Ameaças tucanas aos trabalhadores
As leis trabalhistas brasileiras são a síntese do embate histórico entre capital e trabalho. Até os anos 1940, os trabalhadores empregaram lutas heroicas e, aos trancos e barrancos, foram arrancando conquistas aqui e ali. Pode-se afirmar que as refregas das três primeiras décadas daquele século inculcaram a noção inicial de força nos trabalhadores brasileiros e representaram verdadeiras aulas de organização em sindicatos e federações. Quando o governo do presidente Getúlio Vargas instituiu a CLT, no dia 1º de maio de 1943, ele reuniu em um sistema único todas as leis trabalhistas existentes, grande parte dele nunca aceita pelo capital.
Eram tempos de crise aguda do capitalismo, com o New Deal do presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt fazendo o Estado puxar a recuperação da economia, a revolução socialista na União Soviética avançando e o keynesianismo despontando como teoria que prometia salvar o sistema. A economia brasileira, livre das amarras do poder oligárquico da República Velha, crescia e se desenvolvia, o que impulsionava as lutas sindicais. Desde então, os direitos conquistados sempre estiveram na alça de mira da direita. No capítulo mais recente dessa história, o alvo tem sido, além da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), os itens sociais da Constituição de 1988.
Menção especial
A ideia de criar as condições para a implosão dessa legislação começou a ser formada logo após o encerramento dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, quando os principais executivos das empresas multinacionais instaladas no Brasil criaram um grupo permanente para organizar o lobby que atuaria na fracassada “revisão constitucional” de 1993. Em 1994, o presidente FHC foi buscar Paulo de Tarso Almeida Paiva, que atuava como secretário de Planejamento do governo do Estado de Minas Gerais, para ocupar o Ministério do Trabalho com a função definida de comandar o ataque às conquistas trabalhistas.
Quando FHC apresentou os nomes dos que comporiam o seu ministério, fez uma menção especial a Paiva. “Escolhi alguém capaz de promover uma reviravolta nas antiquadas relações de trabalho no país”, registrou. No dia 1º de maio de 1995, logo após a posse do governo, o ministro do Trabalho provocou uma tempestade ao defender, na sede da central Força Sindical, na cidade de São Paulo, a retirada de direitos da CLT e da Constituição para se tornarem “disponíveis para negociação”. Até o então presidente da Força Sindical, Luiz Antônio Medeiros, aliado de FHC, reagiu. “O ministro foi, no mínimo, inoportuno”, comentou.
Turma dourada de FHC
Em nome de um suposto “custo Brasil” elevado, o ministro passou a defender a troca de direitos trabalhistas por postos de trabalho; pela lógica de Paiva, enquanto os trabalhadores perdiam conquistas históricas as empresas fariam o sacrifício de manter os empregos. A pressão tucana usava a seu favor as fileiras de desempregados e subempregados. Naquelas condições, um lugar na economia formal era visto pelo governo como um favor concedido pelo capital ao trabalho. Essa retórica permeou a “era FHC” e esteve nos planos de todos os ministros do Trabalho do período neoliberal, de Paulo Paiva a Francisco Dornelles.
Paiva ocupava um posto considerado chave para a missão dos economistas neoliberais que mandaram e desmandaram no país ao longo da “era FHC”. Eles formavam um grupo integrado por figuras como Pérsio Arida, André Lara Rezende, Elena Landau, Edmar Bacha, Eduardo Modiano, Armínio Fraga, Gustavo Franco e Edward Amadeo, liderado pelo então poderoso ministro da Fazenda, Pedro Malan. Era a ”turma dourada” do Departamento de Economia da PUC do Rio de Janeiro do final da década de 1970 e início dos anos 1980, que ficou marcada por comandar aquele processo pelo qual os interessados em comprar empresas do Estado iam buscar dinheiro quase de graça no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Atualmente são banqueiros ou renomados “consultores” do mercado financeiro, alguns assessorando o candidato tucano Aécio Neves.
Paiva assumiu o Ministério do Trabalho dizendo que a legislação trabalhista brasileira era “inflexível e caduca”. E que as “reformas” seriam necessárias à consolidação de uma “economia de mercado com altas doses de investimentos e de geração de empregos”. “A experiência mundial produziu uma ordem razoavelmente depurada de radicalismos ideológicos neste fim de século. Seus alicerces são sistemas políticos democráticos, economias de mercado em processo de globalização, ação social descentralizada por parte de governos nacionais e a consolidação de moedas fortes”, defendeu.
Nova ordem neoliberal
Para ele, a “nova ordem mundial” que emergiu das cinzas da Guerra Fria tornara obsoleta, da noite para o dia, a legislação trabalhista. “Os governos nacionais que compreendem o fenômeno implementam políticas compatíveis com essa nova ordem em formação. Os que não compreendem — quer por preconceito ideológico (Cuba de Fidel Castro), quer por motivos religiosos (países islâmicos), quer por ignorância (países africanos) — cavam um fosso no qual aprisionam populações inteiras, mantidas à margem do progresso acelerado que caracteriza a nova ordem”, pregou.
Quando o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista — filiado à Central Única dos Trabalhadores (CUT) — fechou um acordo com a Volkswagen e o sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo — filiado à Força Sindical — com o Sindipeças, em 1996, reduzindo direitos dos trabalhadores, Paiva delirou. ”Essas negociações, feitas sem a interferência do Estado, foram o fato mais importante desde a instituição da legislação trabalhista nos anos 1930”, comemorou o ministro. “Agora vamos arejar o trabalhismo no país”, afirmou. Segundo Paiva, os sindicatos “viraram de cabeça para baixo a agenda de reivindicações comumente negociada entre empregados e patrões”.
O acordo dos metalúrgicos de São Paulo teve seus efeitos suspensos, por decisão da Justiça do Trabalho paulista, sob a alegação de que ele não atendia às exigências legais estabelecidas na CLT. Mas FHC entrou em campo para tentar revogar a sentença. ”O acordo é um avanço enorme, sobretudo porque a iniciativa partiu dos trabalhadores. Determinamos ao ministro Paulo Paiva que estude, junto com juristas, uma fórmula que torne legal esse tipo de acordo sem exigir mudanças na Constituição”, revelou.
Predominância da esquerda
Contudo, os trabalhadores conseguiram, à custa de um bocado de suor e sangue, impedir a implosão pretendida pelos neoliberais. Com altos e baixos, as centrais sindicais compreenderam que o projeto da direita tem uma receita bem conhecida e invariável. Para o capital, a manutenção do emprego deve ser o único estímulo a ser concedido. Ou seja: sem uma atuação sindical combativa — inclusive na formulação de ideias —, o patronato fica de mãos livres para fazer da hierarquia de classes um feitor. Para manter a acumulação, a migração social fica proscrita, não importa o talento que se tem, nem o esforço que se faz. Quem nasce em uma determinada posição social, morre ali. E, na base da pirâmide, isso costuma acontecer cedo.
Portanto, se quisermos compreender o alcance da disputa que se trava hoje em torno dessa questão precisamos restabelecer o fio condutor da dicotomia entre direita e esquerda. No Brasil, durante o século XX, esses conceitos ficaram claros. As posições extremadas da direita obrigaram a esquerda a lutar muito para conquistar pouco. As manifestações populares, na maioria das vezes, ocorreram para defender direitos que têm a abolição prevista pela cartilha da direita. Até 2002, nunca tivemos por aqui uma efetiva predominância da esquerda no poder. A experiência do ciclo Lula-Dilma demonstrou quão importante ela é para os trabalhadores.