prado, que transformou a agora Avenida da Liberdade num elegante bulevar arborizado.
O sinal maior de distinção foi a mudança para aquela área do escritório do mais prestigioso arquiteto do período, Ramos de Azevedo, que edificaria várias mansões e residências de alto padrão na região. O proprietário de uma dessas residências luxuosas foi Manuel Joaquim de Albuquerque Lins, presidente (governador) do Estado de São Paulo, de 1908 a 1912, período em que transferiu a sede do governo para o Largo São Paulo, despachando direto do casarão elegante que ainda está lá, no alto da praça e a cavaleiro da Radial Leste, ocupado atualmente pelo Primeiro Distrito Policial. O contraste entre os altos da Liberdade e os baixos do Glicério definia agora o retrato acabado da nova segregação social que marcaria a cidade.
Nesse primeiro período da urbanização de São Paulo, o bonde fora o vetor básico de transporte na capital. Pelo alto custo da instalação de suas linhas e porque o serviço era monopolizado por uma única companhia, a Light & Power, a rede de integração urbana era estreita e limitada, promovendo o adensamento da população nos bairros centrais e arredores imediatos. De 1930 a 70, porém, coincidindo com dois períodos autocráticos, o de Vargas e o da Ditadura Militar, os recursos básicos de transporte urbano se tornaram os veículos automotores, ônibus e carros particulares. O planejador e depois prefeito Prestes Maia definiria o Projeto Avenidas como o novo modelo para a expansão da cidade, mudando radicalmente a lógica do desenvolvimento urbano paulista. Dada a sua maior flexibilidade e a possibilidade de transitar em ruas de terra e a longas distâncias sem grandes custos, os ônibus promoveram uma ampla expansão da malha urbana, com as áreas de loteamentos se multiplicando caoticamente, conforme a ganância desenfreada e as estratégias manipulatórias mais delirantes dos agentes especuladores.
Assim, o padrão predominante até então, do aluguel de casas ou aposentos na área central, concentrando a população na região, foi substituído pela nova tendência, a da compra de lotes nas periferias, onde aos poucos se construiria a casa própria, dispersando as populações pelos subúrbios distantes. Bairros surgiram ao deus-dará, sem conexão uns com os outros, fora dos parâmetros e gabaritos legais, sem quaisquer recursos de infra-estrutura básica, em terrenos grilados ou irregularmente demarcados. A São Paulo original, já suficientemente anárquica, desdobrou-se em várias São Paulos precárias, distantes, isoladas, paupérrimas e ilegais. Foi a origem do nefasto modelo centro-periferia.
Do ponto de vista da área central, esse foi o momento da grande verticalização.
Para as camadas mais abonadas, não bastava mais residir nas áreas mais elevadas, a distinção agora obrigava a residir em prédios de apartamentos ou, a partir dos anos 70, nos chamados condomínios fechados.
De certa forma, o processo tumultuoso de verticalização das áreas centrais era o contraponto da expansão horizontal caótica das periferias. Essa combinação exótica de compactação no centro e dispersão nas margens atribuiu um papel decisivo aos veículos automotores. A rarefação da ocupação periférica e a falta de conexão entre seus bairros – a qual tenderia sempre a ser mediada pelos terminais no centro – tornavam limitado, precário e sacrificado o transporte coletivo. Por outro lado, com o veículo particular se tornando um recurso imprescindível, ademais de prestigioso, para os grupos privilegiados das áreas centrais, as sucessivas administrações da prefeitura passaram a planejar o espaço urbano em favor dos carros, promovendo a  proliferação feérica de vias expressas, corredores de circulação, pontes, túneis, viadutos, rótulas, passarelas, grades, faixas, faróis, sinais, mãos e contramãos, terminais gigantescos e extensos estacionamentos. A área urbana foi retalhada em todos os quadrantes e direções, e tornada ainda mais fragmentada, inorgânica e inóspita, via de regra às expensas dos espaços públicos, além de transformar num autêntico inferno a vida dos transeuntes. Nesse momento, a baixada da Glória (ou do Glicério) praticamente sumiu, submersa pela massa dos viadutos do complexo do extinto Parque D. Pedro I e do Minhocão, e pelas vias expressas às margens e sobre o Tamanduateí.
