| Nova York – 19/08/2014 – 17h11
     
Enquanto eu acompanhava os acontecimentos em Ferguson pelo Twitter, notei um pequeno fluxo de tweets de afro-americanos irritados com os usuários que sugeriam que, por causa da militarização da polícia e do uso de força excessiva (e mortal) contra cidadãos e jornalistas, Ferguson era agora como Gaza, Iraque ou outros lugares-problema do mundo. Estes cidadãos não estavam irritados porque achavam que as comparações eram injustas, mas porque tais publicações sugeriam que o uso de força excessiva era de alguma forma nova ou incomum. Para estes usuários, os EUA não haviam se tornado violento… ele sempre foi. Sugerir outra coisa seria enxergar os eventos em Ferguson como que dentro de um vácuo social e histórico, divorciado da realidade cotidiana enfrentada pelos afro-americanos, resultado de gerações de discriminação estrutural.

Estas foram observações poderosas.

Nossa visão política da vida cotidiana é frequentemente obscurecida pelo foco da mídia em eventos ou indíviduos ao invés de em estruturas e processos de longa duração. Eventos e indivíduos são amigos da mídia. Eles são fáceis de ser empacotados, construídos, embelezados, e depois tirados de cena. Eventos e indivíduos também são excelentes quando procuramos explicações, desculpas, bodes expiatórios ou heróis. A vida se torna simples desta maneira. Guerras e batalhas entre o bem e o mal. “A política é uma batalha de vontade individual.” “O racismo é um preconceito em relação a uma pessoa.” “os saques são uma quebra da lei e da ordem.”

“Contexto”, “história,” e “estrutura” apenas enlameariam estas águas claras de explicação.

Infelizmente, eventos e indivíduos são, frequentemente, nossas únicas pedras angulares para entendermos questões muito mais amplas, complexas e estruturais. E isto é um problema. Não posso mais entender o funcionamento real da política norte-americana assistindo à cobertura do debate presidencial (ou mesmo à uma eleição inteira), e também não poderia entender o racismo estrutural nos EUA ao assistir a cobertura do espancamento de Rodney King em 1991 ou do assassinato de Michael Brown em Ferguson. Não é possível testemunhar os resultados do preconceito estrutural e da desigualdade ao observar estes eventos — a partir de suas coberturas jornalísticas, não é possível ter a menor noção do quanto o preconceito e a desigualdade são um círculo vicioso.

O que perdemos com a cobertura esporádica baseada em eventos é a cotidianidade do racismo nos EUA (ou em qualquer outro lugar), e isto é o argumento daqueles usuários do Twitter que mencionei no começo do artigo. Uma percepção completa do quanto o preconceito permeia a sociedade requer atenção constante e foco sobre as coisas que tornam difícil a vida de muitos cidadãos norte-americanos: problemas de moradia, discriminação nos empregos, o racismo sutil de olhares e comentários, e o racismo aberto na forma de violência policial e invisibilidade na mídia — coisas que norte-americanos brancos raramente experimentam. E não esqueçamos das implicações a longo prazo de práticas como a pena de morte e da parcialidade da Justiça quando trata de minorias.

Esta não é uma crítica sobre todos os jornalistas que cobriram Ferguson — alguns foram excelentes — mas uma crítica ao jornalismo em geral.

Peguemos o Iraque como outro caso. Antes de 11 de setembro, o que as pessoas sabiam sobre as relações dos EUA com o Iraque e o Afeganistão? Ou sobre as políticas dos EUA na região? Muito pouco. Depois, a partir de 2003, fomos completamente saturados com a cobertura da mídia do Iraque e do Afeganistão, e havia bons jornalistas fazendo boas reportagens durante a invasão e a ocupação. Mas, depois de inúmeras horas de cobertura televisiva e toneladas de jornais, podemos dizer honestamente que as pessoas nos EUA possuem a mínima compreensão das implicações sociais, econômicas e políticas de uma operação que matou centenas de milhares de civis iraquianos inocentes? Ou do porquê os EUA foram à guerra?

Da mesma maneira, se o racismo é discutido apenas quando há histórias midiatizadas como agora em Ferguson, ou nas rebeliões de Los Angeles, ou durante o julgamento de O.J Simpson, depois estes temas são esquecidos. Quando uma questão tão fundamental à sociedade como o racismo é rotineiramente tratada apenas quando há uma convulsão social, então enfraquecemos as ligações entre estas convulsões e nossa história cotidiana, fazendo disso apenas um evento a se cobrir…

(*) Texto publicado originalmente em Carta Maior