Eleições mudam alguma coisa?
A revista “Veja”, há algum tempo, publicou um “pequeno (o termo pode ter sentido duplo) dicionário das (re)criações políticas” que, entre outras asneiras, define o “verbete” democracia como “todo regime simpático a Brasília em que o povo não tem força suficiente para tirar do cargo o governante que se pretende eterno”. (É uma alusão ao apoio do Brasil a Cuba.) A própria “Veja” prestou um grande serviço ao lembrar — puxando a brasa para a sua sardinha, evidentemente — que o termo é o mais vilipendiado do vocabulário político em todos os tempos. Para o conceito liberal, que tem a pretensão autoritária de ser sinônimo de democracia, o termo se limita à prática política representativa e consiste somente na realização periódica de eleições. Os Estados Unidos são o epicentro desses mitos “democráticos” — o país do individualismo, dos caubóis solitários, do Estado que apenas garante “a lei e a ordem”.
Os liberais sempre procuram fundamentos doutrinários para empurrar os adversários ideológicos para fora da liça. Eleições livres e limpas, em que todas as pessoas votam, todos os votos têm peso igual e todos os eleitores podem ser votados — com as exceções determinadas por uma Justiça justa —, não são, para eles, critérios intrínsecos à democracia. No Brasil, essa concepção ganhou força desde 1994, quando a legislação começou a engessar as eleições. A linguagem publicitária começou a priorizar o discurso mais dissimulado e menos politizado. Os parâmetros que regulam a aparição dos candidatos na mídia, com o intuito alegado de tornarem a disputa mais igual, tornaram-na apenas mais chata. Entramos numa fase de eleições de refluxo, de comedimento, de confronto indireto. Eleições decididas na sala de casa e não nas ruas, no jogo publicitário e não no debate ou no confronto de propostas.
Há ainda muita demagogia barata
Como consequência, as eleições deste ano não parecem que estão sendo realizadas no mesmo país daquelas da década de 1980. Vê-se pouca gente vestindo camisetas e bonés, carregando bandeiras, ostentando bótons. Vivemos neste ano, mais uma vez, as eleições em que o bloco liberal optou pelo jogo rasteiro e foge do confronto ideológico. Ou seja: entraram em cena as práticas que tentam induzir o eleitor a não levar o voto a sério. Querem que ele o troque por propostas capciosas, formuladas segundo poderosos interesses e embrulhadas em hipocrisia ou, não raro, o venda — junto com o futuro dos seus filhos — até por uma carga de areia ou uma leva de tijolos. Quando não por uma promessa de contrato milionário ou de ajuda financeira futura. Talvez seja isso o que se chama por aí de crise de representatividade.
Na contramão deste movimento no Brasil, está a política propriamente dita, o debate partidário que se estabelece no país. Há ainda muita demagogia barata por parte de candidatos ideologicamente identificados com a direita. E muita desinformação, falta de seriedade com os eleitores ou estultícia mesmo de alguns partidos. Mas a existência de uma esquerda atuante ao longo da nossa história republicana confere uma coloração politizada aos debates eleitorais. O problema, portanto, não está na ferramenta — a democracia — mas no uso que se faz dela. A utilização que as classes dominantes fazem das eleições é meramente pragmática.
É preciso remar contra a maré
A questão é: como as forças políticas que lutam por transformações estruturais devem proceder num jogo com estas regras? É preciso remar contra a maré e politizar a campanha. Desde 2002, houve uma mudança radical na correlação de forças sociais e políticas no país. A expressão eleitoral de Luis Inácio Lula da Silva, representada por sua votação espetacular em duas disputas eleitorais vitoriosas, é mais ampla que sua tradicional coalizão partidária de esquerda e que a própria aliança social que o apoiou ostensivamente. Ela abrange, além dos setores populares organizados, uma ampla fatia das classes médias e parcelas do empresariado.
Um bom ponto de partida é a valorização da concentração de forças políticas que representam esses segmentos nas eleições deste ano, a chave-mestra para o futuro do país. A questão das alianças tem sido fundamental para criarmos as bases da reeleição de Dilma Rousseff. Essa é, portanto, apesar dos limites de uma eleição regida pelo conceito liberal, uma oportunidade histórica para fazermos uma campanha politizada. A política de alianças, fundada em um programa político básico que defende fundamentalmente a união de todas as forças que são contra as políticas neoliberais, talvez seja a mais importante construção das forças democráticas e progressistas nestas eleições. E isso inclui os partidos que estão no centro que, quando não se unem à esquerda, não ficam no centro — vão para a direita.