A permanência de Getúlio Vargas
Artigo de Gilberto Bercovici sobre os 60 anos da morte de Getúlio Vargas
Há sessenta anos, no dia 24 de agosto de 1954, o Presidente Getúlio Vargas suicidou-se no Palácio do Catete, então sede da Presidência da República, no Rio de Janeiro. A morte física veio somar-se a uma série de “mortes” de Getúlio Vargas, sempre proclamadas aos quatro ventos por seus inimigos (os setores conservadores e liberais vinculados ao capital estrangeiro ou a parcela do grande capital nacional, parte das Forças Armadas, herdeiros insatisfeitos das oligarquias regionais e certa “intelectualidade”).
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Os políticos da UDN (União Democrática Nacional) proclamaram a “morte” política de Vargas três vezes, ao menos: em 1945, quando depuseram Vargas e este os derrotou nas urnas das eleições presidenciais e da Assembleia Constituinte de 1946; em 1954, derrotados com a reação popular ao suicídio do Presidente; e em 1964, quando derrubaram seu herdeiro político João Goulart e instauraram uma ditadura militar de 21 anos. Mesmo com a vitória dos setores contrários ao getulismo em 1964, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu discurso de despedida do Senado, em 1994, insistiu em reiterar nova “morte” de Getúlio Vargas, decretando, sob o aplauso da elite econômica brasileira, o fim da “Era Vargas”. Por que, apesar de tantas “mortes”, Getúlio Vargas teima em estar vivo na memória, nos sonhos e nos projetos de futuro do povo brasileiro?
Meu objetivo aqui é apenas o de relembrar alguns aspectos fundamentais da atuação de Getúlio Vargas na Presidência da República, conquistada pela Revolução de 03 de outubro de 1930. Talvez os elementos aqui trazidos ajudem a refletir sobre a permanência e a importância de Getúlio Vargas para o nosso imaginário social.
A partir de 1930, a política deliberada será a da expansão econômica via mercado interno, especialmente por meio da industrialização. Autores como Celso Furtado entendem que há uma ruptura na política econômica a partir da Revolução de 1930, com destaque à clássica análise da política de preservação do setor cafeeiro para a manutenção dos níveis de renda na economia, favorecendo a internalização dos centros de decisão econômica e o processo de industrialização. O nacionalismo econômico brasileiro vai justamente se caracterizar pela busca de maior independência econômica, cujo pressuposto era o controle do Estado sobre seus recursos naturais para beneficiar a economia nacional. A posição do Brasil como exportador de matérias-primas, portanto, vulnerável às oscilações do mercado internacional, deixou de ser vista como vantajosa. E o Estado brasileiro será reestruturado e atuará decisivamente para promover as transformações estruturais julgadas necessárias para solucionar esta questão, especialmente buscando diversificar a economia por meio da industrialização.
Em 1938, no início do Estado Novo, Getúlio Vargas expôs as três alternativas possíveis para o início da industrialização pesada no país: a construção de uma usina siderúrgica estatal, financiada com capital estrangeiro ou recursos provenientes da exportação de minério de ferro; a construção de uma siderúrgica em conjunto pelo Estado e pela iniciativa privada nacional ou a construção de uma siderúrgica pela iniciativa privada nacional, com capital próprio e capital estrangeiro, mas sob supervisão estatal. A situação política internacional, de disputa entre a Alemanha e os Estados Unidos, por maiores esferas de influência, iria ampliar a margem de manobra do Governo brasileiro nas negociações para a implantação da siderurgia pesada no país, favorecendo a solução exclusivamente estatal. O resultado foi a constituição da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), sociedade de economia mista federal, em 1941, dando início à estruturação da usina siderúrgica estatal de grande porte. A construção da usina e da cidade industrial, apesar dos percalços gerados pela guerra, foi concluída em tempo razoável, sendo a CSN oficialmente inaugurada em 12 de outubro de 1946. Volta Redonda se tornou um símbolo da política industrial brasileira e da mudança estrutural da economia brasileira com o objetivo da emancipação econômica do país.
Ao contrário da criação das empresas estatais nos países europeus, a estatização no Brasil significou também a constituição da própria atuação empresarial nos vários setores da economia, internalizando o processo de industrialização. O Estado brasileiro vai, simultaneamente, concentrar recursos e constituir a base produtiva do país. Neste primeiro momento da construção do Estado industrial no Brasil, as questões referentes à mineração, siderurgia e petróleo se tornaram questões de Estado, vinculando a exploração dos recursos minerais à política nacional de industrialização. A criação das empresas estatais nestes setores, como a CSN, a Companhia Vale do Rio Doce (1942), as Centrais Hidrelétricas do São Francisco (1945), o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (1952), a Petrobrás (1953) e a Eletrobrás (1961), busca dar uma solução conjunta à implantação da base da indústria pesada e ao seu financiamento. O surgimento destas empresas estatais não se dá sem acirrados debates políticos e, como no caso da Petrobrás, após uma forte mobilização popular a seu favor, o que proporcionou a estas primeiras empresas grande legitimidade, inclusive permitindo a obtenção de seus recursos iniciais a partir de mecanismos de poupança forçada (recursos da previdência social, recursos provenientes da arrecadação de impostos setoriais, etc). A importância da iniciativa estatal no processo de industrialização brasileiro é insubstituível, embora o Estado não tenha assumido integralmente a responsabilidade de estruturar uma economia efetivamente nacional. A presença do Estado irá se materializar diante da ausência do capital privado nacional e em contraposição ao controle estrangeiro sobre os recursos minerais.
