Analogias entre a agressão à Iugoslávia e à Ucrânia
Repetem-se as “revoluções coloridas”, as “armas de destruição massiva”, os argumentos para demonizar adversários, o recurso ao banditismo e aos grupos neo-nazis ou fundamentalistas. Se o imperialismo, por falta de imaginação (ou por arrogância em excesso) atua repetidamente segundo uma mesma matriz, isso proporciona uma significativa vantagem estratégica. Permite antecipar as suas ações e prever contramedidas efetivas.
Peritos russos vêm analisando de perto as similaridades entre a forma como a coalizão ocidental está a gerir a crise ucraniana – que criou e que conduziu a um ponto de conflito selvagem – e as estratégias que os mesmos atores empreenderam nos anos noventa gerando as condições para uma brutal guerra civil e atiçando o conflito cujo resultado foi a destruição da ex-Iugoslávia. Abundam as razões para que essa atenção seja justificada. Desde logo, se o teu opositor, por falta de imaginação (ou por arrogância em excesso) atua repetidamente segundo uma mesma matriz, isso proporciona uma significativa vantagem estratégica. Permite, dentro de uma larga margem, antecipar as ações e prever contramedidas efetivas.
Embora a presunção dos estrategistas ocidentais facilite a tarefa de combater os seus objetivos é importante, em qualquer caso – e não obstante o caráter flagrante que as analogias possam assumir – definir cuidadosamente tanto as maiores semelhanças como as diferenças entre as situações a comparar, de modo a não cair na armadilha de combater a guerra anterior em vez da que está efetivamente em curso.
1- Fragmentação étnica e religiosa. A identificação de tensões sociais suscetíveis de ser exploradas, e sua sistemática exacerbação para que funcionem como detonadores da crise pretendida.
Isso significa o afastamento umas das outras de comunidades constituídas, empolando aquilo que as separa e desvalorizando o que possam ter em comum. Na Jugoslávia este processo teve início muito antes do eclodir da crise através da manipulação de novas identidades étnicas (muçulmana, montenegrina, macedónia) e do encorajamento das aspirações separatistas das existentes (croatas, eslovenos). A identidade ucraniana é também uma construção artificial, que se define a si própria não de forma positiva mas sobretudo como contraposição militante ao russo. Na Ucrânia, tal como na Jugoslávia, a clivagem religiosa católicos/ortodoxos é diligentemente explorada no sentido de exacerbar animosidades existentes.
2- Manufatura de incentivos materiais ilusórios para incentivar a conduta politicamente desejada.
Na ex-Jugoslávia, que no final dos anos 80 tinha um padrão de vida decente, a perspectiva de uma vida ainda mais próspera que presumivelmente resultaria da dissolução do estado socialista foi utilizada como isco para motivar tendências separatistas. Ao ocidente católico foi prometida uma acrescida prosperidade através da separação e da concretização de uma “opção civilizacional” (praticamente uma formulação idêntica à que veio a ser lançada na Ucrânia) a favor da junção aos países do vizinho bloco ocidental. Aos muçulmanos da Bósnia e do Kosovo foram prometidos benefícios resultantes do alinhamento com os países islâmicos ricos. Na Ucrânia foi a ilusão de uma rápida incorporação na União Europeia que foi invocada. A maioria do povo na Ucrânia ocidental e central que respondeu positivamente a esta falsa perspectiva era bastante desconhecedora das reais condições económicas e sociais existentes e, mais importante ainda, das tendências de evolução da UE e agiu sobre premissas sem fundamento.
3- Controle dos fluxos de informação nos países-alvo de forma a condicionar a percepção e a conduta das massas.
Na ex-Jugoslávia, a penetração do espaço mediático por interesses vinculados ao ocidente, cujo ponta de lança era George Soros teve início logo a partir do momento em que a liberalização política dos anos 80 a tornou possível. No início dos anos 90, quando o conflito vinha sendo activamente atiçado do exterior, amplos sectores dos media locais em todas as repúblicas da Jugoslávia estavam já sob controlo de proprietários ocidentais. Um processo semelhante de moldagem da esfera mediática teve lugar na Ucrânia no decurso das últimas duas décadas, com todos os maiores grupos de comunicação sob o firme controlo de oligarcas apoiados pelo ocidente. Todos propagaram uma quase idêntica e factualmente falsa narrativa acerca dos benefícios que decorreriam do alinhamento político com a NATO e a UE e do afastamento em relação à Rússia.
