Numa pretensa “resenha” do 3º livro de Lira Neto, sobre Getúlio Vargas (Getúlio 1945-1954: da volta pela consagração popular ao suicídio), o diretor de redação da Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho retrata em inteireza e sem qualquer pudor a ideologia do setor da classe que ele teima em representar.

A propósito, renitência inútil: a corte endividada ao grande capital financeiro que a ele se gruda está irremediavelmente decrépita. [1] Não é à toa que tal vocalização da burguesia se agarra à desonrosa aflição de lutar até cair defendendo o fracasso das teorias dos “mercados autorregulados” que afundaram o capitalismo central na depressão![2]

Indo ao assunto, logo pelo título do texto publicado no jornalão de sua propriedade, “O atentado, o suicídio e a carta. Mil disfarces de Getúlio Vargas convergem num gesto de coerência”, Frias Filho diz a que veio: atacar, enxovalhar e tentar enterrar a memória do líder político número um e fundador consciente da industrialização capitalista no Brasil. Certamente: sendo parte de um grupo restrito de países latino-americanos que enfrentaram Grande Depressão de 1929, o Brasil à frente dos demais no concurso da industrialização, necessário “deixar bem claro que ainda que as pressões do processo econômico por mudanças estivessem presentes, foi necessária sua condução, pelo Estado, pela liderança de Vargas”, dissertou Wilson Cano. [3]

“Mil disfarces”, por óbvio, é maneira hipócrita (desrespeitosa e apátrida) que Frias Filho encontrou para esconder – apagar – a excepcional capacidade política de Vargas em desafiar conjunturas políticas inéditas, estranhas e de duro enfrentamento à corja de reacionários de sua própria classe, teimosa com Frias em jogar a história da República no pântano do atraso e de saudosismo passional ao comando escravocrata. Sim, os que odiavam Getúlio – que, além, foi ditador influenciado pela ascensão do fascismo, democrata e estadista – queriam que tipo de destinação ao processo colapsante de Império e República Velha?

Escória de uma burguesia bastarda

Ora, o traço mais relevante que emergiu da ordem burguesa brasileira e sua sociabilidade – a marca mais importante dela – é a escandalosa desigualdade social, que, como disse Wanderley Guilherme dos Santos importa captar a oração subordinada que assevera ser a desigualdade “a mais importante delas”, das contradições que atormenta aos trabalhadores e as camadas populares. Nas precisas palavras do eminente cientista social Guilherme dos Santos, a sociabilidade capitalista “moldou-se” – palavra-chave – pela inércia do escravismo, sequencialmente à construção do Estado capitalista estruturado pela escravidão reproduzindo dinâmica e inércia institucional de uma geração a outra. “Getúlio Vargas, nesse sentido, representa importante ruptura com a dinâmica herdada da escravidão, ao renovar as estruturas do Estado capitalista para incorporar aquela questão em seu próprio âmago” – sublinha Guilherme dos Santos (Apresentação à “A construção da sociedade do trabalho no Brasil”, de Adalberto Cardoso, FGV/FAPERJ, 2010).

Pois bem. Para Frias Filho, o padrão de revoluções no país, “com pouco ou nenhum derramamento de sangue e de transições negociadas” – ele queria ou gostaria mesmo que fossem derramados rios de sangue? -, onde estas por sua vez “se transfere por osmose à nova”, como 1989, 1930… e ele acaba por se denunciar ao incluir “1964” a tais transições “negociadas”! Ora, para quem assistiu seu próprio império de comunicação ceder seus automóveis para carregar presos políticos totalmente indefesos aos porões da tortura e assassinados pelos militares da OBAN; para depois, bem depois chamar pelo editorial de seu jornal o regime militar exatamente de “ditabranda”, é ou não é confissão deliberada e livre de defesa, inclusive do fascismo?

Acusação ideológica alucinada

Por isso também, para Frias Filho, o que importa da biografia dramática e trágica de Getúlio – um “sedutor matreiro capaz de se safar das piores encrencas” – é que ele “sentia atração pelo suicídio honroso”; que um dos filhos de Getúlio que suicidou-se em 1977, “parece sugerir alguma propensão inata” ao mesmo. Ora, desde Èmile Durkheim, ilustre sociólogo burguês, sabe-se que o suicídio egoísta, o altruísta e o anômico (ausência de regras na sociedade, gerando o caos, fazendo com que a normalidade social não seja mantida), todos eles sem exceção e suas causas, são segundo Durkheim, “sempre sociais”. No nosso tempo, as principais causas estatísticas de suicídio normalmente ocorrem em pessoas com o transtorno bipolar, a depressão, a dependência de drogas e também a esquizofrenia; não existe nenhuma evidência de “hereditariedade” suicida, mesmo que fatores genéticos atuem com frequência (irregular) em inúmeras sociopatias.
Frias Filho, “psicólogo” farsesco e arrogante acaba de descobrir o suicídio hereditário!

Sim, a imputação a uma família – de Vargas – de geneticamente suicida, por inferir Getúlio um doente mental, talvez seja a mais odiosa da história da República.

Há bem mais: no jogo de palavras aparentemente enganador de Frias Filho, Getúlio Vargas ao escrever em sua carta-testamento “Nada mais vos posso dar, a não ser o meu sangue” revelaria apenas uma ressonância cristã ao sacrifício “feito em nome do povo” e que sela sua aliança (“uma chama imortal”) com o líder imolado; que numa “condensação teatral de um drama muito maior”, o governo Getúlio via seu “raio de manobra” se estreitando por uma “polarização entre forças econômicas e interesses sociais contraditórios”, mas “o cobertor era curto, como sempre”, num momento de ambiente de negócios que se reclamava “como se diria hoje, mais amigável”.