Dos anos 80 aos nossos dias, as tendências dominantes foram outra vez contraditórias. Por um lado tivemos a organização e politização das comunidades dos bairros periféricos, pressionando as autoridades pela legalização das propriedades e forçando investimentos em transporte, serviços e infra-estrutura. Pelo outro, o surgimento de lobbies de planejadores e incorporadores, empenhados na alteração de códigos, estatutos e gabaritos, de forma a capitalizar megaprojetos privados, criando áreas de exclusividade, privilégios de circulação e se especializando na arte da utilização de áreas e equipamentos públicos para fins especulativos, promocionais e privativos. Paradoxalmente, enquanto as populações carentes lutam por direitos, pela legalização de suas posses e propriedades e por novos espaços públicos, os grupos privilegiados se empenham pela “flexibilização” das leis e normas, assim como pela apropriação privada dos espaços e bens públicos. A marca desse novo momento na Glória (ou na Liberdade) foi a expansão predatória das “universidades” privadas, dos bingos e diversões eletrônicas, de estabelecimentos bancários multinacionais, de lojas de fast-food, dos megaestacionamentos, dos blocos burocráticos de repartições públicas e megatemplos pentecostais, proliferando em paralelo a um grau jamais visto de depredação do patrimônio urbano, de degradação ambiental, de miséria, privação e abandono das áreas carentes. Vae victis!
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Eis a lógica, ou antes o desvario, do urbanismo inflacionário, sua intrínseca tendência entrópica. Ele decorre, em primeiro lugar, de uma tibieza crônica da instância pública, da ausência ou insuficiência da ação interveniente da autoridade urbana, da abdicação de qualquer sentido de orientação, controle, fiscalização ou moderação da disputa desigual pelo espaço e pelo direito à cidade, permitindo aos agentes mais fortes e organizados que submetam a urbe à vertigem caótica de seus interesses e da sua ganância. Destituída assim de um nexo orgânico, seja ele de sentido histórico, cultural ou racional, a cidade se torna num amálgama amorfo e disfuncional, impossível de ser incorporado como uma experiência traduzível num vernáculo compartilhado como o patrimônio espiritual de toda a comunidade dos cidadãos. Retalhada pelos impulsos e lapsos esquizóides da voracidade especulativa, ela incorpora e reflete essa condição dilacerada nos seus componentes heteróclitos, nas partes disparatadas, conexões inconclusas, articulações esclerosadas, fluxos desencontrados e presenças esvaziadas.
A percepção dos seus habitantes fica tolhida pela ausência de algum princípio orgânico, de pontos focais ou de diretrizes gerais. Passam a prevalecer então os imperativos da topografia; das contingências aleatórias de uma história marcada por fatores externos e inexoráveis; das pressões eventuais dos setores mais prósperos e mais organizados da sociedade ou, sobretudo e cada vez mais, pelos marcos efêmeros das ondas especulativas e das proezas do marketing político, cultural ou imobiliário.
A conseqüência mais direta dessa proliferação aleatória de ações de construção, de apropriação dos espaços e de multiplicação de referências simbólicas alheias ao convívio coletivo, é a impossibilidade da consolidação de qualquer configuração de memória capaz de gerar algum sentido de identidade comum. A ocorrência, em paralelo, dessa fragmentação do espaço e da dilaceração da memória se manifesta reiterada na indefinição arquitetônica, urbanística e paisagística da cidade. Eis a disparidade básica: por um lado a proliferação caótica de ações, presenças e circuitos; de outro a dissipação de sentidos e nexos cognitivos, dos investimentos afetivos da memória e da experiência compartilhada, assim como dos laços de pertencimento e dos espaços de participação.
