A campanha que levou à reeleição da presidenta Dilma Rousseff se desenvolveu em dois campos: o da política propriamente dita — o debate partidário — e o do terreno marrom da mídia. O primeiro é legítimo e, com todas as restrições necessárias, democrático. O segundo é obsceno e não pode ser debitado ao acaso. Visto por um amador, esse papel da mídia é aceitável; mas um olhar com lentes argutas revela o quanto esse terreno tem de matreirisse. O poderio totalitário da mídia chega a influenciar, abertamente, poderes da República, como manifestaram, hoje (26), representantes da Justiça Eleitoral.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Dias Toffoli, disse, logo após deixar a cabine de votação, que a “imprensa” teve um papel importante nas eleições e ajudou a Justiça Eleitoral. Já o ministro-corregedor geral do TSE, João Otávio de Noronha, afirmou que onde havia “preocupações da mídia” com as urnas biométricas as providências haviam sido devidamente tomadas (as preocupações não deveriam ser da Justiça Eleitoral e dos eleitores?).

Período ditadura-neoliberalismo

Nesse processo eleitoral, o que estava em questão, no fundo, era a luta do passado com o contemporâneo e o futuro, a negação do progresso originada no golpe militar de 1964 contra a nova clareira aberta com a eleição de Luis Inácio Lula da Silva em 2002. Como observou Miguel Arraes — ex-governandor do Estado de Pernambuco e ex-preidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) —, os governos neoliberais de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso (FHC) completaram a obra da ditadura militar. A reeleição da presidenta, portanto, significa um passo gigantesco para a superação daquela herança maldita, um novo ato para o próximo passo do progresso. Como dizia Nelson Werneck Sodré, quando o processo histórico dá um passo atrás, necessita, depois, dar pelo menos dois adiante.

A mídia, umbilicalmente ligada ao período ditadura-neoliberalismo, é o maior ente político da direita nessa disputa. No ciclo Lula-Dilma, não foram poucas as vezes que os grupos midiáticos anunciaram crises apocalípticas. Velhos coveiros da democracia, eles se especializaram em criar factoides para projetá-los em manchetes estrepitosas. No entanto, a maioria das acusações, convenientemente, já foi sepultada em cova rasa — sem nenhuma investigação a mais, sem nenhuma satisfação ao público, sem nenhuma retratação. Simplesmente, a história sumiu.

Política de rancor

Desde o princípio, essas denúncias contra Lula e Dilma — sustentadas em fontes que se revelariam frágeis como a convicção de um cínico — esbarraram em uma questão de lógica básica. As suposições só podem ser dadas como notícias definitivas quando elas forem fatos. Do contrário, são boatos e servem unicamente a interesses politiqueiros. Ao interferir na soberania do voto, a mídia ignorou o tempo todo o fato elementar de que seriam os eleitores brasileiros, e ninguém mais, que dariam ou negariam mais quatro anos para a presidenta Dilma. Para esses meios de comunicação, o que importava, unicamente, era promover seu candidato, marqueteá-lo e vender suas diatribes.

O resultado foi a construção de uma política do rancor. O atual governo foi apresentado como o pior que já surgiu na história depois de Calígula. Dilma foi comparado a Hitler, sua campanha descrita como oportunista, seu governo classificado como mais nocivo que a ditadura militar do AI-5 — e por aí afora, numa sucessão de disparates que seria cômica se não fosse reveladora da intolerância e do fanatismo que esse tipo de noticiário colocou no coração da política brasileira. Muitas vezes, a opinião publicada prevaleceu sobre a opinião pública. A mídia entrou na disputa como camisa-de-força neoliberal. Via chantagem política, ela tentou cassar o direito do eleitor de decidir soberanamente.

Devoto daquilo que o cineasta Billy Wilder chamou de “Big Carnival” (Grande Carnaval) — filme que no Brasil recebeu o nome de “A Montanha dos Sete Abutres” e que retrata o caso de um repórter especialista na arte da trapaça —, esse tipo nefasto de noticiário atingiu o auge das previsões tétricas. A mídia anunciou o tempo toda uma iminente catástrofe econômica, lançou mão de todo tipo de invectivas sobre “corrupção” e culpou o governo por tudo. Ela deu guarida a todos os que, munido de verdadeiras fanfarronadas, tinham algo a dizer contra Dilma.

Pregação monolítica

Esse comportamento não é, absolutamente, irrelevante, porque inclui a mentira e não deve ser subestimado. Trata-se de um noticiário que cumpre papel bem definido no jogo político que se estabeleceu no país. Ele serve aos velhos coronéis que usam os meios de comunicação como arma principal na luta política. São os sucessores dos poderosos senhores de engenho ou do café, que controlavam tudo, do crédito na venda aos votos colocados na urna a cada eleição. Esse Brasil, no entanto, foi reduzido, ficou geograficamente menor.

