Uma imagem tem sido recorrente, nos últimos meses, como metáfora do debate eleitoral em andamento no país. Ela fala de um Brasil velho, em agonia, e um Brasil novo que está nascendo. Entre o velho e o novo, forma-se a sensação de que a terra está escapando aos pés e teme-se pelo que pode vir adiante. É um típico caso de transição, no qual fazem companhia ao Brasil outros países — principalmente na América Latina —, com maior ou menor grau de dificuldades, mas com a mesma complexidade. O determinante, nessas situações, é a forma de pensar o problema.


Uma manifestação explícita dessa metáfora saiu da boca do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) em uma reunião de empresários com tucanos na casa de um notório articulador de milionários contra o ciclo Lula-Dilma, João Dória Jr., no nababesco bairro dos Jardins, na cidade de São Paulo. Invocando as torpes revistas semanais da mídia, FHC disse que a situação do Brasil é “calamitosa” e “causa repulsa e indignação”. “Estamos aqui para apelar. E eu apelo mesmo. Minhas palavras não são de desespero, mas de convicção. E também não sou ingênuo. Com fé e convicção, vamos mudar esse país”, garantiu.


FHC indagou: “Até que ponto vão abusar da nossa paciência?” A mesma pergunta fora feita por Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) quando denunciou ao Senado a conspiração armada em Roma por Lúcio Sérgio Catilina (109-62 a.C.). Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? (Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?).  A paciência, no caso do ex-presidente, é a da turma da bufunfa, como tem dito o economista Paulo Batista Nogueira Jr., representante do Brasil no Fundo Monetário Internacional (FMI). Essa turma, por sua vez, se divide em duas classes, conforme definição do ex-ministro do Desenvolvimento no governo Lula, Luiz Fernando Furlan: a dos que pagam e a dos que não pagam impostos.


Voltar a pensar


Para dar de barato, digamos que a plateia de FHC é uma fiel cumpridora de suas obrigações com o Fisco. Suponhamos que os empresários em questão quando muito se locupletam com o dinheiro público vindo da especulação financeira. Mas, para entender exatamente o que FHC quis dizer com sua catilinária, é preciso ir além do voluntarismo míope e desvendar o sentido de toda essa onda criada para simular um mar de lama engolfando o Palácio do Planalto. Quem deu a senha foi o próprio João Doria Jr.: “Todo brasileiro (sic) tem orgulho de lembrar que um dia teve no poder um presidente como Fernando Henrique Cardoso. Ainda mais diante dos desmandos, das falcatruas, das mentiras, dos equívocos de um governo que não governa, desgoverna.”


Então vamos lembrar. O cientista político José Luis Fiori há algum tempo escreveu um texto, com o título “É hora de voltar a pensar“, falando exatamente disso. “Para fazê-lo (pensar), é preciso começar por uma revisão radical dos mitos que vieram ao mundo na década de 1990 e que acabaram confundindo a cabeça de muita gente de boa vontade”, diz ele. Bons textos oxigenam as ideias e forçam a reflexão, precisamente a intenção de Fiori ao traçar perspectivas para as forças progressistas, com olhos postos na realidade da “era neoliberal”.


A seu modo e proporção, o Brasil não era um país sem rumo. Suas metas, “detalhadas e quantificadas”, foram definidas por um contrato internacional entre o governo brasileiro e o FMI. “Acordo falimentar que comprometeu o país com o cumprimento de metas fiscais e monetárias definidas e controladas trimestralmente, em troca de um empréstimo de US$ 40 bilhões, que permitiu ao governo FHC enfrentar a crise terminal do Plano Real, protelando seus efeitos mais dramáticos”, escreveu Fiori. “Erra, entretanto, quem pensa que esta tutela seja uma mera imposição externa. Ela é uma opção consciente de nossas elites que, desde o início dos anos 1990, trocaram o seu ‘desenvolvimentismo’ das décadas anteriores por uma estratégia de abertura e desregulação econômica com vistas a uma transnacionalização radical dos centros de decisão e das estruturas econômicas brasileiras”, afirma.


Dimensão histórica


Hoje, a questão é: que tipo de país o Brasil quer ser no futuro? Da pequenez do projeto neoliberal, depois de mais de oito anos de desvios claramente incompatíveis com o progresso e a soberania nacional, poucos se atrevem a esperar uma resposta satisfatória. A questão é ampla e requer algo além de homens providenciais e saídas milagrosas. Requer a hegemonia do pensamento progressista de que fala Fiori para romper com a ideia de um Brasil que só interessa a uns poucos, os oligarcas, e que vai chegando ao fim para que dele surja outro — dinâmico, empreendedor, não excludente e socialmente justo. Sem a hegemonia desse pensamento, o programa de governo do ciclo iniciado em 2002 se transforma em mais um catálogo de boas intenções. Até Cândido, Poliana e a Velhinha de Taubaté encontrariam dificuldades em acreditar que de lá saia o essencial para esse novo Brasil.


Apesar da dimensão histórica que angariou para si, contudo, o governo de Dilma Rousseff ainda tem de considerar diatribes como essas de FHC. Por que é assim? Por que a base política que serviu de apoio à “era neoliberal” continua mais ativa do que nunca, sempre pronta para erguer barricadas contra qualquer avanço. Entre eles estão aqueles que escravizam gente em suas fazendas, lotearam emissoras de rádio e TV entre si para perpetuarem suas cancerosas influências políticas e têm um ou dois milhões de dólares em seu patrimônio cuja origem não conseguem explicar.


O ponto aqui é claro: além de dar uma banana para essa gente, é preciso, como diz Fiori, pensar. De onde tirar os elementos para dar prosseguimento a esse grande projeto progressista em curso? A crise global está instalada e avança a galope — o que permite uma ampla unidade de forças contrária a ela. Não devemos temer esse desafio porque o modelo de FHC demonstrou — em não poucas ocasiões — que é incapaz de fazer a economia crescer e atacar os grandes e graves problemas sociais. Por que sua reedição teria êxitos?


Caminho quilométrico


Em uma entrevista recente, o candidato tucano Aécio Neves disse que acabou o tempo das eleições “ideológicas”, e que agora o eleitor escolhe seus governantes pelo critério da “competência administrativa”. É uma manobra evidente para evitar que os grandes temas nacionais sejam debatidos. A verdade é que o Brasil tem sua grande oportunidade de seguir construindo um Estado moderno, rompendo, de um lado, com as travas oligárquicas que o amarram e, de outro, com as utopias neoliberais que se oferecem por um caminho que, já sabemos, dá em explosões sociais e presidentes fugindo por telhados de palácios presidenciais.


Do ponto de vista social, a melhoria dos serviços básicos prestados pelo Estado e a integração dos milhões de brasileiros que se multiplicavam à margem da sociedade organizada, sem cidadania e sem poder aquisitivo, contam muito. Pode-se dizer que depois de quase quatro décadas de concentração de riqueza, o Brasil finalmente voltou a viver sob a égide de uma administração que tem o interesse coletivo como norte. Mas nossos problemas continuam enormes — alguns, talvez, sejam até maiores, em importância histórica, se comparados aos que vivíamos nos tempos de FHC.


Antes da “estabilidade”, havia as mazelas sociais como as conhecemos hoje. Mas elas sofreram uma mudança qualitativa indelével. E o peso da herança maldita do reinado de FHC é algo que castigará o Brasil ainda por um bom par de anos. Os desafios que os próximos anos reservam, portanto, precisam ser avaliados levando em conta o devido dimensionamento histórico dessa herança. Isso equivale a dizer que o Brasil deve ir a fundo nas causas do seu histórico problema social, do qual venceu apenas poucos metros no caminho quilométrico que precisa superar. Ou seja: as eleições de 2014 representam uma encruzilhada decisiva para o Brasil.

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Publicado originalmente no Portal Vermelho