A luta de classes e a Reforma Política
Um fantasma ronda a democracia brasileira. Desde que Jânio Quadros renunciou à Presidência da República, em 25 de agosto de 1961, as alegadas pressões das “forças ocultas” povoam o imaginário popular. O que seriam elas? O próprio Jânio Quadros, na carta de renúncia, deixou pistas evidentes sobre a sua composição política. “Forças terríveis levantaram-se contra mim e intrigam ou difamam, até com a desculpa da colaboração”, escreveu. Segundo ele, “baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito seu generoso povo”.
Jânio nunca se ligou realmente a partido nenhum, mas fora eleito pela União Democrática Nacional (UDN) — o que é um bom fio da meada. Quando recebeu a faixa presidencial de Juscelino Kubitschek, em 1961, ato contínuo ele descompôs o presidente que deixava o cargo com um discurso furioso ao anunciar inquéritos para apurar “corrupção” na gestão anterior. Era uma peça bem ensaiada com seus chefes udenistas: a pecha da “corrupção” contra Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek havia conquistado alguma simpatia entre as classes intermediárias e fora decisiva para levá-lo à Presidência da República.
Jânio Quadros e Che Guevara
Contudo, seus gestos histriônicos e seus bilhetes teatrais só contribuíram para alimentar o clima de grande tensão política que existia no país. Sua derrocada, no entanto, decorreu de um fato menos prosaico: a política externa do seu governo. O Brasil apoiou a discussão sobre a participação da China na Organização das Nações Unidas (ONU) e chegou a anunciar que estava estudando o reatamento das relações com a União Soviética, rompidas desde 1947. A gota d’água, porém, foi a condecoração da Ordem do Cruzeiro do Sul oferecida a Che Guevara. Jânio Quadros já havia se afastado de qualquer controle da UDN e buscava uma aproximação com as correntes nacionalistas. Daí para a crise política criada pelas “forças ocultas” que o levou à renúncia foi um pulo — pela função que exerce o comércio exterior e o mundo das finanças, quem os controla tem grande força política no país.
As tais “forças ocultas” começaram a se organizar politicamente ali pelos meados da década de 1940, quando a luta do nacionalismo contra a “ortodoxia” liberal ganhava terreno. Desde então, elas têm sido o fio condutor da direita que perpassa e une cada estágio da luta política no Brasil. Hoje, os elementos políticos que compõem o quadro partidário são praticamente os mesmos que existiram entre 1945 e 1964; eles retratam uma estrutura de classes que ficou mais nitidamente definida com o salto desenvolvimentista do país iniciado na Revolução de 1930. E os partidos, como veículos políticos de interesses de diferentes seguimentos da sociedade, procuram se adaptar a essa estrutura.
Explicadores do Brasil
As transformações econômicas e sociais iniciadas com a chegada de Getúlio Vargas ao governo reforçaram, de um lado, um polo centrado em uma elite entreguista, e, de outro, uma classe trabalhadora que participa cada vez mais ativamente da vida política nacional. Ou seja: as contradições na disputa política pelo poder tornaram-se flagrantes. Não por acaso, desde então — e mesmo no período em que a Revolução de 1930 fermentou, em 1922 e 1926 —, a sucessão presidencial tem se transformado repetidamente em movimento político de massas, importante elemento mobilizador das mais amplas camadas da população e servido de fermento para violentos choques de classes.
É preciso ir fundo para saber o que de fato está em jogo quando ocorrem eleições no país. As obras dos principais ”explicadores do Brasil” — como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, dentre outros — tonaram o país mais inteligível e, por meio delas, entendemos melhor a chamada “alma brasileira”. O livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, por exemplo, explica porque alguns partidos políticos ainda funcionam como redes de interesses cuidadosamente preenchidas e são comandados por donos obtusos, líderes conservadores e práticas retrógradas.
