Horizonte cerrado* 13 Brasília: desigualdade, favor, eleições
Um dos fatores que contribui para essa sensação de alheamento da realidade do país é mesmo a grande distância espacial entre o centro rico e as periferias menos favorecidas do Distrito Federal. Um cidadão de classe média alta que more no Plano Piloto pode viver sua vida inteira sem pisar o chão da rua, derivando de bolha em bolha, infenso ao clima, à diversidade cultural e social, ao confronto com a miséria. Da casa para o carro, do carro para o trabalho, do trabalho para o carro, do carro para o shopping, do shopping para o carro, do carro para a boate, da boate para o carro, do carro para a casa. A rotina monótona e esvaziada de experiência comum, individualizada até o mais fundo nervo, recomeçará no dia seguinte, com loas à segregação que permite e adesão alucinada à forma mercadoria, que é talvez a única coisa a garantir algum sentido à existência. Essa caricatura de modo de vida típico das elites brasilienses é reveladora da forma como ela compreende a existência humana, cujo valor é dado pela participação e pela aplicação radical na noção de propriedade privada às experiências cotidianas mínimas, que vão do trabalho ao lazer. O mundo passa a ser observado, pela nossa elite, de dentro da bolha fetichista da mercadoria, sem a presença reativa de um contraditório sequer. E essa bolha é o ambiente onde, em estufa, cultivam-se velhos ódios da família patriarcal brasileira: contra a mulher, os trabalhadores, os negros, os homossexuais. Como bens e sangue, tal herança vai se perpetuando.
Além do fator espacial vale a pena notar que o que faz de Brasília o habitat natural do conservadorismo é também a desigualdade acintosa entre as classes sociais. Em recente artigo o Professor da Universidade de Brasília Isaac Roitman definiu o quadrilátero geográfico do Distrito Federal como Norucongo, uma justaposição entre Noruega e Congo que colhe inspiração no documentário “Noruega e Congo no centro do Brasil”. Nesse documentário as autoras Camila Murugussa e Jhady Arana, utilizaram dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) para mostrar como a desigualdade social do Distrito Federal é assustadoramente grande e correu na contramão do movimento de resgate da cidadania dos mais pobres, ocorrido nos últimos governos do PT. Lembrando duas áreas com destinos sociais bem diferentes, o Prof. Roitmann pontua: “A Noruega é representada pelo Lago Sul e o Congo pela Cidade Estrutural. A Noruega é o país que apresenta o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): 0,943. O Lago Sul supera o IDH da Noruega: 0,945. Por sua vez, a Cidade Estrutural tem IDH semelhante ao do Congo, país de menor índice do planeta: 0,286”. Como vimos acima, esses mundos dificilmente se encontram, a não ser por relações de “caridade interessada” e de exploração do trabalho e da miséria. Ou seja, embora antípodas, essas realidades sociais não encontram, no cotidiano da Capital Federal, oportunidades concretas que viabilizem a geração de contradições reais, o que é sempre o primeiro passo para a transformação social verdadeira.
O quadro acima é indicial, mas faz pensar: a madame do Lago Sul, em linhas gerais só se relaciona com a pobreza que o seu capital acumulado ajuda a perpetuar pela figura mediadora da empregada doméstica, a quem trata como se tratavam as antigas escravas de casa, ou seja, no limite entre a humanidade e a animalidade. Senão vejamos uma anedota (arapuca!) que circulou como viral entre grupos de Whatsapp durante a última semana da corrida eleitoral. Ela é terrível, mas tem a graça de revelar com autenticamente a máscara espúria das madames da Noruega: “Recebi de um amigo, olha q boa ideia: Já disse à minha funcionária em casa: se Aécio ganhar, segunda-feira é folga pra ela com a família comemorar a MUDANÇA DO NOSSO BRASIL… Ela adorou a ideia… Ela rapidamente ligou para a família e amigas, pedindo por AÉCIO! Façam também!!!!” O preconceito gravado às avessas no uso da palavra “funcionária” é típico dessa camada social e acaba por estruturar todo o resto. O pressuposto por trás do preconceito é o de que política para os pobres é uma questão de mera vantagem circunstancial pessoal (ou seja miram-se no próprio espelho!). Não há nada mais envolvido, para um pobre, na escolha democrática do que o feriado na “segunda-feira”. Considerar que uma pessoa que raciocina normalmente acredite nessa balela e que, por isso, deixe de lado as suas convicções que derivam de sua experiência de vida real, é típico de nossa elite, que sempre está elaborando ardis para sair ganhando em todos os contextos, não importa quem leve a pior. Se forem os debaixo, melhor ainda. Agora, acreditar que famílias e mais famílias votassem em Aécio por causa disso aí então já seria um delírio ideológico que só o Norucongo poderia produzir com tantos requintes. No texto, trata-se a doméstica no limite da animalidade. É mirar e ver: nessa mensagem “inocente” fica patente que o mecanismo do favor, da “caridade interessada”, eivada de preconceito, está na base da “mudança” que era proposta pelo candidato da direita mais raivosa e xenófoba que o Brasil já viu. Mudar para eles é mudar para o atraso. O povo brasileiro sabe que a democracia que a direita quer é essa, a qual depende que se reproduza em escala nacional a esdrúxula situação Norucongo. Foi por isso que o povo se mobilizou e deu a vitória a Dilma. Hoje a maioria dos brasileiros sabe muito bem como pensa e age naturalmente e em estado de permanente contravenção a nossa elite. Isso é difícil aceitar e assim o ódio se propagou de cima para baixo.
Quando há muita desigualdade social, nem sequer a racionalização das práticas burguesas de exploração da classe trabalhadora podem ser divisadas com clareza. E o que se vê, em quase toda linha, é adesão daqueles mais frágeis à ideologia dos que mandam, a uma lógica que é estranha até mesmo à exploração do trabalho livre, sendo tributária do favor. O favor pressupõe que o desnível entre as classes deve ser perpetuado e um de seus nomes é a “caridade”, sempre interessada. Segundo essa lógica, não é apenas a riqueza que deve crescer, mas também a miséria. Sendo nacional, esta é também, em grau paroxístico, a típica ideologia do burguês brasiliense, ou seja, um burguês improdutivo, não industrial e acumulador. Se estivéssemos em uma cidade menos desigual, o favor, o medo, a “caridade interessada” fariam menos sentido, como temos visto ocorrer gradativamente no contexto mais geral do país, graças ao esforço para civilizar as relações entre ricos e pobres que temos acompanhado nos últimos anos. Mas há bastiões de resistência à civilização e Brasília é talvez o mais pútrido deles.
Isso foi provado nos resultados de nossas eleições de 05 de outubro. Na disputa do GDF, polarizaram-se “polos não opostos”: Rodrigo Rollemberg (PSB), um falacioso oportunista da neodireita, e Jofran Frejat (PR), um populista ligado ao velho coronelismo distrital. Nas proporcionais, conhecemos a eleição de uma Câmara Distrital com cara apolítica e, por isso mesmo, nem de longe progressista. Por essas e por outras, temos visto que a esquerda do DF não tem conseguido criar um conjunto de propostas para intervir localmente na reversão dessa dimensão tão degradante de desigualdade social e nos seus produtos ideológicos e políticos. Todavia, a vitória nacional da Presidente Dilma e a mobilização que contribuiu, aqui no DF, para que ela ocorresse parecem uma boa oportunidade para a nossa autocrítica e para a construção de um discurso real e unificado das esquerdas de Brasília. Novos líderes precisam surgir e precisam ter a consciência de que a ação tática e estratégica tem a ver substancialmente com a educação política da população, sempre no sentido de fazer que a lógica do favor e suas estruturas econômicas não toldem a possibilidade de que sejam divisadas as contradições próprias da realidade de Brasília, tomadas em conexão com as contradições do Brasil. Há muito trabalho pela frente, mas temos quatro anos para criar movimentos capazes de gerar para a população brasiliense alternativas de emancipação individual e coletiva, as quais não repliquem no futuro a nossa decepção entre ter localmente de optar entre a direita nova e a direita velha.
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com
*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.