O debate eleitoral e a tática do medo
“Na TV, Dilma usa dados incorretos e é contestada sobre economia.” “A evidência de um fracasso (sobre Dilma).” “Brasil pode sofrer restrição de energia em 2015, afirma o presidente da Light.” Manchetes como essas (chamada de capa da Folha de S. Paulo, editorial d’O Estado de S. Paulo e destaque d’O Globo, respectivamente, todos de segunda-feira, 22) parecem que anunciam o fim do mundo, não? Calma, não é bem assim. Ainda não será desta vez que as profecias de Nostradamus irão se materializar. Não se pode esquecer que a mídia está em campanha eleitoral 24 horas por dia contra Dilma Rousseff (sem que a Justiça Eleitoral tome alguma medida) e que basta o país pôr os pés em uma fase de valorização dos direitos humanos fundamentais para a elite anunciar que estamos nos umbrais do apocalipse.
Os fatos não são por acaso; há sempre uma causa em sua ocorrência, e é preciso descobri-la. Em um recente debate no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, Luiz Carlos Mendonça de Barros, tucano flagrado em conversas condenatórias durante a privatização do sistema Telebrás, disse que o país não foi “descoberto em 2003” — uma alusão ao marco que pôs fim à “era neoliberal”. Ao defender medidas desastrosas tomadas quando ele participava do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), como as “reformas” que tiraram direitos do povo, ele disse que as privatizações não podem ser decididas por critérios “ideológicos” — é uma questão “objetiva”.
Os neoliberais têm esse péssimo hábito de arbitrariamente procurar fundamentos doutrinários para suas teses. Para eles, como suas opiniões são acompanhadas da verdade absoluta, não parece haver mais nada que a sociedade, Deus, o Estado, você ou eu possamos ou devamos fazer. É uma questão “objetiva” e acabou a história. Fora das suas “verdades”, o mundo não tem salvação. “Quando não há uma estrutura do poder central organizando a sociedade, Deus aparece como o centralizador. Isso está evidente no Oriente Médio. O avanço evangélico (no Brasil) é um sintoma da crise de Estado”, garantiu o filósofo José Arthur Giannotti, referência teórica dos tucanos, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que serviu de base para o editorial dizendo que a presidenta Dilma é um “fracasso” anunciado.
Ética e picaretagem
Afirmações como essa são claramente peças eleitoreiras, não resta dúvida. Eles sabem que não podem enganar a todos o tempo todo e por isso fazem do terrorismo político e do golpismo as suas principais armas de combate. Já fizeram isso com Luis Inácio Lula da Silva, quando a tática inicial de “sangrar” o então presidente falhou. Mas mantiveram o impeachment sempre à vista — como uma bomba atômica para assolar e não para matar, segundo FHC — e regularam o fogo do denuncismo de acordo com suas conveniências. O na época presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), deputado Ricardo Berzoini, resumiu bem o motivo pelo qual a oposição não arriscou suas fichas no impeachment: “Medo das urnas; esse é o principal motivo.”
A direita sabe que essa contenda reflete, no fundo, a luta entre a ética e a picaretagem, o debate político e o proselitismo eleitoreiro. E sabe também que a evolução desse combate levará o Brasil para frente ou para trás. O que ninguém sabe ao certo é o que ela ainda será capaz de fazer para tentar desgastar o governo antes das eleições. Todos sabem que os prosélitos de porta de funerária daqui a pouco, por um motivo qualquer, levantarão mais tsunamis políticos. Esse script está elaborado há muito tempo. Quem acompanha o mundo político, mesmo à distância, vê diuturnamente que nesse espetáculo circense os atores têm papéis bem definidos.
Democracia robusta
É um ato em que os líderes da oposição nem precisam aparecer — os ataques são feitos por prelados da mídia, economistas de direita e adivinhos profissionais que vendem seus serviços como “analistas”. O objetivo — ou o mais adequado seria dizer desejo? — é vender a falsa imagem de um governo imobilizado que, caso continue nas mãos da presidenta Dilma, certamente logo dará mais alguns passos em direção ao penhasco. Ou seja: o Brasil está com um problema sério em sua democracia. Ele se chama ”comportamento da mídia”; já existem fatos concretos para medir o tamanho deste problema — o que leva a duas certezas. A primeira é que ele não vai sumir do mapa político brasileiro tão cedo; a segunda é que dessa semente só vai germinar coisa ruim. Já vemos uma crescente perturbação do ambiente democrático do país.
Formalmente, temos uma democracia robusta. A questão é que o conceito de democracia baseia-se, em poucas palavras, na aceitação das regras do jogo tidas como razoáveis para todos. Em um país no qual muitos cidadãos acham que os ganhos econômicos não estão sendo compensadores, essas regras serão constantemente questionadas pelos que não aceitam a entrada de mais pessoas no que era até bem pouco tempo um seleto clube de consumidores. Sempre haverá, por conseguinte, uma crise latente no sistema. De um lado, temos os trabalhadores habituados à busca do ganho na proporção do trabalho realizado e da produtividade. De outro, há uma elite que entende o Brasil como extensão de seu umbigo.