A história do crescimento explosivo de São Paulo não decorre de seus potenciais intrínsecos, como sempre pretende fazer crer a propaganda populista, nem tampouco comporta alguma gênese orgânica ou alguma diretriz estruturadora. Ela manifesta os profundos desequilíbrios econômicos, sociais e regionais, característicos do subdesenvolvimento do país. O crescimento desmesurado da cidade compõe assim a aflição crescente de gentes deslocadas compulsoriamente de suas origens rurais e arrastadas para o destino imprevisível da precariedade das periferias e da inconsistência do mercado de trabalho. As altas expectativas que essa aflição coletiva gera, entretanto, deflagram as energias tanto das práticas especulativas quanto da manipulação política, formas gêmeas de rapinagem que se nutrem do desespero, usando como isca, naturalmente, a esperança.
Prevalecem como receitas para o equacionamento desse quadro tumultuoso as fórmulas da engenharia e da gestão estatística. Não que elas resolvam, mas ao menos fornecem a cenografia da intervenção pública e da racionalidade inclusiva do mercado, ao mesmo tempo em que circunscrevem as decisões em círculos técnicos altamente especializados, cujo jargão e cuja operação tecnológica estarão sempre acima e fora da possibilidade de ser interpelado pelas pessoas comuns. Tudo assim tende a ser planejado e conduzido em grande escala, sobrepondo níveis os mais complexos de competência técnica para ser sequer compreendido, quanto mais contestado. Só quem está no centro desses círculos decisórios sabe avaliar quais as conseqüências a médio e longo prazo dessas ações, o que lhes garante para sempre a informação privilegiada e a conseqüente vantagem na ação especulativa. Como as necessidades e as expectativas são imensas e como a suaexploração política e mercantil as acompanha na mesma escala, tudo é desmesurado.
Preponderam o quantitativo, o superlativo, o monumental, o acelerado, o maciço, o concentrado, o volátil e, como é inevitável para essas instâncias, o descartável.
São Paulo inclui, nesse sentido, várias dinâmicas concorrentes, mas também convergentes, que se alimentam reciprocamente. Em primeiro lugar está a Cidade Especulação, estabelecendo as fronteiras sempre voláteis do mercado de valorização imobiliária e dos espaços urbanos de excelência e de exclusividade. Em paralelo se articula a Cidade Cooptação, acenando com a “possibilidade”, sempre a “possibilidade”, das legalizações, das anistias, das isenções, dos serviços básicos, dos direitos elementares, das “megaunidades” de atendimento, dos “auxílios”, da “participação”, das “decisões”, tudo negociado em função das contrapartidas eleitorais. O nexo mais recentemente planejado para se cruzar entre a Cidade da Especulação e a da Cooptação é a ponte das PPPs, as chamadas “parcerias público-privado”. Convivendo com ambas está a Cidade da Informalidade, a da imensa população que sobrevive sem bases fixas, sem fundamentos legais, sem vínculos institucionais, sem amparo, sem proteção e sem garantias, sem identidade e sem reconhecimento. Se a primeira for a cidade da luz, a segunda será a do lusco-fusco e a terceira a das sombras.
Evidentemente essas três dimensões da cidade estão representadas na Rua São Paulo. Nos seus altos (a secção, aliás, denominada Rua Américo de Campos) – vinculada ao contexto do Bairro da Liberdade, que foi transformado em área de caracterização exótica e destinação turística, por sua tradicional associação com colônias do Extremo Oriente, região já valorizada desde a grande reforma do Conselheiro Antônio Prado, como vimos – estão os emblemas da Cidade Especulação. Lá estão os estabelecimentos de ensino e medicina privados, as agências bancárias e de viagens transnacionais, os bingos e palácios de diversões eletrônicas, os lançamentos imobiliários e os megaestacionamentos. Na outra extremidade, nos baixos do Glicério, insinua-se a Cidade Cooptação, os complexos de burocracia pública na várzea arrasada, nomes de candidatos políticos borrados vandalicamente nos muros e paredes, entre belíssimas imagens de grafite popular e a eventual faixa anunciando uma “rua de lazer” nas cercanias.
Mas o que prepondera na Rua São Paulo, sem dúvida, é a Cidade Informal. Do antigo Largo São Paulo até as ribanceiras, hoje concretadas, do Tamanduateí, local do antigo Porto do Tabatingüera (ou Porto dos Ingleses), onde a molecada pelada jogava a peteca do Chico Mimi, habita toda uma comunidade que mantém uma identidade histórica com o contexto social da Glória.
Gente de todos os cantos e todos os ofícios, relegada a um vácuo da cidadania, a um hiato sombrio entre a Cidade Especulação e a Cidade Cooptação. O tipo de lugar que em língua inglesa tende a ser chamado de no-man’s land ou no-go área. Zona proibida, interdita pelo estranhamento absoluto, pela impossibilidade de classificação, embora seja tão central e tão intimamente parte da memória desta cidade. Apesar da grande concentração de crianças brincando nas ruas (elas não têm mais o rio, nem espaços públicos acessíveis), os motoristas de carros, vindos do complexo do Minhocão, inseguros naquele ambiente que assumem ameaçador, a atravessam em grande velocidade, acelerando ansiosos rumo à Liberdade e ao Paraíso.
Toda aquela população da Rua São Paulo e adjacências tem um modo peculiar e diferente de se inserir e conviver com a cidade, prospectando seus desvãos, suas dobras, seus lapsos, seus interstícios e suas sobras. Aliás essa é a atividade que se destaca ali, a coleta de sobras. Sob toda a intrincada rede de viadutos, passagens elevadas, alças e pontes que compõem o complexo de distribuição viária da Várzea do Carmo, o atual Parque D. Pedro I (em que outro espaço da cidade a autoridade pública teria se atrevido a um delírio tão desenfreado de depredação urbana e ambiental?), espalha-se uma enorme população vivendo das várias atividades de reciclagem. Os vãos sob os prodígios da engenharia dos elevados estão todos ocupados como depósitos e também como moradia desse povo incansável. Como sua extensão natural, a Rua São Paulo também inclui áreas de depósitos, moradias de reciclantes e população de rua. As antigas cocheiras e oficinas estão hoje em dia ocupadas pelas carroças superlotadas puxadas por essas criaturas pelas vias e caminhos de São Paulo, acompanhados, não raro, de suas crianças e de seus cachorros.
A melhor metáfora para entender a Rua São Paulo e por que ela é tão significativa talvez seja a da metástases. A palavra é de origem grega e conota o sentido de um processo contínuo de deslocamento, mobilidade, transporte e comunicação entre contextos diversos. E assim é. Tomando os diversos rumos a que os levam os inúmeros viadutos sob os quais se alocam, os reciclantes alcançam todos os quadrantes da cidade, percorrendo-a em busca de seus resíduos descartáveis. Eles estão por toda parte, é impossível virar uma esquina, qualquer esquina da cidade, sem se deparar com algum deles, com suas crianças e seus cachorros. Em geral as pessoas não apreciam cruzar com eles, com suas crianças e seus cachorros, ou porque eles atrapalham o trânsito, ou porque a imagem daquela criatura frágil puxando aquele peso descomunal seja ingrata (não é bem assim como a locomotiva São Paulo puxando os “vagões vazios” da Federação), ou porque a atividade em si não tenha a dignidade da profissão reconhecida.
Como quer que seja, eles estão lá, por toda parte, por toda a cidade. Eles são propriamente uma cidade dentro da outra. Uma cidade que recebe tudo aquilo que a outra rejeita. Uma cidade que retoma tudo aquilo que foi abandonado pela outra e lhe dá uma vida nova. Algo muito parecido com a vocação que a Glória sempre teve para a aceitação do que fosse condenado, abandonado, renegado ou proscrito. Impossível não sentir, naquele local, o poder de ressurreição latente numa comunidade que incorpora o oposto da prodigalidade e o avesso do consumo como desígnios. Como metástasis, não há parte de São Paulo que não conviva, admita ou não, queira ou não, goste ou não, com a comunhão errante da Rua São Paulo. Onde quer que você esteja, olhe para o lado, olhe para a sombra e a Rua São Paulo estará lá, com suas crianças e seus cachorros. Olhe bem para ela, talvez você descubra ali algo que você perdeu, algo que todos nós perdemos.

