Economia brasileira: Bird, OCDE e Unctad desmentem mortos-vivos neoliberais
Nunca antes na história deste país se viu um debate eleitoral com a economia tão presente. E a inesgotável capacidade da direita brasileira, com o inestimável auxílio de alguns setores de “esquerda”, de se engajar em discussões cujos resultados se enquadram na clássica categoria rodriguiana do óbvio ululante tem pautado o assunto recorrentemente. Por trás do debate aparentemente técnico, em que “especialistas” são chamados a contribuir com suas “análises objetivas”, contudo, há um cenário político complicado para a oposição. A prova incontestável disso é que a mídia e seus produtos supostamente informativos — editoriais, programas de entrevistas, análises de articulistas, notícias e pesquisas de opinião — estão caprichando nos chutes a torto e a direito.
Na verdade, não é de hoje que essa verdadeira indústria do “achismo” — na qual se chega ao ponto de falar de economia ao mesmo tempo em que se explica a noção de juros inscrita no metabolismo dos seres vivos, como ocorreu em um programa Roda Viva, da TV Cultura, com o economista Eduardo Gianetti da Fonseca, guru econômico da candidata Marina Silva — dos megacartéis de “opinião pública” que deitam falação em nome da “sociedade” sem ter recebido nenhuma procuração explícita de algum conhecido seu ou meu para representá-lo vem engolindo os dados da economia brasileira de forma atravessada. E a pessoa que presencia regularmente insultos, ataques pessoais, intrigas, falsidades, invenções, erros de fato e mentiras, puras e simples, não tem como se defender.
Realidade do Nordeste
A alavanca desse procedimento é a superestimação das mazelas do país com a intenção deliberada de criar o pessimismo e o derrotismo. Cultiva-se então o que o cientista social Albert Hirschman, alemão radicado nos Estados Unidos, batizou de fracassomania. Ele criou a expressão depois de ter conhecido de perto a situação de países como Itália, Colômbia e Brasil. Ao comentar o assunto para numa revista econômica italiana em 1994, Hirschman contou como desenvolveu o conceito. “Na Colômbia, a primeira reforma agrária promovida nos anos 1930 pelo governo de Alfonso López sempre foi interpretada como um fracasso total quando, pelo contrário, os dados que eu recolhia indicavam com clareza que nas zonas rurais se haviam produzido mudanças em sentido positivo”, disse.
No Brasil ele se debruçou sobre a realidade do Nordeste, uma área onde se dizia que as obras públicas feitas para combater a seca apenas teriam produzido corrupção e uma grande dilapidação de dinheiro. “Parecia que tudo havia fracassado e que de todos os esforços não havia ficado nada. No entanto, olhando melhor, via-se desenvolvimento, algo progredia”, afirmou. Hirschman conta que, quando foi escrever sobre o assunto, ressoavam nos seus ouvidos frases recorrentes, tais como “povera Itália” (“pobre Itália”), que ele se cansou de ouvir no tempo em que viveu ali.
A fracassomania representa, diz ele, um desconhecimento da bagagem de conhecimentos produzida pelo passado, uma convicção de que tudo o que foi feito se transformou num fracasso. Ele cita como outro exemplo o fato de os intelectuais latino-americanos de direita terem resistido sempre a reconhecer que os trinta anos gloriosos que se seguiram a 1950 representaram um período de ascenso das sociedades. Quando finalmente reconheceram, foi para poder dizer: Agora sim, as coisas estão indo terrivelmente mal! No debate eleitoral, essa técnica é usada para alimentar o derrotismo eleitoreiro para que as transformações no país não sejam percebidas.
Dose cavalar de invectivas
A comentarista de assuntos econômicos das Organizações Globo, Miriam Leitão, por exemplo, decretou que o programa Bolsa Família estaria trazendo “mais prejuízos do que benefícios para os brasileiros” e foi desmentida logo em seguida pelo Banco Mundial (Bird) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ela e outras sempre bem informadas autoridades em abobrinhas misturam, em seus diagnósticos fracassomaníacos, economia, política e uma dose cavalar de invectivas para alimentar ondas de boatos de toda ordem. Nesse coquetel entram os ingredientes mais diversos e disparatados entre si — qualquer coisa serve, desde que faça volume. Entram “denúncias” requentadas, “denúncias” que estão paradas há tempos e “denúncias” que talvez um parlamentar oportunista faça algum dia.
Para além da eclética e deletéria boataria, dissemina-se pelo país um sentimento de Armagedom, uma mistura de bravatas, foguetórios e pouquíssima substância. Quando os fatos são revelados, no entanto, suas conclusões se transformam em episódios patéticos. Analisemos, por exemplo, os dados parciais da geração de empregos em agosto deste ano, quando foram criados 101.425 postos de trabalho, divulgados nesta quinta-feira (11) pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho. A mídia se apressou em dar manchetes esfuziantes sobre a queda de 20,54% quando comparado ao mesmo mês de 2013, relegando para segundo plano a geração de 751.456 novos postos de trabalho em 2014.
Mais e melhores empregos
O número, na verdade, se comparado com a realidade da economia mundial, deveria ser festejado. O Bird acaba de dizer que o Brasil e a China são os motores do emprego e advertiu que o mundo precisa criar 600 milhões de postos de trabalho até 2030 apenas para lidar com o aumento da população. “Não há dúvidas de que há uma crise de emprego generalizada”, destacou Nigel Twose, chefe da delegação do Bird na reunião dos ministros do Trabalho e do Emprego do G20, na Austrália. “Os países do G20 necessitam de mais e melhores empregos para um crescimento sustentável e para o bem-estar das suas populações”, destacou um documento da organização, cuja divulgação antecedeu a reunião ministerial dos dias 10 e 11.
Twose também mencionou o Brasil como exemplo de redução das desigualdades salariais. “Igualmente perturbador é estarmos vendo o aumento das desigualdades salariais e de rendimentos em muitos países do G20, apesar de terem sido alcançados progressos em algumas economias emergentes, como Brasil e África do Sul”, disse ele. O documento, compilado com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — órgão das Nações Unidas para o comércio e desenvolvimento —, diz que há cerca de 100 milhões de desempregados nos países do G20 e 447 milhões são “trabalhadores pobres”, vivendo com menos de US$ 2 por dia.
O Bird destaca ainda, que, apesar da modesta recuperação econômica em 2013-2014, o crescimento global deve manter-se abaixo da tendência, com quedas previstas num futuro próximo, enquanto os fracos mercados de trabalho forem restringindo o consumo e o investimento. “Não há um truque de mágica para resolver esta crise do emprego, quer nos mercados emergentes, quer as economias desenvolvidas”, disse Twose. O Brasil, contudo, vem atravessado relativamente bem esse cenário de turbulência graças a medidas adotadas no ciclo que o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira vem chamando de “novo desenvolvimentismo”, um enfrentamento ao “imperialismo neoliberal” iniciado com a eleição de Luis Inácio Lula da Silva para a Presidência da República em 2002.
Mercados emergentes
No auge da atual crise internacional, em 2009, Lula disse em um encontro empresarial Brasil-Chile, realizado na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) com a presença da presidente chilena, Michelle Bachelet, que o Brasil enfrentaria a crise fortalecendo seus laços comerciais sobretudo com a América Latina. “A diversificação dos investimentos de produtos é uma garantia contra a crise; é preciso acabar com a ideia de apostar na loteria o tempo todo”, disse ele. “Antigamente, era chique dizermos que íamos para Paris, Londres ou Estados Unidos fazer acordo de negócios. Esse é o momento de fortalecermos o comércio na América Latina”, afirmou o presidente.
Para Lula, os empresários brasileiros deveriam prestar mais atenção às oportunidades de negócio nos mercados emergentes. “Se uma pessoa pegar um pedaço de pano e vender na avenida Paulista ou nos Jardins, as chances dele conseguir negócio é praticamente zero. Agora, se ele for no Jardim Miriam ou na Vila Carioca, onde eu morei, a chance cresce bastante”, comparou. “Não quero ser ufanista, mas a crise já está ficando uma coisa do passado. O Brasil já estava arrumado e o país fez o que tinha que fazer. Está na hora de a gente construir um marco regulatório de verdade para destravar definitivamente nosso país”, completou.
Demanda doméstica
O Brasil, evidentemente, não vem atravessando a crise totalmente incólume. Mas o resultado da sua economia, levando-se em conta o cenário internacional, é incontestavelmente positivo. E quem diz isso é ninguém menos do que o relatório anual da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), que traz uma previsão considerada bastante otimista para o país. O crescimento econômico da ordem de 1,3% previsto em 2014 é muito superior à média de projeções do mercado financeiro — que trabalha com a expectativa de apenas 0,48%, segundo a pesquisa Focus divulgada pelo Banco Central na segunda-feira (8).
Esse crescimento, obviamente, está muito aquém das necessidades brasileiras. Mas ele está alinhado com outros países da região — abaixo de outros emergentes, porém — e reflete, além dos efeitos da crise internacional, fatores internos. “A América Latina desacelera e reflete o desempenho da Argentina, Brasil e México. A demanda doméstica perdeu o ápice e choques externos também afetaram”, diz o documento, que prevê para o conjunto latino-americano uma expansão do PIB de 1,9% em 2014.
A Unctad alerta que, seis anos após o início da crise mundial, “o retorno às políticas de sempre não foi capaz de lidar com as causas profundas da crise”, referindo-se ao predomínio do sistema financeiro na dinâmica da economia global. “A continuidade do domínio financeiro sobre a economia real e a persistência do declínio da participação do salário no produto são simbólicos da incapacidade de enfrentar as causas da crise e sua recuperação anômala”, adverte o relatório. Para a organização, apenas o fortalecimento da demanda agregada pelo crescimento real dos salários e pela distribuição de renda mais igualitária poderão romper o longo período de baixo crescimento.
Políticas inadequadas
O estudo considera fraco o crescimento de 2,5% a 3% da economia mundial esperado para 2014, pouco melhor do que em 2012 e 2013 — 2,3%. E culpa as políticas inadequadas adotadas pelos países ricos. Segundo a Unctad, o crescimento do comércio global, pouco acima de 2% em 2012, 2013 e no início de 2014, continua inferior ao da produção global, devido à fraca demanda mundial. E acrescenta que isso não é fruto do aumento das barreiras comerciais ou dificuldades do lado da oferta. “Os esforços para estimular as exportações por reduções de salários e desvalorização interna são autodestrutivos e contraproducentes, especialmente se vários parceiros comerciais seguirem esta estratégia simultaneamente”, alerta.
A chefe da delegação argentina na reunião ministerial de Trabalho e Emprego do G20, Marta Novick, também defendeu o aumento do salário mínimo como estratégia de crescimento econômico e de garantia social. O salário mínimo argentino, que teve este ano um aumento de 31%, figura como “uma contribuição para a macroeconomia porque os recursos que chegam aos mais pobres traduzem-se em uma maior procura, produção e crescimento”, disse ela.
Ciclo virtuoso de geração de riqueza
Esse relatório deveria ser leitura obrigatória para os economistas conservadores, especialmente os gurus de Marina Silva e Aécio Neves. A política econômica acertada do Brasil e reconhecida pelo Bird-OCDE e pela Unctad baseou-se na constatação de que com a escassez de crédito internacional as agências de fomento — como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — deveriam priorizar o investimento nos empreendedores nacionais para criar emprego e renda, de forma a sustentar um ciclo virtuoso de geração de riqueza e expansão da capacidade produtiva.
Para a candidata Marina Silva, no entanto, o Brasil errou ao fazer essa opção. “Eles querem continuar colocando R$ 500 bilhões no BNDES para dar para meia dúzia de ungidos que são escolhidos pelo governo para serem os campeões”, disse ela em entrevista o jornal Valor Econômico de quinta-feira (11). Ela sustenta que o “crescimento pífio que o governo ostenta” se deve ao “descrédito” do Brasil no cenário internacional, o responsável pelo “baixo investimento” no país. “Quando as demais economias do mundo começam a se recuperar do tsunami com que foram assoladas — e que o governo dizia que era apenas uma marolinha —, o Brasil vive o tsunami de não ter feito o dever de casa”, afirma ela, contrariando os dados do Bird-OCDE e do relatório da Unctad.
O dever de casa de Marina Silva
O dever de casa seria a decantada “independência” do Banco Central (BC). Segundo Marina Silva, Lula começou a governar de forma obediente aos ditames financeiros internacionais, mas logo perdeu as rédeas e a economia brasileira mergulhou no poço, chegando ao seu fundo no governo da presidenta Dilma Rousseff. “O presidente Lula, quando ganhou o governo, quis dar um sinal forte para a sociedade brasileira de que os instrumentos da política macroeconômica seriam preservados. Fez isso com uma Carta aos Brasileiros, convidando Meirelles (Henrique Meirelles, ex-presidente do BC), e durante seu primeiro governo tivemos o cumprimento dessas metas. No seu segundo governo, as coisas já foram se depreciando. No governo da presidente Dilma estão chegando ao fundo do poço”, analisou.
Segundo ela, a autonomia de fato que o BC conquistara no período dos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) agora está completamente desacreditada. “A autonomia do Banco Central hoje é para recuperar credibilidade, para que o país volte a ter investimentos, volte a crescer. Foi tão depreciada no atual governo, que Eduardo Campos anunciou que iria buscar formas de institucionalização dessa autonomia”, disse ela.
Outra constatação da Unctad que contraria Marina Silva é a colaboração Sul–Sul, também reconhecida como oportunidade para que as nações em desenvolvimento intensifiquem o comércio regional e se fortaleçam mutuamente. “Uma agenda de desenvolvimento pós-2015 não será factível sem a disponibilidade de mais instrumentos e maior flexibilidade na definição de políticas”, afirma o estudo ao propor uma reforma efetiva da arquitetura financeira global, que garanta financiamento mais estável e de longo prazo público e privado para as economias pobres.
Práticas dos governos neoliberais
O “Programa de Governo” da candidata de oposição, contudo, afirma que esse caminho não levou a nada de bom. “Não se configurou, enfim, a anunciada decadência do Ocidente e uma ascensão definitiva dos países emergentes. A sorte destes últimos parece depender menos de profecias do que de políticas acertadas em produtividade, inovação, participação em cadeias produtivas e acordos seletivos de comércio”, aponta o documento, indicando que o Brasil deve seguir, prioritariamente, os ensinamentos das economias dos Estados Unidos e da União Europeia.
Além de uma “atualização” das relações com os Estados Unidos, diz o “Programa de Governo” de Marina Silva, o Brasil precisa aproveitar o “largo potencial para o adensamento da relação estratégica com a União Europeia”. Segundo o documento, ao privilegiar a relação política com os países em desenvolvimento o governo brasileiro errou inclusive em questões como direitos humanos. Advogando pontos de vista marcadamente contrários aos interesses dos povos que lutam por seus direitos, o texto afirma que, “em torno daqueles valores (direitos humanos e garantias fundamentais), que são universais, justifica-se que alarguemos nossos horizontes, contribuindo, como é tradição de nossa diplomacia, para a formação de consensos sem vícios ideológicos e confrontações estéreis”.
A verdade é que o neoliberalismo agravou a crise do sistema capitalista ao exacerbar a desigualdade entre classes e nações, a concentração de renda e as contradições sociais. Ao tomar o rumo progressista em 2002, o Brasil ajudou a despachar esse modelo perverso — com expressões de pesar e desapontamento da mídia e da direita em geral —, moído por índices vergonhosos de injustiças sociais, pela violência, pela inépcia geral da administração e pelo que existe de pior na política. As práticas dos governos neoliberais fizeram seus defensores perderem o odor de santidade com o qual se apresentavam ao público.
Receituário amargo
A presidenta Dilma Rousseff tem feito discursos consequentes ao dizer que a crise brasileira é complexa e diz muito mais respeito às mudanças qualitativas que precisam ser operadas e aos imperativos da conjuntura internacional do que ao que pode ou não fazer um presidente. A crise iniciada em 2007-2008 pode dar novos sobressaltos a qualquer momento. E o Brasil precisa se prepar para evitar a volta daquele triste espetáculo protagonizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que aportava por aqui com botes salva-vidas carregados com bilhões de dólares e seu receituário amargo para o povo. O Brasil da “era FHC” pagou um preço caríssimo por seguir o receituário que a candidata Marina Silva — assim como Aécio Neves — quer ressuscitar: lei de falências que castigaram as empresas nacionais, aperto orçamentário que arrocharam os investimentos estatais e as políticas públicas, privatizações que fragilizaram a soberania nacional e desregulamentação das relações de trabalho.
Com a tentativa da oposição de fazer ressurgir o neoliberalismo morto e enterrado pelo ciclo de governos progressistas na América Latina, os brasileiros precisam meditar e analisar esses fatos de forma criteriosa. Não apenas porque a saúde econômica do país está em jogo, mas, sobretudo, para melhor refletir sobre os destinos do país. A edificação de uma sociedade menos injusta começa pela via política. Será por esse meio que construiremos as bases para uma economia em desenvolvimento. Para isso, é preciso ser perseverante. Partidos, sindicatos, associações populares e outros canais democráticos deverão concentrar esforços no entendimento dessa realidade para criarmos as alavancas que irão impulsionar esse grande projeto nessas eleições de 2014.