A grande diretriz da política econômica e social da chamada “Era Vargas” (1930-1964) foi, assim, a internalização dos centros de decisão econômica, por meio do processo de industrialização e urbanização. As teses da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) tiveram grande receptividade a partir de 1949, pois davam fundamentação científica para a tradição intervencionista e industrialista existente no Brasil desde 1930. Especialmente a partir do Segundo Governo Vargas (1951-1954), a doutrina formulada pela CEPAL passou a ser vista como útil e importante para a reelaboração e fundamentação das políticas econômicas e da concepção de desenvolvimento, entendimento consolidado com a criação do Grupo Misto CEPAL-BNDE. A concepção do Estado como promotor do desenvolvimento, coordenado por meio do planejamento, dando ênfase à integração do mercado interno e à internalização dos centros de decisão econômica, bem como o reformismo social, característicos do discurso cepalino, foram plenamente incorporados pelos nacional-desenvolvimentistas brasileiros. Com o desenvolvimentismo, o Estado evolui de mero prestador de serviços para agente responsável pela transformação das estruturas econômicas, promovendo a industrialização.
Um projeto nacional de desenvolvimento precisa estar presente no imaginário coletivo da sociedade, sob pena de não sair do papel. Afinal, não é um simples plano de governo, mas uma construção coletiva que busca essencialmente os objetivos de uma sociedade melhor, mais igualitária e mais democrática no futuro. Os governos de Getúlio Vargas conseguiram realizar isto, ao defender a soberania nacional.
Getúlio Vargas não se destaca apenas por ter incorporado o projeto nacional de superação do subdesenvolvimento por meio da transformação da economia brasileira em uma economia industrial avançada. Sua presença é forte também no imaginário popular em virtude da legislação trabalhista promulgada em seu governo.
A chamada “Questão Social” não surge em 1930. A Revolução, inclusive, não significa o início da legislação trabalhista no Brasil. No entanto, é só a partir de 1930 que ocorre a aceleração e a sistematicidade das leis trabalhistas, encaradas, desde então, como uma política de Estado. A quase totalidade desta legislação foi editada durante o Governo Provisório, tendo sido elaborada pela assessoria jurídica do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (Oliveira Vianna, Joaquim Pimenta e Evaristo de Moraes). É durante a passagem de Salgado Filho pelo Ministério (entre 1932 e 1934) que o Estado assume a primazia da elaboração da legislação social. O Estado Novo, praticamente, apenas sistematizou a legislação trabalhista existente, com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943.
A interpretação dominante dos cientistas sociais brasileiros, elaborada a partir da década de 1970, vê o período entre 1930 e 1964 como uma época em que prevaleciam o clientelismo e a manipulação e cooptação das massas trabalhadoras pelo Estado. Este, por sua vez, teria interrompido o desenvolvimento da luta da classe trabalhadora, que vinha desde a República Velha, subordinando-a aos seus interesses. O corporativismo estatal teria estabelecido um sistema trabalhista repressivo, influenciado pelo fascismo italiano. Os adeptos desta corrente interpretativa acabam acreditando na efetivação concreta das intenções autoritárias dos promulgadores da legislação trabalhista durante a ditadura do Estado Novo.
Deste modo, limitam-se a qualificar a legislação de “fascista” e entendem que a propaganda e a repressão estatal criaram trabalhadores domesticados e dependentes do Estado. Esta análise não leva em consideração a complexidade e a ambiguidade que marcam a adoção da legislação trabalhista e seu impacto nas relações políticas e sociais da classe trabalhadora.
Deve-se ressaltar, também, que o Estado Novo não foi um Estado fascista, embora o corporativismo houvesse influenciado a Carta de 1937 e o regime ditatorial. Foi uma ditadura latino-americana, um Estado autoritário, não um totalitarismo. A grande influência ideológica na elaboração das leis trabalhistas que pode ser detectada foi a do positivismo de Auguste Comte, adaptado ao Rio Grande do Sul pelo líder republicano Júlio de Castilhos, fundador do Partido Republicano Riograndense (PRR, o partido de Getúlio Vargas durante a Primeira República). A proposta do positivismo castilhista era a de uma política de eliminação do conflito de classes pela mediação do Estado, com o objetivo de integração dos trabalhadores à sociedade moderna. Proposta implícita na elaboração das leis trabalhistas durante o Governo Provisório e, especialmente, durante o Estado Novo.
Hoje, as pesquisas realizadas vêm demonstrando que a adesão dos trabalhadores ao populismo e à legislação trabalhista é também entendida como uma espécie de atuação pragmática, visando consolidar conquistas alcançadas e obter novos benefícios. A legislação trabalhista permitiu a imposição de concessões e deveres ao Estado e aos empregadores. A sua utilização é apropriada de modos diferentes de acordo com os vários interesses em conflito. Os direitos trabalhistas não foram entendidos apenas como dádiva, mas também como conquista.
O ponto-chave a ser entendido sobre a legislação trabalhista é a sua vinculação com a cidadania no Brasil. Os direitos trabalhistas, pela intervenção do Estado, deram acesso à cidadania aos trabalhadores, que foram incorporados à política a partir da década de 1930. Deste modo, a cidadania dos trabalhadores, no Brasil, foi alcançada não pelos direitos políticos, mas pelos direitos sociais, definidos por lei. É, nas palavras de Wanderley Guilherme dos Santos, uma “cidadania regulada”.
Isto significa que, a partir da década de 1930, os direitos dos cidadãos são decorrentes dos direitos vinculados à uma ocupação profissional, que, por sua vez, só existem pela regulamentação estatal. O instrumento jurídico que comprova o vínculo do indivíduo com a cidadania é a carteira de trabalho. A extensão da cidadania ocorre pela regulamentação de novas profissões e pela ampliação dos direitos associados ao exercício profissional, ou seja, os direitos trabalhistas.
Esta ampliação, ainda que limitada, da cidadania não foi absolutamente desinteressada. Na realidade, a elaboração da legislação trabalhista e a abertura do espaço político aos trabalhadores devem ser entendidos no contexto de um Estado nacional ainda fraco, com inúmeras divergências e conflitos entre os setores dominantes, que busca construir uma base social para firmar o seu poder. Este é um ponto crucial: as leis trabalhistas não foram elaboradas em benefício da burguesia industrial ascendente, embora pudessem atender aos seus interesses, mas para promoverem, com relativo controle do Estado, a organização e a estruturação da classe trabalhadora nos centros urbanos. Com o apoio dos trabalhadores, o Governo de Getúlio Vargas, sustentado por uma aliança frágil e dividida, poderia superar seus adversários internos. Do mesmo modo que os trabalhadores precisavam do Estado para garantir seus direitos, o Estado necessitava do apoio político dos trabalhadores.
Em vários setores, a legislação trabalhista e sindical favoreceu ou facilitou a mobilização e organização dos trabalhadores, pois a intervenção estatal contrapôs-se ao poder patronal, que passou a ser limitado por lei. O Estado acabou favorecendo, de forma não intencional, o surgimento de um espaço que poderia ser utilizado (e o foi, muitas vezes) para a organização dos trabalhadores. O que não significa que este espaço foi conquistado sem lutas. O atrelamento dos sindicatos ao Ministério do Trabalho (que durou até a Constituição de 1988) e a legislação sindical, elaborada, ainda, durante o Estado Novo, prejudicaram a organização autônoma dos trabalhadores, mas não a impediram.
A questão fundamental, na realidade, passa a ser a da concretização da CLT e o seu cumprimento pelo Estado, patrões e Justiça do Trabalho. A legislação trabalhista teve (e tem) este importante papel: o de criar uma cultura “jurídica” ou “legal” dos trabalhadores. Com a CLT, muitas vezes, o Estado foi utilizado para coibir violações de direitos por parte dos empregadores. Afinal, os trabalhadores não reivindicam nada mais do que o cumprimento da lei. A conquista dos direitos trabalhistas, em última instância, está ligada ao reconhecimento da dignidade dos trabalhadores.
Há muitas outras questões que poderiam ser aqui tratadas, mas que acabaram ficando de fora, como a política de integração nacional, da educação, da saúde, da ciência e tecnologia, etc. O importante foi ressaltar o papel central de Getúlio Vargas na estruturação do Estado brasileiro, na definição de um projeto nacional de desenvolvimento e na incorporação dos trabalhadores ao sistema jurídico e político.
Muitas críticas podem ser feitas às formas limitadas ou autoritárias sob as quais este processo ocorreu. No entanto, a intenção deste artigo foi o de chamar a atenção para a permanência de Getúlio Vargas, apesar de suas várias “mortes”. Se é verdade que o projeto nacional-desenvolvimentista de Getúlio Vargas foi derrotado pelo golpe de Estado de 1º de abril de 1964, com a queda de João Goulart e das “reformas de base”, também é verdade que este projeto continua sendo contraposto a todo o tempo às políticas entreguistas, de desmonte do Estado e de restrição dos direitos sociais que ocorreram e ocorrem no Brasil. Se há sessenta anos morria fisicamente Getúlio Vargas, sua obra e seus ideais continuam mais vivos do que nunca, à espera da tão adiada e necessária tarefa da superação do subdesenvolvimento, do término da construção da Nação, da efetiva emancipação do povo brasileiro.
(*) Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Publicado em Carta Maior