Essa característica brasileira parece não existir para aqueles setores que se dedicam a criar e vender falsas imagens de ordem, progresso e moralidade. A pregação monolítica desses extratos sociais representandos pela mídia pretende, à força da repetição, condicionar atitudes, formar hábitos e conter os anseios populares em limites por eles estabelecidos. Uma complexa engrenagem publicitária se encarrega de fazer campanhas dessa natureza, mostrando um país com ares de gente rica, que compra mais carros e mais eletrodomésticos, que viaja mais, que festeja mais, graças a suas doutrinas e aos seus mandamentos.

Comunistas e os filo-comunistas

Os métodos desses arautos da mentira, que vivem de jogadas financeiras e de notórias negociatas, nada ficam a dever ao nazi-fascismo. Tenho sempre presente na memória esse fato porque as fórmulas da direita invariavelmente recorrem a tais práticas. Para documentar-me, procuro estudar o que foi aquela experiência, tão bem retratada em obras como Diário — últimas anotações, 1945, de Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Adolf Hitler; Ascensão e queda do Terceiro Reich, de William Shirer; e Por Dentro do Terceiro Reich, de Albert Speer. Nelas é fácil verificar, em inúmeras passagens, como se produzem ondas de mentiras ou de meias-verdades.

Hitler e Goebbels puseram a culpa dos seus atos de loucura nos “judeus internacionais” e nos “comunistas”. Os porta-vozes do conservadorismo brasileiro repetem monotonamente que os comunistas e os filo-comunistas são os culpados por não termos um país sustentado em bases morais ditadas por eles. Trata-se, sabemos muito bem, de espetacular hipocrisia. O que eles não toleram mesmo é a luta por uma vida melhor, mais justa e mais digna para o povo. Isso fica evidente nos ataques à vida política brasileira. Ocorre que não se conhece outra forma para fazer o país avançar sem a ampliação da democracia, com partidos organizados e representativos, com vida regular das instituições e com amplo direito à informação.

O sistema partidário brasileiro, desde a política regional das oligarquias, tem sido caracterizado por organizações político-eleitorais de representação, predominantemente, das classes dominantes. Em poucos interregnos sobressaíram, como forças dominantes, partidos de raízes populares. As arenas decisórias sempre ofereceram alternativas que não ameaçavam o status quo. Nas poucas ocasiões em que as forças progressistas se apresentaram com condições reais de assumir as rédeas do processo histórico brasileiro, essas representações dominantes reagiram com violência. Foi assim em 1937, com o golpe do Estado Novo após a insurreição de 1935; foi assim na década de 1940 com a densidade eleitoral do Partido Comunista do Brasil (então PCB); foi assim com a efervescência das massas no início da década de 1960; está sendo assim agora.

Atitude de Juscelino Kubitschek

Essa condensação tem como fio condutor, que perpassa e une essas etapas golpistas, o que a etimologia define como mass media, “meios (de comunicação) de massas”, instrumento mediador, elemento intermédio. Ou por outra: aquilo que medeia uma ideologia. No Brasil, essa ideologia, que já foi chamada de “pensamento único”, expressa o propósito político e os usos e costumes dos conservadores — a elite brasileira.

Conferir credibilidade ao seu projeto equivale a fundar, hoje, um partido a favor do colonialismo. A ideologia conservadora guerreia com o Brasil em transformação pelo menos desde o início da década de 1940 do século XX, quando as forças populares começaram a deixar de ser marginais para tornarem-se capazes de influir no grande jogo político do país. Um exemplo disso foi a atitude de Juscelino Kubitschek que, por conta do sentimento patriótico entre o povo desenvolvido pelos setores progressistas da sociedade, em sua campanha eleitoral para a Presidência da República foi forçado a reformular a sua proposta de governo sobre o petróleo, conforme ele mesmo disse.

Por não expressar os anseios do povo, as organizações partidárias da ideologia conservadora sempre foram efêmeras, no mais das vezes formadas para disputar eleições. O que tem dado sustentação ao seu programa de governo, desde tempos remotos, é exatamente a mídia. Em torno dela se organizam movimentos que, por não ter nada a oferecer ao povo em termos de futuro, apelam para a hipocrisia, para as campanhas difamatórias, para os falsos moralismos. Numa palavra: para o golpismo. Nessa trajetória golpista, há uma data determinada para se ter uma referência da mídia que existe hoje no Brasil — 1º de abril de 1964, quando os conservadores consolidaram o golpe que tentavam há muito tempo.

História da imprensa no Brasil

Os golpistas promoveram substanciais reformas legislativas com a outorga dos Atos Institucionais (AIs) que submeteram a mídia ao completo domínio da ideologia conservadora. O AI-2, de 27 de outubro de 1965, dizia que não seria “tolerada propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça e de classes”. Para o regime, “subversão”, conceito não definido na legislação, era tudo aquilo que as forças progressistas defendiam. A Constituição de 1967 consolidou todos os atos discricionários anteriormente preparados. O AI-5, de 13 de dezembro de 1968, reforçou ainda mais o controle do regime sobre a liberdade de expressão.