Aliás, como diz e repete hoje a mesma linguagem das forças reacionárias e golpistas – “polarização”, diz ele – a que presta contas Frias Filho, Getúlio, então, “concedeu o controvertido reajuste de 100% do salário mínimo, elevando-o a valor real próximo ao de hoje” – vejam outro crime do presidente! Na mesma batida e mentindo novamente, Frias Filho afirma que o Partido Comunista rompera com Getúlio “por orientação de Moscou” (1954) para fazer agitação operária nas greves. Não houve interferência de Moscou à época, a orientação era nacional: Prestes e o partido inclusive já discutiam apoiar Getúlio assim como a seguir fez-se aliança com o PTB de Vargas, antevendo em certo sentido as tendências da onda golpista, apesar do giro à esquerda do Manifesto de Agosto (1950).

Baixo nível e manipulação

A ”resenha” de Frias Filho, sinuosa em elogios ao livro de Lira Neto – e chegando a chamar Getúlio de “estadista”, entre ataques -, é, além, francamente inspirada na famosa frase de Fernando Henrique Cardoso, de 20 anos atrás, “Eu disse (…) quando fui eleito que queria botar fim da Era Vargas”, referindo-se exatamente ao seu “modelo autárquico e ao Estado intervencionista” (1994).

Todavia, no exato momento em que se debate no Brasil os 60 anos do enorme impacto, a perplexidade da decisão de Vargas e sua herança como estadista, para Frias Filho:

“Getúlio foi um oportunista por excelência, adotando disfarces ideológicos que mais lhe convinha, a cada conjuntura”; sendo sua filha e colaboradora Alzira “também uma mulher corajosa, arguta e dotada de tino maquiavélico”.

E, finalmente, na analogia com a atualidade política do país, pergunta descaradamente o chefão da Folha: “O PT em vez do PTB, Lula em vez de Getúlio (Dilma em vez de Dutra?), o PSDB em lugar da UDN?…”. Como? Dilma Rousseff igual ao ditador liberal e entreguista Gaspar Dutra? Não há qualquer lógica nisso, mas claro que a pergunta é novo jogo de palavras para, a seguir, assinalar que ”essa identidade é aparente”. Então, por que a “pergunta”? Porque, para Frias Filho:
“O maniqueísmo ideológico dos anos 1950 se dissolveu numa espécie de centrismo tecnocrático, administrativista, no qual as alternativas, por mais encarniçada que continue sendo a luta de suas falanges pelo poder, não passam de versões um pouco mais à esquerda ou à direita –precisamente como PT e PSDB na atualidade, separados por divergências mais de grau e estilo do que de essência”.
Assim e principalmente, não existe, é nula na “resenha” de Frias Filho a fundação por Getúlio Vargas da Petrobras – quando no livro de Lira Neto há simplesmente 22 referências a Petrobras e petróleo! [4]
Não existe na “resenha” de Frias Filho nenhuma referência à criação do BNDE (BNDES), inclusive apoiada pela UDN golpista, bem como por jornais oposicionistas como “O Correio da Manhã”, questão e suas consequências que aparecem descritas em quatro páginas do livro de Lira Neto. [5]
Também como não existe qualquer referência as pressões do imperialismo na carta-testamento de Getúlio Vargas, carta esta manipuladamente “analisada” – à base de fofocas e intrigas fantasiadas ou amplificadas – pelo responsável editorial e chefe maior da FSP, para quem a ditadura militar foi uma “ditabranda”.
Lembremos então essa passagem imorredoura da carta de Getúlio Vargas:
“Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre”.

NOTAS
[1] Lê-se no Observatório de Imprensa (“Mídia endividada preocupa a sociedade”, 28/08/2014) a seguinte análise retrospectiva: “se a situação financeira do Grupo Folha é menos grave (de acordo com os dados de endividamento em eurobônus), sob o ponto de vista estratégico sua situação é mais séria, considerando que se trata de um grupo jornalístico que depende majoritariamente de apenas um veículo (a Folha de S. Paulo), enquanto os demais estão apenas alçando vôo (Agora São Paulo e Universo OnLine)”. Doutra parte, Octavio Frias, o pai, fundador do jornal, disse em entrevista a Jorge Felix, originalmente no AOL Notícias (21/10/2003): “Nunca vi a mídia tão endividada como hoje. Mas acho que é fruto da situação geral que não é fácil. Não só nacional, como mundial. O mundo atravessa uma crise econômica”.

[2] A declaração recentíssima de J. Stiglitz é apenas mais uma demonstração de lucidez: “A única maneira de descrever o que está acontecendo em alguns países europeus é depressão” (“Espectro de uma década perdida, como no Japão, ameaça a zona do euro”, Valor Econômico/ Financial Times, 22/098/ 2014).
[3] Ver: ”Crise de 1929, soberania na política econômica e industrialização”, de W. Cano, in: “A era Vargas. Desenvolvimento, economia e sociedade”, Bastos, P.P.Z., Fonseca, P. C. D. (orgs.), UNESP, 2013. Bom registar que Eleonora de Lucena, veterana jornalista da mesma FSP e sua diretora-executiva, em resenha decente e honesta considerou este livro “ótimo” (ver: “Atual, livro exibe a gênese da filosofia de Getúlio Vargas”, FSP, 9/12/2013).

[4] Em seu livro (p.217), Lira Neto faz questão, inclusive, de reproduzir a ordem de Getúlio frente às queixas contra os gastos (cerca de R$ 3,3 bilhões em valores atuais) envolvendo a criação da “Petróleo Brasileiro Sociedade Anônima”: “Prossigam os estudos sem temor quanto ao vulto dos investimentos, desde que os fundamentos do programa sejam objetivos e a possibilidade de mobilizar recursos seja efetiva”.
[5] Ver: páginas 232-3, 265, 396.