Maldade insana neoliberal
Eles são o retrato de uma parte poderosa do Brasil onde prevalece o velho modelo fundado na “ética” da “casa grande”, com papéis bem definidos e lema bem estabelecido: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Curiosamente, esse arcabouço ideológico ata pontas díspares ao unir, num mesmo rumo, desde a direita mais arcaica até a esquerda mais míope. Obviamente, esse condomínio não tem a menor chance de oferecer ao país alguma perspectiva de progresso social. Basta constatar que os projetos que mais trouxeram avanços para a humanidade foram moldados pelas teorias dos pensadores progressistas dos últimos séculos.
No período mais recente, contudo, o conservadorismo recobrou forças ao lançar o projeto neoliberal, que frequentemente dá um ar de modernidade à maldade insana de regimes políticos direitistas. Na Ásia, ele devastou a economia de muitos países. Na Europa e nos Estados Unidos, ele instalou uma crise que não dá o menor sinal de arrefecimento. Em muitos países europeus, partidos de cores social-democratas aderiram à “Nova Política” — ou à Terceira Via — (”o oportunismo com rosto humano”, nas palavras de um crítico norte-americano) e foram tragados pelo turbilhão que está devastando economicamente o continente.
Crise política em ”câmera lenta”
Na América Latina, nos anos 1990 os governos de direita prometeram acabar com as recessões. Não cumpriram a promessa. Depois vieram as pretensões desvairadamente exageradas de que o governo poderia aumentar a renda e a qualidade de vida da população por meio da “estabilização da moeda”. O resultado foi um tremendo fiasco. O cinismo neoliberal, enfim, vai conquistando seu lugar nos livros de história com a corrupção, as mortes, o sofrimento e a pobreza que provoca. Agora, os neoliberais se propõem a impedir a continuidade da tendência progressista latino-americana por meio da pregação gobbeliana contra o “populismo”.
No processo eleitoral em curso no Brasil, a direita certamente tentará acuar o governo Dilma para forçá-lo a se agarrar à agenda econômica. “O que não houve de populismo ainda é porque o setor financeiro do governo se atrasou”, disse recentemente o ex-presidente neoliberal Fernando Henrique Cardoso (FHC). Segundo ele, só a defesa da austeridade fiscal, das metas inflacionárias e da flexibilidade cambial será capaz de manter a crise econômica em ”câmera lenta”. Enquanto isso, os conservadores aceleram a montagem da operação de resgate das suas políticas que tanto mal causaram ao país.
Política balizada pela economia
Os ataques à estrutura partidária brasileira, portanto, têm motivações mais de fundo. Ao passar a impressão de que os “políticos” não prestam, que os partidos brasileiros são sacos de gato nas mãos de negociadores profissionais, que a Presidência da República só consegue governar comprando votos eles conquistam plateias para essa pregação oportunista — e golpista — que ganhou força no Brasil no auge da histeria neoliberal dos anos 1990. E, assim, manipulam o sentimento de mudanças que se reforça à medida que o país avança em muitos setores essenciais para o progresso social.
Tanto que essa manipulação começou a ganhar contornos mais agressivos quando Luis Inácio Lula da Silva venceu as eleições em 2002 fazendo acenos para o status quo (especialmente com a “Carta ao Povo Brasileiro”). Os conservadores correram para pregar que o Partido dos Trabalhadores (PT) adquirira certa “maturidade”. Por trás desse “amadurecimento” estaria a assunção de que a política está cada vez mais balizada pela economia. O mercado financeiro, com sua sede inflexível por resultados e por previsibilidade, seria a engrenagem por meio da qual o Estado funcionaria com mais “responsabilidade”. Como a complexa equação econômica que define a situação brasileira não se alteraria com a mera chegada de Lula a Brasília, o leque de opções que o novo presidente teria no Palácio do Planalto não seria muito diferente daquele que compôs o painel de comando do país no governo tucano.