4- Tanto na Ucrânia como na ex-Iugoslávia um núcleo fundamental da população insistiu em permanecer fiel à sua própria narrativa.
Rejeitou radicalmente as falsas percepções que vinham sendo encorajadas como prelúdio à aceitação de uma recomposição política orquestrada pelo ocidente. Sucedeu assim com o leste russófono na Ucrânia, e com os sérvios na Iugoslávia.
A recusa destes grupos em aceitar pacificamente a perda da sua identidade cultural e da sua autonomia política conduziu ao conflito em ambos os casos. A pergunta que requer uma resposta clara é se o conflito armado (embora sendo basicamente previsível) foi também uma consequência pretendida dos processos postos em marcha. No caso da Ucrânia é bastante duvidoso que assim fosse, porque a intenção dos instigadores da mudança de regime era não a imediata fragmentação política mas claramente um inequívoco realinhamento pró-ocidental do país inteiro no bloco NATO/UE, sob o comando de uma subserviente autoridade central em Kiev. No caso da Jugoslávia é possível argumentar que fazia definitivamente parte do plano um conflito que culminasse com a derrota militar dos sérvios, mas pode ser que de início fosse prevista uma campanha mais rápida e com maior sucesso. Mas o que veio a suceder foi que os instigadores da crise jugoslava, ao darem rédea solta aos seus protegidos croatas e muçulmanos, podem ter inadvertidamente criado uma clara ameaça à própria sobrevivência dos sérvios, dispersos por toda a ex-Jugoslávia, que endureceu grandemente a sua resistência e prolongou o conflito para além daquilo que estava inicialmente previsto. Para além disso pode também ter tido uma outra consequência não desejada: o sério questionamento na Rússia da aliança (ainda por cima subalterna) de Yeltsin com o ocidente. Este questionamento culminou por altura da guerra do Kosovo resultando, como reacção à situação, na ascensão de Putin e da sua visão política.
Na Ucrânia, qualquer que possa ter sido o projecto inicial (possivelmente inclinando-se para a fragmentação cultural mas preservando a integridade política geral do país, ainda que com o mais confiável elemento ocidental subjugando o menos confiável leste do país), parece ter entrado em colapso logo que a força bruta foi empregue no processo de subjugação. Tal como analistas informados têm sublinhado, compromissos de partilha de poder entre Kiev e o leste russófono que há dois ou três meses poderiam ter sido possíveis deixaram de o ser após a destruição e o caos desencadeado pelas forças da junta golpista. Está em rápido desenvolvimento uma situação em que as regiões com uma identificação cultural russa predominante são intransigentes na sua recusa em ter seja o que for a ver com Kiev, quaisquer que fossem as formas que um eventual compromisso assumisse. Nesse sentido, está a formar-se na Ucrânia uma situação fortemente análoga ao espírito de resistência inflexível com que os sérvios bósnios e croatas actuaram. Em ambos os casos é concebível que um comportamento inicial mais subtil e flexível por parte dos intervenientes apoiados pelo ocidente relativamente às populações sérvias e russas que pretendiam submeter ao seu domínio pudesse ter impedido a radicalização da violência. E poderia até ter tido sucesso, porque em ambos os casos pelo menos os resistentes claramente não tinham qualquer intenção de recorrer à força.
5- O ocidente não tem quaisquer pruridos em utilizar os elementos mais desqualificados como instrumento para atingir os seus objetivos.
Na Bósnia, o pacto do diabo do ocidente com o Irã (reminiscência do Irã-contras) e com outros atores mais ou menos fundamentalistas a fim de reforçar as forças muçulmanas locais alinhadas com os interesses OTAN/UE e lutando pelo controle em toda a extensão do país tem sido amplamente documentado. Em certa medida, foi também tolerada a participação de elementos de extrema-direita europeus no esforço de guerra ao lado do regime direitista de Tudjman na Croácia. Um padrão semelhante pode ser observado no Médio-Oriente, com facções islamitas radicais a serem instrumentalizadas para o derrube de regimes seculares que o ocidente considera pouco amigáveis.
