Ministério e Política Nacional do Esporte: para quem e para quê
Entre as conquistas do novo ciclo político inaugurado com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2002, merece destaque a constituição do Ministério do Esporte e de uma política nacional para a área. Em um momento histórico da vida nacional, quando novos segmentos políticos e sociais chegavam ao poder central da República, a temática esportiva entrava em novo patamar. Na contramão do pragmatismo economicista reinante na era neoliberal, o esporte passava a figurar, a partir daquele momento, como parte destacada da agenda de direitos sociais e democráticos cuja ampliação era reclamada pelo povo brasileiro.
O tema reemergiu nos últimos dias em meio aos debates da campanha presidencial, trazido à baila pelas palavras apressadas de Marina Silva. Ocupada apenas em desconstruir as políticas elaboradas e implementadas nos últimos anos – e desinteressada do debate sério e fundamentado sobre as ações necessárias na área esportiva –, a candidata oposicionista disparou: “É um ministério importante [o do Esporte]. Mas, infelizmente, tivemos muitas dificuldades no processo das Olimpíadas, que dão para os brasileiros motivos de preocupação sobre o andamento das obras necessárias, que já deveriam ter alcançado um ponto muito maior de realização. Nós estamos fazendo uma avaliação criteriosa para verificar como vamos fazer a redução de tantos ministérios que já foram criados”.
A declaração da candidata, que sugere explicitamente a extinção do Ministério do Esporte, passou a ser reverberada pela grande mídia como parte de sua sanha liberal-oposicionista. Alguns, como o jornalista José Cruz, da Folha de S. Paulo, dedicaram seu tempo a justificar a nefasta intenção de Marina: “O Ministério do Esporte é um órgão repassador de dinheiro e faz a alegria dos cartolas. Em termos de políticas públicas ou de projetos de esporte escolar, fracassou. […] Não saiu do Ministério uma só proposta de política esportiva, apesar de ali terem sido realizadas três Conferências Nacionais do Esporte”.
José Cruz desperdiça palavras. A criação, pela primeira vez na história do Brasil, de um ministério com foco único no desenvolvimento do esporte, e de uma política nacional para o setor, constitui-se em realização vitoriosa, que vai ao encontro das melhores práticas consagradas internacionalmente.
O consenso internacional
Em 1978 a Unesco lançava, com grande repercussão, sua Carta Internacional da Educação Física e do Esporte. Após a publicação desse importante referencial, o setor abandona o objetivo do rendimento como perspectiva única e passa ao paradigma do esporte como direito de todos. A Educação Física e o desporto começavam a ser encarados como parte constituinte da educação e da cultura, devendo contribuir para a integração social e o desenvolvimento humano. Em outras palavras, incluía-se o esporte no quadro dos direitos universais da pessoa humana, independentemente de estado físico, talento, sexo, faixa etária etc. Essa concepção iria revolucionar a prática esportiva, assinalando o surgimento do assim chamado esporte contemporâneo, que busca as formas pelas quais o direito ao esporte pode ser garantido para a população em geral (BORGES & BUONICORE, 2007, p. 21).
Nesse período o esporte passa a ser pensado, cada vez mais, na perspectiva de um direito, o que abre espaço para a diferenciação entre o esporte amador e o esporte de performance. Esse processo ocorria em escala internacional, mas ganhou impulso em nosso continente com a redemocratização dos países latino-americanos. No Brasil, um dos marcos da afirmação do esporte como direito social foi a aprovação da Constituição Federal de 1988.
Em 2005, declarado “Ano Internacional do Esporte e da Educação Física” pela ONU, um passo adiante foi dado. Os temas esportivos foram alçados à agenda de desenvolvimento dos países, sendo concebidos e apresentados como instrumentos relevantes para a implementação e o alcance das Metas de Desenvolvimento do Milênio. Dois anos antes o Brasil já mostrava sintonia com tantas e tais preocupações, por meio da criação do Ministério e, mais tarde, da Política Nacional do Esporte, que refletem em grande medida o consenso internacional.
Democratizar e universalizar o acesso ao esporte
Pautado pela preocupação em alargar a visão da atividade esportiva à luz do preceito da cidadania, o Ministério do Esporte tem na inclusão social o núcleo de suas ações. “A atual gestão se compromete em agregar força, de forma institucional, na direção da superação do quadro de injustiças, exclusão e vulnerabilidade social que caracteriza a estrutura histórica da sociedade brasileira”, diz a Política Nacional do Esporte (p. 16). Esse mesmo documento afirma ainda que “a garantia de acesso ao esporte será um poderoso instrumento de inclusão social, considerando sua importância no desenvolvimento integral do indivíduo e na formação da cidadania, favorecendo sua inserção na sociedade e ampliando sobremaneira suas possibilidades futuras” (p. 36).