O medo vence a esperança
A cúpula do PT aparentava ter assumido isso. Tanto que, no começo de 2003, respondendo a ataques de senadores da direita segundo os quais a oposição “petista” ao governo FHC impediu a aprovação das reformas neoliberais o então senador e líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante (PT-SP), lembrou que a administração tucana tinha ampla maioria e poderia ter votado o que quisesse. Mas encaixou a ressalva: “Ainda que a oposição possa ter contribuído para não aprovar coisas relevantes para o país. E estava errada quando não contribuiu”. Mercadante fez questão de ressaltar a história em seu site pessoal, colocando lá os editoriais em que os jornais O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo aplaudiram o mea-culpa. Saiu assim no site: “Mercadante na mídia: editoriais sobre a autocrítica do líder do governo.”
O discurso petista havia mudado durante a campanha presidencial, especialmente com a “Carta ao Povo Brasileiro”, assinada por Lula. Mas era um texto de campanha, do candidato, não do partido. O novo governo, contudo, depois de bater cabeça, assumiu a política econômica da “era FHC” de forma explícita. Logo em seguida, o economista Paul Singer, petista tradicional, publicou no jornal Valor Econômico um artigo elegante, mas cujo título não deixava dúvidas: “O medo vence a esperança”. Singer inverteu o sentido da frase do presidente Lula para explicar sua vitória e arrasou com a opção “ortodoxa” de política econômica — a que “tem medo da inflação acima de tudo” e “vê o futuro ameaçado pelos desequilíbrios financeiros”. Felizmente, não demorou muito para a realidade impor uma nova dinâmica ao comando da economia brasileira.
Perspectiva republicana
Essa divergência tem raízes ideológicas históricas. O cânone neoliberal tentou emprestar uma coloração moderna para ela com seu viés autoritário — a não intervenção do Estado na vida econômica seria o 11° mandamento, ditado por algo sobrenatural, acima do bem e do mal — para tentar encobrir uma luta inexorável pelo poder. Recentemente, o candidato tucano Aécio Neves voltou ao tema ao dizer que, “numa perspectiva republicana, o governo é para servir às pessoas, não aos partidos”.
Há nessa afirmação dois sofismas. O primeiro é a deliberada generalização das “pessoas” a quem um governo republicano deve servir prioritariamente. Contra os conservadores, contudo, pesa a tradição republicana, que é essencialmente progressista — nenhum presidente da República elegeu-se com o voto popular prometendo claramente defender interesses elitistas. Em nossa história, existem muitos exemplos de governos odiados pelo povo por prometer uma coisa e fazer outra. O segundo sofisma é a tentativa demagógica de negar que os partidos são expressões de classes sociais. Numa perspectiva republicana, portanto, governos democráticos levam a sério o papel dos partidos. A negação desta obviedade implica, em última instância, no cerceamento da manifestação democrática do povo.
O mundo político se movendo
O “Programa de Governo” da candidata Marina Silva aborda o assunto no mesmo tom ao propor “a adoção de novos critérios na definição da ordem dos eleitos para cargos proporcionais buscando aproximação da Verdade Eleitoral, conceito segundo o qual os candidatos mais votados são os eleitos”. “O primeiro passo de uma reforma (política) implica exigir comportamento republicano de todos os agentes políticos e dos demais ocupantes de cargos públicos”, prega o texto. Contudo, essa “Verdade Eleitoral”, presente em qualquer dos subsistemas distritais (distrital puro, distrital misto ou distritão), não garante a representação plural da população, especialmente para as minorias; os mais votados serão os que podem mais, gerando uma prevalência, não republicana, do poder econômico.
A controvérsia, que aparece em primeiro plano na luta política instalada no país, decorre de um fato novo na vida brasileira dos últimos tempos: a entrada em cena de novos atores. O Estado passou a atender novos interesses, além dos antigos. Passou a favorecer mais segmentos sociais ou simplesmente conviver harmoniosamente com forças novas e mobilizadas. Todas essas contradições, evidentemente, provocam reflexos na vida política. O amadurecimento que houve, na verdade, foi o proporcionado pelo novo cenário em que vivemos, onde as classes definem precisamente os seus campos e mobilizam-se para a defesa de seus interesses — intervindo na escolha eleitoral e na composição das forças que constituem o poder. É o mundo político se movendo e mostrando abertamente as duas vertentes existentes no país.