Os golpes de Estado no programa de Marina Silva
Por trás do cerco conservador à candidatura Dilma, e da fase alegre dos consensos em torno de Marina Silva – que Malafaia trincou com 4 ‘bordoadas’ de twiter, como ele próprio se jacta — existe uma encruzilhada política. É ela que está sendo escrutinada nos dias que correm.
O que as urnas de outubro vão decidir é se o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro será pautado por um salto revitalizador da democracia ou pela restauração neoliberal. A identidade programática entre Marina e Aécio nesse aspecto é tal que o tucano já acusa a afilhada de Neca do Itaú de roubo de patente. A patente de um governo deliberadamente subordinado à supremacia da lógica financeira.
Um governo que se propõe a ser um anexo do Banco Central independente. E que não oculta a determinação de entregar ao poder financeiro a gestão autônoma da moeda, do juro e, por isso também, do câmbio – e em consequência, do poder real de compra dos salários.
Democracia participativa ou a ditadura da lógica financeira? Interesse público ou apetites unilaterais? Um Brasil mais justo ou a desigualdade como motor da economia? A alavanca da produtividade ou o garrote-vil do arrocho salarial? A coordenação democrática da economia ou a farra das privatizações? Repactuar metas, concessões, salvaguardas e prazos com partidos, sindicatos, lideranças e movimentos sociais organizados; ou submetê-las à chibata do poder econômico local e global?
Não existe uma terceira via nessa disjuntiva. Pode existir nas bibliotecas. Ou nos devaneios marinados nos salões elegantes, onde o capital financeiro se veste de verde sustentável.
Mas o que distingue um devaneio ou uma biblioteca de um projeto político é justamente a construção das linhas de passagem concretas, aquelas que alteram a correlação de forças, criando um protagonista organizado, fiador de um futuro que não repita o passado. É isso que desafia a história concreta do Brasil hoje.
A pergunta levada às urnas é como pavimentar um ciclo de crescimento mais justo em meio à desordem sistêmica que o ideário neoliberal abraçado por Marina e Aécio instalou na economia mundial. O campo progressista diz que isso só acontecerá se as forças descontroladas dos mercados forem submetidas ao imperativo democrático do interesse público. Trata-se de subtrair espaços à incerteza e à volatilidade da lógica financeira.
A crise de representação intuída pelo descontentamento e a incerteza em relação ao futuro evidencia que nos limites atuais da democracia brasileira isso não ocorrerá. Mais democracia exige mais organização. Exige partidos mais fortes. Movimentos sociais mais articulados. Instituições adicionais que tornem os governos mais permeáveis. Exige informação plural.
Exige um Estado com poder de coordenação capaz de mobilizar recursos e políticas que contemplem os anseios e urgências da sociedade no curto, médio e longo prazo. Exige planejamento público que estabeleça coerência entre o horizonte do investimento pesado e as emergências inadiáveis.
Marina pensa diferente. Democracia de ‘alta intensidade’ sem partidos fortes. Justiça social com Estado mínimo.
O programa de Marina é uma bomba institucional.
O capítulo econômico é um golpe de Estado contra a participação da sociedade.
E esta é golpeada por medidas antagônicas que implodem o sistema representativo, piorando-o.
Não é uma ‘difamação petista’. Na verdade, a melhor crítica a essa algaravia de uma candidata eólica, que muda de ideia ao sabor dos ventos da conveniência – e o faz entre uma página e outra de um programa marmorizado de golpes e contragolpes contra si mesmo — foi feita por um sincero simpatizante.
O filósofo Renato Janine Ribeiro, em sua coluna no jornal Valor (01-09), declara-se vivamente entusiasmado com a ‘democracia de alta intensidade’ acenada por Marina Silva, cujos acenos são de fato corretos.
Assim:
“É um pouco vago, mas saúdo esse aprofundamento do projeto de democracia participativa de Franco Montoro ou essa retomada da democracia direta do PT em suas primeiras décadas. Uma participação maior do povo é o tema principal.”
A simpatia de Janine, todavia – a exemplo da de Malafaia, mas com sinal trocado — dura menos de 15 páginas de um catatau de 241 folhas.
Seu desconcerto, nas suas próprias palavras:
“Mas, quando chegamos à página 15, um “box” pretende traduzir este arrazoado – sério, correto, prioritário – em medidas que devam “deflagrar” a reforma política. Contudo, esse minirresumo executivo não bate com a filosofia antes exposta.
Os meios não dialogam com os fins! (…)
O que se propõe de prático e de imediato? Primeiro, a coincidência de todos os mandatos, inclusive municipais, numa única eleição a cada cinco anos, sem reeleição. Já defendi a reeleição e não volto ao tema (…) Ora, se este ano a campanha presidencial nublou a dos governadores, para não falar dos legislativos, como será se renovarmos todos os cargos ao mesmo tempo? E por que eleições mais espaçadas, e não mais frequentes? Tudo isso despolitiza. A escolha será menos meditada do que já é hoje. O que vai contra os ideais do programa. E uma contradição: quer-se preencher os “cargos proporcionais” segundo “a Verdade Eleitoral”, definida como a regra de proclamar eleitos os candidatos individualmente mais votados, sem levar em conta o partido ou coalizão a que pertençam. É curioso que isso seja exatamente o “distritão” proposto pelo vice-presidente Michel Temer. Aliás, assim os cargos deixam de ser preenchidos proporcionalmente (…). Mas isso acaba com os partidos.
Na verdade, as candidaturas avulsas, adiante recomendadas, deixam de ser a exceção e se tornam a regra. Todas as candidaturas serão avulsas. Não conheço país no mundo que adote esse critério (…). Há duas más consequências: primeira, cada candidato terá como adversários todos os demais candidatos, não sendo de seu interesse aliar-se ou somar suas forças a ninguém que dispute o mesmo cargo. Segunda, os partidos se liquefazem. Assim o mandato deverá pertencer ao eleito, não ao partido. Daí, a troca de partidos estará na lógica do sistema. Há o risco de que, em vez de criar canais paralelos aos da democracia representativa, esta última fique mais frágil, mais vulnerável ao canto de sereia do Poder Executivo. Isso pode até piorar nossa política! Porque, enfim, o programa tem um descompasso entre a meta nobre da maior participação popular, mas que não se traduz em nada concreto, e as reformas concretas, só que confusas e possivelmente com efeitos indesejados…”
As contradições estruturais no programa de Marina Silva não refletem apenas confusão. Tampouco ‘falhas de editoração’, como se alegou em relação ao casamento gay, ao apoio à energia nuclear e, possivelmente, em breve, em relação aos pontos agora denunciados pela honestidade intelectual de um simpatizante, como Renato Janine Ribeiro.
A verdade é que o espaço de coerência entre democracia e mercadismo – que nunca foi amplo – se estreitou ainda mais a partir de 2008, mesmo para a dissimulação de uma terceira via.
Mas também não é confortável para o campo progressista.
Justamente porque avançou muito nos últimos anos, explorando as linhas de menor resistência, mas também indo além delas em algumas áreas, o Brasil talvez esteja muito perto de ter atingido o limite na trajetória de construção a frio de um projeto de desenvolvimento com justiça social. Não avançará muito mais a partir de agora se menosprezar os interesses catalisados pelas políticas populares dos últimos dez anos. O baixo incentivo ao engajamento dos grandes contingentes ingressados ao mercado de consumo nas últimos anos revela agora seu calcanhar de Aquiles quando uma parcela dos eleitores entre dois e cinco salários se descola da candidatura Dilma.
Durante muito tempo se considerou que essa era uma ‘não-questão’; que tudo se resolveria no piloto automático de uma incorporação ao consumo, com avanços incrementais que se propagariam mecanicamente, das gôndolas das supermercados à correlação de forças na sociedade. Pode ser meia verdade em céu azul de brigadeiro na economia. A essa meia verdade, o economista Márcio Pochaman indagava premonitoriamente ainda em 2013:
“Criamos 17 milhões de empregos desde 2003; um milhão de jovens ingressaram na universidade graças ao Prouni e 1,5 milhão de famílias ascenderam ao Minha Casa, Minha Vida. Qual foi o saldo organizativo de tudo isso?”.
Pode-se atualizar a pergunta no tempo que resta para ser respondida: O que a candidatura progressista propõe como catalisador organizativo para que essa energia social se enxergue parte essencial de um segundo governo Dilma?
A resposta, certamente, passa por evidenciar ao eleitor popular algo de que carece o programa autogolpista de Marina Silva: a coerência entre meios e fins; entre o desenvolvimento que se quer para o Brasil e a democracia necessária para construí-lo.
Publicado em Carta Maior