Com a progressiva implementação dessas diretrizes, afirma-se um direito. Supera-se a concepção, até pouco tempo comum, do esporte como apêndice do governo ou privilégio de poucos. No lugar desse equívoco ganha cada vez mais força uma visão de futuro, ancorada em desejos profundos de democratização e no entendimento do esporte como importante instrumento de estímulo a valores como solidariedade, autoestima, respeito às regras e ao próximo, luta pelos ideais, estímulo à comunicação, tolerância, coletivismo, cooperação, disciplina, liderança, vida saudável.
Em síntese, a criação do Ministério e da Política Nacional do Esporte materializam o nexo de sentido, cada vez mais disseminado na sociedade brasileira, entre esporte e cidadania. Segundo a Medida Provisória 103/2003, que criou o Ministério do Esporte, esse órgão tem como missão principal “formular e implementar políticas públicas inclusivas e de afirmação do esporte e do lazer como direitos sociais dos cidadãos, colaborando para o desenvolvimento nacional e humano”. Com esse objetivo em vista, o Ministério envidou esforços no sentido de implementar uma política de Estado para a área, com permanência e sólidos alicerces. A Política Nacional do Esporte – aprovada como Resolução nº 5 do Conselho Nacional do Esporte, em 14/06/2005 – busca a “realização de programas que respondam às demandas sociais geradas num momento histórico de garantia e de ampliação do conjunto dos direitos” (p. 15).
Entre esses programas encontram-se o Segundo Tempo, o Esporte e Lazer na Cidade, o Pintando a Liberdade, o Bolsa-Atleta, os Jogos Escolares, Indígenas e Militares, além de outros cada vez mais imprescindíveis não apenas à elevação do Brasil no cenário esportivo mundial – processo que ganha impulso com a realização, em nosso país, da Copa 2014 e das Olimpíadas 2016 –, mas também à criação de capacidades e habilidades indispensáveis ao processo de formação e desenvolvimento humano.
Consoante o documento “Orientações para o debate dos eixos do Sistema Nacional de Esporte e Lazer” – elaborado como subsídio às discussões da II Conferência Nacional do Esporte –, o esporte brasileiro tem seu desenvolvimento dificultado em grande medida pelo enorme número de brasileiros excluídos da prática desportiva, e, portanto, de uma forma privilegiada de promoção da cidadania e do desenvolvimento humano. Como forma de superar essa realidade, a Política Nacional do Esporte tem como principal objetivo a democratização e universalização do acesso ao esporte, na perspectiva da melhoria da qualidade de vida.
Avançar ainda mais… Para onde?
É óbvio que o país ainda tem muito a avançar no que diz respeito às políticas de esporte. Em particular, é preciso dar maior escala e integrar ainda mais as ações, articulando-as com outras políticas sociais. Sabemos, por exemplo, que os espaços de concentração da juventude – com destaque para o sistema educacional – representam o lugar por excelência onde podemos encontrar a possibilidade de promover a democratização plena do acesso ao esporte.
Como assegura a Política Setorial do Esporte Educacional, a articulação entre esporte e educação é essencial para assegurar a ampliação da participação de jovens de todos os níveis de ensino em atividades e eventos esportivos, inclusive em competições nacionais e internacionais. Em um país com tantas desigualdades, a edificação de um novo projeto nacional não pode evadir-se do nexo entre esporte e educação como fator de desenvolvimento e bem-estar social. É necessário valorizar de fato – e não apenas na retórica – o esporte escolar e universitário, a exemplo do que fazem as nações de destaque na área.
Em suma, a fim de que se alcance a plena democratização e universalização das práticas esportivas muito ainda há que ser feito. Mas esse “muito” certamente não inclui o fim do Ministério do Esporte. O rumo é precisamente o oposto: fortalecê-lo, dotá-lo de mais e melhores recursos técnicos, financeiros e humanos. Projetá-lo politicamente. Alçá-lo a novo patamar. O Ministério do Esporte tem uma importância que transcende sua própria existência. É a partir dele que se torna possível coordenar e unificar minimamente as políticas de esporte no país inteiro. A referência do Ministério estimula a construção de secretarias e conselhos estaduais, assim como a destinação de recursos específicos para a área nos estados e municípios. Por meio dele se estabelece um pacto federativo que favorece o desenvolvimento das políticas esportivas. Substituir o Ministério por órgãos de menor expressão política – como uma agência do esporte ou, pior, uma secretaria vinculada a outro ministério – é uma “economia” típica da visão de mundo contabilista própria do paradigma neoliberal, com seus cálculos de “custos” que desconsideram benefícios. Uma “economia” que não sai em conta, se de fato economia é.
Manifestações de junho
As manifestações de junho de 2013 colocaram em pauta temas relevantes para o dia a dia da juventude. Muitos deles, como esporte e lazer, embora tenham sido historicamente pautados como assuntos de importância específica e de menor impacto, tornaram-se itens importantes na perspectiva de uma ampla reforma urbana. Afinal, não haverá direito pleno à cidade sem serviços públicos de qualidade, o que inclui, naturalmente, não apenas transporte, segurança e saneamento, mas também mais e melhores espaços públicos destinados ao esporte e ao lazer.
Isso posto, causa espécie que a candidatura de Marina Silva, que busca desesperadamente identificar-se com os anseios das manifestações de junho, demonstre tamanha insensibilidade para com as causas do esporte e do lazer. Com isso, além de revelar mais um de seus inúmeros contrassensos, Marina deixa exalar de si um forte odor de pragmatismo econômico e político. Pragmatismo que, diga-se de passagem, também não se fez estranho aos ventos de junho.
Isso ocorreu principalmente quando, em sua tentativa de disputar politicamente o sentido e os destinos das manifestações, a grande mídia tentou inculcar nos manifestantes falsas antinomias, como aquela entre investimentos no esporte versus investimentos em saúde e educação. Raciocínio tacanho, que desconsidera as melhores práticas internacionais. Países como Inglaterra, França e Alemanha não têm saúde e educação de qualidade porque investiram exclusivamente nessas áreas, mas porque, ao contrário disso, desenvolveram visão sistêmica e integrada das políticas públicas. Não devemos escolher entre investir em infraestrutura esportiva ou aumentar salários de professores. É preciso investir simultaneamente em educação, em saúde e, sim, no esporte. Em primeiro lugar, porque essas áreas se reforçam e potencializam mutuamente. E, em segundo lugar, porque só em mentes de pequena estatura áreas como esporte e cultura podem ser tidas como “menores”.
Com sua proposta de “extinção do Ministério do Esporte”, Marina Silva parece pouco afinada com as demandas por ampla e profunda reforma urbana – uma das mais importantes bandeiras agitadas nas manifestações de junho. O discurso da candidata surge mais de acordo com as tentativas, maquinadas pela grande mídia em aliança com setores conservadores, de sabotar os legítimos anseios daquelas manifestações, seja por meio da criação de oposições artificiais ou de falsas radicalizações, seja através da indicação de saídas enganosas para problemas reais.
Por tudo, é cada vez mais necessário enriquecer a percepção de temas que, quando chegam a ser pautados, na maioria das vezes o são de maneira superficial, remetendo sempre sua abordagem ao senso comum através de afirmações aparentemente justas, mas na verdade, quando vistas de perto, disparatadas. Em nossa sociedade, os temas referentes ao esporte e ao lazer ainda são, infelizmente, subestimados ou abordados de maneira insuficiente. Fato grave em uma sociedade que persegue, na contramão do reducionismo neoliberal, profundos e ousados avanços civilizatórios.
* Fábio Palácio é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação (USP). Presidiu o Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ).
Textos consultados:
1º CONFERÊNCIA NACIONAL DO ESPORTE – Esporte, lazer e desenvolvimento humano. Documento Final. Brasília, junho/2004. 65 p.
2º CONFERÊNCIA NACIONAL DO ESPORTE. Documento Final. Brasília: mimeografafo, julho/2006. P.s 3-24.
ABRAMO, Helena Wendel; BRANCO, Pedro Paulo Martoni (orgs.). Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/Instituto Cidadania, 2005. 448 pp.
AZEVEDO, Fábio Palácio de. Juventude, cultura e políticas públicas: intervenções apresentadas no seminário teórico-político do Centro de Estudos e Memória da Juventude. São Paulo: Anita Garibaldi/CEMJ, 2005. 187 p.
BORGES, Elisa de Campos & BUONICORE, Augusto César. Memória do esporte educacional brasileiro – Breve história dos jogos universitários e escolares. São Paulo: Centro de Estudos e Memória da Juventude, 2007. 136 pp.
CENTRO DE ESTUDOS E MEMÓRIA DA JUVENTUDE; INSTITUTO PENSARTE; MINISTÉRIO DO ESPORTE. Política de esporte para a juventude brasileira – subsídios e proposta para debate. São Paulo: CEMJ, 2007. 70 p.
DAMIANI, Cássia e ESCOBAR, Micheli. “Construindo a relação esporte-escola.” Princípios nº 84. São Paulo: Anita Garibaldi, abr/mai 2006. P.s 72-77.
MINISTÉRIO DO ESPORTE. Política Nacional do Esporte – Resolução Nº 5 do Conselho Nacional do Esporte. Brasília, 14/06/2005. 45 p.
MINISTÉRIO DO ESPORTE. Política Setorial do Esporte Educacional. Brasília: mimeografado, 2006. 6 p.
NOVAES, Regina. Política Nacional de Juventude: diretrizes e perspectivas. Brasília: Conselho Nacional de Juventude, 2006.
TUBINO, Manoel José Gomes. Pesquisa e análise crítica sobre a relação do nexo esporte-escola com os Jogos Escolares. Estudo apresentado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD / Ministério do Esporte sob o termo de referência nº 121631, contrato nº 2006/001493. Mimeo., 2006.
UNESCO. Carta Internacional da Educação Física e do Esporte. Paris, 21 de novembro de 1978. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0021/002164/216489por.pdf