A mídia tratou de se adequar rapidamente ao novo sistema. Nelson Werneck Sodré, em sua obra História da imprensa no Brasil, publicada em 1966, insinua — possivelmente para fugir da censura e da repressão — que o jornalismo conservador se integrou facilmente às novas regras. “O desenvolvimento da imprensa no Brasil foi condicionado, como não podia deixar de ser, ao desenvolvimento do país. Há, entretanto, algo de universal, que pode aparecer mesmo em áreas diferentes daquelas em que surgem por força de condições originais: técnicas de imprensa, por exemplo, no que diz respeito à forma de divulgar, ligadas à apresentação da notícia”, escreveu.

Segundo ele, o jornalismo americano criou o lead, cujos princípios se fundaram na regra dos cinco W e um H; qualquer foca americano sabe que a notícia deve conter, obrigatoriamente, os seguintes elementos: Who, que; When, quando; Where, onde; Why, por quê; e How, como. “Qualquer jornalista sabe, por outro lado, estabelecer a distinção entre o que é a notícia e o que não interessa, dentro daquela malícia de Charles Dana que, para ensinar a alguém essa diferença elementar, contou: ‘Se um homem vai andando pela rua e um cão o morde, isso não é notícia, a não ser que esse homem tenha projeção política, social, financeira, notoriedade por qualquer motivo; mas se um homem morde um cão, isso é notícia’”, afirmou.

Orientação empresarial

Sempre se referindo ao jornalismo americano, Nelson Werneck Sodré escreveu que o “foca” (jornalista principiante), utilizando aplicadamente a técnica do lead, “transforma qualquer sinal de um problema social constante em fatos isolados que se repetem diariamente e cujas raízes reais ficam apagadas sob os detalhes específicos de cada história”. É o que se vê na mídia, um veículo repetindo o outro, todos divulgando as mesmas coisas, com a mesma conotação. A criminalidade, os efeitos da pobreza, a corrupção, os problemas ambientais e o que mais for de relevância para a sociedade se perdem entre doses diárias maciças de propaganda ideológica conservadora.

A informação fragmentada, sem mostrar a relação de um acontecimento e sua causa, na verdade é uma técnica de encobrir os interesses e as relações econômicas dos grupos monopolistas que controlam a mídia na estrutura da sociedade de classes. O golpe de 1964 moldou essa configuração de maneira mais sólida, mas ela vinha sendo ensaiada desde quando o movimento nacionalista no Brasil começou a ganhar projeção com o objetivo de combatê-lo.

Na ditadura militar, além da conhecida tramoia envolvendo a Editora Abril e a Rede Globo, outras negociatas favoreceram os grupos que hoje dominam a mídia — como O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, que também deram amplo respaldo ao regime de 1964 e foram devidamente recompensados pelos golpistas. O rompimento de Júlio de Mesquita Filho, do grupo O Estado de S. Paulo, com a ditadura, por exemplo, começou quando Castelo Branco não contemplou todos os seus interesses na formação do ministério. Quem conta a história é ninguém menos do que Armando Falcão, homem das entranhas do regime, no livro Tudo a declarar. O grupo de Júlio Mesquita Filho continuou apoiando o regime, mas a relação com o governo começou a se deteriorar, explica Armando Falcão.

Opinião desinformada

No dia 1º de abril de 1964, O Estado de S. Paulo saudou o golpe com um editorial intitulado “São Paulo repete 32” — uma alusão à chamada “revolução constitucionalista”, da qual o principal líder civil era Júlio de Mesquita Filho, para quem “o império da lei e da justiça” só poderia ser restabelecido no dia em que São Paulo voltasse “à sua condição de líder insubstituível da nação”. Era o pensamento da direita brasileira, insatisfeita com a Revolução de 1930 liderada por Getúlio Vargas, já manifestado por Hipólito da Costa em 1808 quando surgiu o primeiro jornal brasileiro, o Correio Brasiliense — mesmo ano da criação da imprensa no Brasil. “Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas ninguém se aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo”, disse ele.

Quando se aproximava o período mais duro da ditadura, em 11 de junho de 1968, O Estado de S. Paulo defendeu, em editorial, a censura a peças teatrais. “Foi uma oportuna manifestação a que se registrou recentemente na Assembleia Legislativa, pela palavra do deputado Aurélio Campos, sobre os excessos que se tem verificado em representações teatrais no terreno do desrespeito aos mais comezinhos preceitos morais. O mundo teatral — tanto os atores e atrizes como os autores — vêm movendo uma campanha sistemática contra a censura, e como esta nem sempre é exercida por autoridades à altura de tão graves e, às vezes, tão delicadas questões, a tendência de muitos é cerrar fileiras entre os que combatem”, disse o jornal.

Nesse ambiente que premia sistematicamente a indignação, pouco importando se ela se baseia ou não em fatos, tornou-se regra conferir respeitabilidade à opinião desinformada. Contudo, ser contra tudo é igualar todos, o melhor e o pior, o mais limpo e o mais corrupto dos governantes. FHC, para ficar apenas em um caso exemplar, não tem moral para ser igualado a Lula e a Dilma. Ao proclamar a intenção de unir o povo para vencer essa onda fascista, portanto, Dilma está dizendo a todo o país, numa palavra, o seguinte: a tarefa número 1, número 2 e número 3 agora é a luta para governar. E isso quer dizer, entre outras coisas, democratizar a comunicação.