NICOLAU SEVCENKO é professor de História da Cultura do Departamento de História da FFLCH-USP.
Publicado na REVISTA USP, São Paulo, n.63, p. 16-35, setembro/novembro 2004

Leia abaixo um perfil do autor publicado pela Agência Estado:

O historiador Nicolau Sevcenko, 61 anos, morreu na noite desta quarta-feira em sua casa em São Paulo, no bairro do Belém. A causa da morte ainda é desconhecida, contudo a esposa de Sevcenko, Cristina Carletti, acredita que tenha sido um enfarto. Ainda não há informações sobre velório e enterro.

Filho de imigrantes russos vindos da região da Ucrânia, Sevcenko nasceu em São Vicente, São Paulo, em 1952. Formou-se em História na Universidade de São Paulo (USP), onde fez seu doutorado e lecionou de 1985 a 2012, quando se aposentou. Também deu aula na PUC de São Paulo, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e em Harvard, onde ministrava história e cultura da América Latina e do Brasil. Concluiu seu pós-doutorado pela University of London em 1990 e, em seguida, a livre-docência pela USP. Suas aulas na Universidade de São Paulo eram altamente disputadas e ministradas em salas grandes, sempre lotadas.

O historiador publicou, editou e traduziu livros. Seus principais temas de estudo foram cultura brasileira, anos 1920 e desenvolvimentos de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Entre os livros de sua autoria estão A Corrida para o Século XXI (Companhia das Letras), Orfeu Extático na Metrópole (Companhia das Letras), e Literatura como Missão (Companhia das Letras). Neste último, que foi sua tese de doutorado, Sevcenko afirma, de forma corajosa, que a história é um exercício inglório de busca pela verdade, objetivo que deve ser perseguido, apesar das limitações que essa perseguição impõe.

Outra obra importante é A Revolta da Vacina, lançada em 1984 pela editora Brasiliense e reeditada em 2010 pela Cosac Naify. Trata-se de um clássico por detalhar os bastidores da maior convulsão social do Rio de Janeiro, ocorrida em 1904: pelas contas oficiais, a onda violenta de insatisfação popular durante a campanha de vacinação contra a varíola resultou em 30 mortos, 110 feridos, 945 presos e 461 deportados.

No livro, Sevcenko parte da rebeldia contra a imunização obrigatória para revelar tensões históricas profundas numa República que buscava se consolidar. E, por envolver história social, urbanismo, antropologia, saúde pública, a obra chegou a ser mencionada entre os 75 livros produzidos por professores da USP mais citados em trabalhos acadêmicos.

Sevcenko também sempre se interessou pela versatilidade da arte brasileira, aprendida justamente na adversidade. Em 2006, escreveu o artigo A Imaginação no Poder e a Arte nas Ruas, em que faz um sucinto levantamento das experiências estéticas dos séculos XIX e XX.

Também histórias curiosas não fugiam de sua atenção como o debate que suscitou em 2005 sobre a rua mais representativa de São Paulo — para ele, era a Rua São Paulo, próxima da Praça da Sé. “Era o espaço maldito da cidade onde, no século 18, a coroa portuguesa estabeleceu a forca, visível de praticamente todos os quadrantes da cidade, expondo assim cruamente a todas as gentes a força da justiça.”

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