Na Ucrânia o pacto com o diabo foi celebrado com alguns dos mais odiosos elementos fascistas locais, literalmente relíquias colaboracionistas do período da II Guerra Mundial. A sua tarefa foi disponibilizar a tropa de choque com a qual os políticos e oligarcas apoiados pelo ocidente demoliriam os seus opositores e consolidariam o seu domínio. Tanto na situação jugoslava como na ucraniana o cálculo parece ter sido “utilizamo-los para nos vermos livres do opositor principal agora, e tratamos deles depois”. A possibilidade de que estivessem a criar Frankensteins que não seriam passíveis de fácil dissolução uma vez desempenhado o seu papel parece não ter passado pela cabeça dos seus criadores. A implantação depois da guerra do islão radical na Bósnia, onde anteriormente nunca existira, e a consolidação de uma forte corrente fascista em crescimento na Croácia constituem prova suficiente disso. No que diz respeito aos movimentos e milícias de inspiração nazi na Ucrânia, não parece existir qualquer plano claro para os colocar sob controlo uma vez superado o conflito e em que presumivelmente tenham desempenhado a sua função.
Tanto na ex-Jugoslávia como na Ucrânia os instrumentos que o ocidente amoralmente utilizou para atingir os seus limitados objectivos deixaram as sementes de uma instabilidade de longo prazo e não mostram qualquer disposição para permanecerem subservientes aos seus criadores por muito tempo. A perversa semente plantada pelo ocidente com a sua oportunista ingerência na Ucrânia transporta um fruto amargo que representa um sério desafio para a Rússia. Irá sem dúvida embaraçar a eventual integração plena da Ucrânia no quadro do conceito de “mundo russo” que a actual política russa concebe, por mais fluído que tal conceito possa ser.
6- O apoio sub-reptício aos favoritos ocidentais ao mesmo tempo que se proclama uma política de “não-ingerência” que na prática se aplica apenas aos outros.
Uma outra significativa semelhança reside em que em ambas as crises o ocidente decretou o embargo de armas e apoios logísticos às forças em confronto, mas contorna-os regularmente a favor dos seus clientes locais. Um volumoso conjunto de provas reunido após os anos noventa não deixa qualquer margem de dúvida acerca do facto de que forças muçulmanas e croatas na Jugoslávia receberam generosas quantidades de armas e de treino, e depois valioso apoio logístico também, enquanto Belgrado era regularmente criticado por qualquer apoio prestado aos seus compatriotas na Bósnia ou na Croácia.
De forma análoga, a Rússia é objecto de um processo de demonização por prestar não apenas assistência militar, mas mesmo assistência humanitária, às regiões russófonas da Ucrânia. Os patrocinadores ocidentais assumem um quase ilimitado direito a apoiar os seus clientes ao mesmo tempo que recusam a Belgrado nos anos noventa e a Moscovo agora uma prerrogativa semelhante. A sua insistência num “terreno de jogo nivelado” (uma frase frequentemente utilizada no conflito bósnio) mostra aquilo que realmente é: pura hipocrisia.
7- Uma diferença importante: Moscou tem objetivos políticos claramente definidos.
Pode argumentar-se que uma das principais razões do insucesso da resistência sérvia na Croácia, e do seu sucesso apenas parcial na Bósnia, residiu na ausência de uma concepção política clara tanto nas suas fileiras como em Belgrado, que os apoiava. É possível que a análise russa dessa experiência tenha sido importante para garantir que Moscou e os seus aliados ucranianos orientais não se vejam envolvidos num conflito sem uma clara definição dos seus objetivos e dos meios para os alcançar. É indubitável que o Presidente Putin não quer imitar Slobodan Miloševiæ, que fez um brilhante discurso na televisão, com um perspicaz e profundo entendimento das manobras dos seus opositores ocidentais, mas numa ocasião que não poderia ter sido de pior – dias antes de ser derrubado.
Parece que os acontecimentos nos Balcãs tiveram um efeito moderador na política russa em dois aspectos. Primeiro, em finais dos anos noventa a guerra do Kosovo e o bombardeamento da Iugoslávia claramente desencadearam um amplo alarme que contribuiu para a mudança de liderança que trouxe Vladimir Putin e a sua visão para um lugar de destaque. Mas os efeitos nefastos da sinuosa política que Miloševiæ empreendeu no apoio aos seus protegidos na Bósnia e Croácia ensinaram aos russos uma outra enormemente importante lição. Que é que se não se dispõe de uma ampla visão estratégica e da capacidade para conseguir a sua realização, é preferível evitar por completo estas complexas e arriscadas embrulhadas.
20/Setembro/2014
[*] Advogado, participou em julgamentos do Tribunal de Haia (2001-2008), também conhecido como Tribunal da OTAN. É co-autor de Rethinking Srebrenica, ed. Unwritten History, 2013, 368 p., ISBN: 0970919832
O original encontra-se em vineyardsaker.blogspot.pt/ e em www.odiario.info/?p=3404
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .