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O legado da “era Vargas”

20 de agosto de 2014

Artigo de Osvaldo Bertolino sobre o legado de Getúlio Vargas

Getúlio Vargas (o dos anos 30) industrializou um Brasil que praticamente só plantava café. Derrubado pelos militares a serviço da elite — nesta época já associada ao imperialismo norte-americano —, quando seu projeto unitário avançava a passos largos, foi substituído, nas eleições de 1945, pelo general Eurico Gaspar Dutra — francamente pró-americano no processo de nascimento da Guerra Fria. Seu governo foi determinante para a formação, no Brasil, de dois campos abertamente em conflito.

Conheça o Dossiê Especial: Getúlio Vargas

Dutra perseguiu os patriotas — em seu governo, o registro do Partido Comunista do Brasil (então PCB) e a bancada parlamentar comunista foram cassados — e franqueou o país aos interesses militares dos Estados Unidos. Nas eleições seguintes, este projeto entreguista sofreu uma derrota — Vargas venceu as eleições em 1950 com um projeto de programa nacional. Golpeado, saiu morto do Palácio do Catete — então a sede do governo no Rio de Janeiro.
Em 1956, Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência da República também sob ameaças da elite. Fez um governo de conciliação, com boa dose de apoio da sociedade, e foi sucedido por Jânio Quadros. Os gestos histriônicos e os bilhetes teatrais do novo presidente pouco fizeram além de criar um clima de grande tensão política no país. Sua renúncia abriu lugar a outro presidente popular, João Goulart — fato que despertou a ira dos interesses dominantes.
O golpe militar de 1964 condensou um processo histórico de luta da elite contra o povo, que ganhou contornos bem definidos no segundo período Vargas: o modelo entreguista, alheio ao interesse nacional, versus o desenvolvimento. No ciclo militar, o país sangrou e, do ponto de vista econômico, foi uma mediocridade fardada em cujo legado é difícil encontrar qualquer coisa de positivo.
Resposta dos conservadores
Depois desse período, o país experimentou o rol da ruindade presidencial da “era FHC”. Multidões saíram às ruas com palavras de ordem, faixas e cartazes combativos, enfrentando bombas de gás lacrimogêneo e tumulto. Este cenário era comum nos conturbados processos de privatização brasileiros dos anos 1990. Um quadro do qual decorre uma pergunta óbvia: que importância é essa que a venda das estatais brasileiras angariou no enfrentamento entre as forças da transformação e da reação naquele período?
A resposta é a determinação, expressa por FHC na sua primeira posse como presidente da República, de acabar com a “era Vargas”. Era uma resposta dos conservadores ao salto do país proporcionado pelos esforços empreendidos por Vargas para industrializar o país, alicerçados na bandeira do nacionalismo — condição fundamental para o governo do presidente Juscelino Kubitscheck conduzir a industrialização pesada dos anos 1950. Sob essa bandeira, o Brasil combateu o domínio dos trustes internacionais e advogou a formação de novas áreas de consumo interno.
Essas iniciativas impulsionaram os movimentos operários — em 1953, 300 mil trabalhadores aderiram a uma greve em São Paulo; em 1954, uma greve geral anticarestia, liderada pelo Pacto de Unidade Intersindical (PUI), parou um milhão também em São Paulo; e em 1957, 400 mil operários pararam, ainda na capital paulista, reivindicando aumento de 25% — e as lutas dos camponeses.
Avanço da industrialização
O Brasil vivia uma polarização decorrente de uma renhida luta entre as forças interessadas no desenvolvimento do país e os círculos que defendiam a dependência econômica e política, na qual vicejavam seus interesses investidos. Este cenário manifestava-se inclusive dentro do governo Juscelino Kubitscheck e refletia a evolução do quadro político desenhado pelos embates das décadas anteriores.
Quando Vargas assumiu o seu segundo governo, ele se deparou com problemas complexos herdados do governo do general Dutra e enfrentou a crise econômica acelerando o papel do Estado na economia e atraindo os trabalhadores para o seu projeto. Ao contrário de Dutra, que considerava indevida a intervenção do Estado na economia, Vargas aplicou — como havia feito no início da década de 40 — uma orientação política que correspondia às tendências nacionalistas das forças que o apoiavam e à sua doutrina de harmonia dos interesses de classes.
A atenção de seu governo concentrou-se nas medidas que possibilitariam o avanço da industrialização, que deveria ser apoiada preferencialmente no capital nacional e orientada para o mercado interno. A industrialização naqueles moldes era considerada por Vargas uma solução para a falta de divisas, para o desemprego e para a independência do país. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), pelo qual ele foi eleito, não dispunha de maioria no Congresso Nacional e o governo compôs um bloco de sustentação parlamentar com representantes de diversos partidos.
Uma nova era
O suicídio do presidente adiou o golpe militar pró-americano por dez anos. No início dos anos 1960, os elementos das duas opções estratégicas para o país condensaram-se e em 1964 os golpistas acabaram com o sonho das reformas de base preconizadas pelo governo do presidente João Goulart.
As forças democráticas e progressistas podem aprender boas lições com o estudo da experiência de Vargas. Quando ele chegou ao Palácio do Catete, em 1930, em um trem militar vindo do Estado do Rio Grande do Sul, o país inaugurou uma nova era. O líder da revolução vestia um uniforme cáqui, com um revólver metido na cintura, e representava, até na forma de vestir, os tenentes rebeldes que promoveram dois levantes e uma marcha histórica — a Coluna Prestes — na década de 1920 contra a República Velha.
Até então, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM) revezavam-se no poder. O país era essencialmente rural — apenas 10% do Produto Interno Bruto (PIB) era industrial. Quando o esquife de Vargas deixou o Catete, 24 anos mais tarde, o Brasil não era nem sombra daquele país esculpido pelas oligarquias paulista e mineira. Em 1955, a produção industrial já representava 30% do PIB.
Intervenção do Estado
Uma das primeiras providências de Vargas foi alterar o papel do Estado. Antes, o governo interferia na economia apenas para garantir a boa vida dos oligarcas. O Estado comprava o café para preservar os fazendeiros de eventuais problemas na produção e da oscilação de preços no exterior. A moeda nacional flutuava ao sabor dos interesses dos fazendeiros — quando o preço caía no mercado internacional, o governo desvalorizava o dinheiro brasileiro e assim garantia os ganhos dos cafeicultores.
O novo presidente optou pela intervenção do Estado na economia para promover o desenvolvimento industrial. De 1932 a 1937, o PIB cresceu, em média, 7% ao ano. O Estado construiu empresas estratégicas para a economia nacional, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, e criou uma vasta legislação trabalhista — a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) — e social. No seu segundo governo, Vargas criou a Petrobras — iniciativa que resultou de um vigoroso movimento patriótico — e fundou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), hoje acrescido da palavra Social e com a sigla BNDES.
As turbulências políticas do primeiro governo Vargas decorreram das contradições que envolviam o país. Os levantes dos tenentes e a Coluna Prestes tinham como objetivo único derrotar as oligarquias da República Velha. Eles não formaram um partido político e deram seqüência às suas carreiras políticas por caminhos distintos.
Campeão de popularidade
De um lado, o movimento operário avançava e sua liderança — o Partido Comunista do Brasil — via a revolução de 30 como algo que deveria ser substituído por um governo “apoiado em sovietes de operários e camponeses”, avaliação que evoluiu para o levante revolucionário de 1935 liderado pela Aliança Nacional Libertadora (ALN). De outro, a oligarquia paulista lançou a campanha pela constitucionalização do país e promoveu a guerra civil de 1932. Dois anos depois, uma assembléia eleita pelo povo promulgou a nova Constituição. Como resposta ao levante de 1935, Vargas desencadeou a repressão e, mais tarde — em 1937 —, instaurou a ditadura do Estado Novo.
Os tenentes se dividiram, basicamente, entre os que apoiaram Vargas e os que participaram do levante de 1935. A ditadura investiu com fúria contra os comunistas até a hábil política do então PCB de propor a “união nacional” contra o nazi-fascismo — palavra de ordem que logo seria associada à defesa da democracia. O governo se dividiu.
De um lado, apoiando o Eixo Roma-Berlin, ficaram o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, o sucessor de Vargas, e o feroz chefe do aparelho repressivo, Filinto Müler. De outro, ficaram o presidente e o ministro das Relações Exteriores, o chanceler Osvaldo Aranha. Com forte apoio dos comunistas, o governo criou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que foi combater o nazi-fascismo na Europa. Essas posturas democráticas de Vargas e a vitória dos aliados fizeram do presidente um campeão de popularidade.
Apoio dos trabalhadores
Quando ele voltou ao governo, o país já estava enquadrado no molde da Guerra Fria e respirava os ares reacionários do governo Dutra — aliado incondicional do imperialismo norte-americano. Vargas fez um governo dúbio: ao mesmo tempo em que cedeu aos setores golpistas das Forças Armadas, porta-vozes dos interesses militares norte-americanos, com o acordo militar Brasil-Estados Unidos, amainou a repressão política.
O governo também desenvolveu uma política nacional de impulso à industrialização, enfrentou a crise econômica deixada por Dutra e procurou atrair o apoio dos trabalhadores. O ministro do Trabalho, João Goulart, propôs um reajuste de 100% no salário mínimo, sofreu um violento ataque de militares reacionários e caiu — mas Vargas bancou a proposta e concedeu o reajuste. O governo também enfrentou o imperialismo, criando uma lei de remessa de lucros para obrigar as empresas estrangeiras a investir no país.
Violentamente atacado pela direita, Vargas respondeu ao ultimato para que renunciasse dizendo que só sairia do Catete morto — como de fato aconteceu. Com a popularidade em alta, seu suicídio revoltou a população, que chorou a morte do presidente, apedrejou a embaixada dos Estados Unidos e incendiou jornais. Sua marca ficou registrada, de forma indelével, na memória do povo brasileiro e na história do Brasil.