Modelo desenvolvimentista
Esse pano de fundo da luta de classes no Brasil começou a ser tecido quando Getúlio Vargas tomou o poder por meio da Revolução de 1930. Até 1980 — apesar dos interregnos dos governos do general Eurico Gaspar Dutra, eleito em 1945, e dos generais do regime militar de 1964 —, o Brasil, mesmo com a exclusão social como norma, destacou-se pelo extraordinário dinamismo da sua economia, passando da categoria de exportador periférico de produtos primários à de país industrial médio. A partir de 1981, principalmente em decorrência das políticas implantadas pelo regime militar, perdemos o fôlego. Por que o Brasil parou nos anos 1980 e 1990 é questão que merece ser analisada em primeiro lugar politicamente.
Entre 1930 e 1964 o Brasil experimentou um modelo de desenvolvimento que envolvia forte intervenção do Estado na economia. Na maior parte desse período, mesmo quando as finanças do país estiveram sob o comando de liberais, os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck não abriram mão de seus princípios desenvolvimentistas — aqueles dois chefes de governo tinham sensibilidade política suficiente para deter ou reduzir a volúpia das ideias de Eugênio Gudin, Octávio Bulhões e Roberto Campos, responsáveis por tantos desacertos em nossa história. Na ditadura militar, eles deram as primeiras picaretadas na “era Vargas”, tentaram mudar o rumo da economia, mas o êxito das suas propostas só chegaria efetivamente quando FHC assumiu o poder em 1995.
A voz do dono
Na época, o capitalismo na América Latina já estava em uma nova “era”. Nela, dois ciclos políticos se cumpriram. O primeiro foi o lançamento do novo projeto hegemônico, marcado pela condução anglo-saxã de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, e liderado por Augusto Pinochet (Chile), Calos Menem (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Alberto Fujimori (Peru), Andrés Perez (Venezuela), Gonzalo Sánchez de Lozada (Bolívia) e Fernando Collor de Mello (Brasil). Perseguidos pela lei — alguns ainda estão foragidos —, eles foram substituídos, num segundo ciclo também marcado pela condução anglo-saxã (desta vez com Bill Clinton, George W. Bush e Tony Blair), por presidentes mais precavidos — chegaram a mudar a lei, com fez FHC, para criar proteções em caso de serem levados aos tribunais —, mas igualmente nefastos.
No Brasil, a interrupção dessa escalada, com a eleição de Lula em 2002, sempre foi vista pelas forças conservadoras como um processo que precisa ser estancado por qualquer meio. As primeiras manchetes do que viria a ser a sórdida onda de ataques ao governo, por exemplo, representou uma espécie de ordem unida para o avanço da direita. Ou seja: soou a voz do dono. Desde então, o que se viu foi a repetição da sordidez outrora usada contra Getúlio Vargas — que o levou ao suicídio. Como naqueles idos, nunca se vira tanta ignomínia, tamanha crueldade no aviltamento, tão grande sanha para ferir um homem a quem seus acusadores, sem autoridade para sê-los, só podiam imputar o “crime” de pretender encurtar as distâncias sociais existentes no país.
Mundo das realidades
Desde a sanha contra Vargas, nunca se vira tanto ódio, tanta torpeza, tantos insultos. O que se passou com Lula, desde então, foi ignóbil. Dia a dia, ultrajaram-no sem limites. Nem a sua família lhe pouparam. A mídia cometeu todos os desmandos, ultrapassou todos os limites, rompeu todas as convenções. Nada ficou de pé. E a cada um dos desatinos parece que a única preocupação era superar os anteriores. Seus “analistas” tinham o único objetivo de criar um coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas. O objetivo confesso era fazer Lula parecer uma criança órfã, desamparada de pai e mãe. Para tanto, se aproveitaram de suas próprias criações — a corrupção eleitoral — para vender a falsa ideia de que o país estava em mãos de inconsequentes.
O recrudescimento do tom ameaçador da oposição no atual processo sucessório tem o mesmo pano de fundo. Só que agora o truque da “corrupção” está desgastado. Muitas vezes a mídia, com sua pretensão ditatorial de ser “os olhos da nação”, foi obrigada a dobrar a língua porque, no quesito combate à corrupção, os governos de Lula e Dilma inauguraram uma nova fase da vida pública brasileira, atacando o problema de frente. No mundo das realidades, diferente do que prega a mídia, à exceção de funcionários e dirigentes políticos corruptos, todos os demais brasileiros só podem aplaudir a iniciativa. Ninguém mais do que o governo hoje tem condições de dizer que ajusta suas ações pela régua da justiça. Para a direita, portanto, o que resta é a proverbial ladainha que no fundo é uma pregação contra o progresso social.