O próximo governo da presidenta Dilma Rousseff tem boas chances de renovar os êxitos do atual mandato. Existe, no entanto, uma diferença notável entre as duas gestões. Em 2010, Dilma se elegeu basicamente pelos mesmos motivos que levaram Luis Inácio Lula da Silva a ganhar a disputa em 2002 e 2006: a exaustão do modelo econômico neoliberal, que se traduziu em esperança sobretudo de melhorias nos índices de emprego. Esse foi, por assim dizer, o principal catalisador dos votos que garantiram esse ciclo de prosperidade na geração de postos de trabalho e, consequentemente, de renda. O desempenho global do governo esteve sob holofotes, evidentemente, mas o que pesou com força na hora dos noves fora do voto foi a melhoria geral das condições de vida do povo.

Nesse ciclo, o Brasil também foi aprovado no tratamento dado às questões sociais, na condução da política externa, no ritmo das melhorias infra-estruturais e nas ações de combate à corrupção. Mas claudicou, sobretudo no seu início, na condução macroeconômica. E esse tende a ser o grande calcanhar-de-aquiles do segundo mandato da presidenta Dilma. Nesse quesito, o governo será pressionado por dois flancos. De um lado, uma minoria direitista irá cobrar de Brasília mais juros para manter a engorda do sistema financeiro e até mesmo o retorno da agenda neoliberal, como as “reformas” trabalhista, sindical e previdenciária. De outro, os movimentos sociais possivelmente estarão mais ativos para impedir a poda de direitos e conquistas sociais e o travamento das mudanças.

Novo contrato social

Em síntese: o Brasil possivelmente irá mergulhar em um embate entre a política do “ajuste” macroeconômico para postergar novas ações sociais e o avanço do projeto progressista. No centro da polêmica estará o papel do Estado. O governo tem, evidentemente, agido para dar outro sentido ao Estado nacional. Só que esse movimento é tímido, acanhado. Ninguém sabe dizer, passadas as eleições, se a lógica mudancista está de fato instalada no coração e na alma do próximo mandato de Dilma. Uma constatação básica: a presidenta não chegou à corrida presidencial de 2014 como símbolo da esperança, como aconteceu com Lula em 2002.

Não fará sentido ao campo governista, por conseguinte, entrar no próximo mandato com o velho discurso da necessidade de um novo contrato social. Isto é: talvez a melhor estratégia seja assumir claramente a premissa de enfrentar o totalitarismo do “mercado” e aumentar o escopo do Estado. Seria uma aberração o governo se orientar por “analistas de mercado” — uma meia-dúzia de funcionários das instituições financeiras que é semanalmente consultada pelo Banco Central (a pesquisa Focus, que apura as “previsões” de instituições do sistema financeiro para diversas variáveis macroeconômicas) —, como vem martelando a mídia. Não se curvar à essa tradição obtusa à luz de um discurso político moderno abrirá um flanco por onde poderá entrar mais ares democráticos. É inaceitável o conceito de que governar é como tocar violino: a gente pega com a esquerda e toca com a direita.

Direita sempre se soube na contramão

A tarefa de defender um novo projeto nacional de desenvolvimento, por tudo isso, não é fácil. Hoje, no espectro centro-esquerda o governo só conta com apoio político porque a luta por mudanças continua. A oposição a essa ideia mudancista se traduz, basicamente, em duas facções: de um lado está a direita tradicional, representada fundamentalmente pelo tucanato e todo o seu arcabouço ideológico — especialmente a mídia —, empenhados em garantir as regalias da elite; de outro, estão os “esquerdistas” e seus panfletos equivocados. Somadas, tem-se virtualmente a totalidade da oposição. A defesa de mudanças estruturais no país, que tem matriz no projeto das forças políticas que apoiam oficialmente o governo, portanto, tem ampla acolhida na sociedade. A rigor, quando a população é consultada sobre conceitos mais profundos de mudanças os resultados são reveladores.

Uma pesquisa realizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) em 2004 indica que a maioria dos brasileiros prefere o socialismo ao capitalismo (54% contra 33%). A população revela, em consultas do gênero, ter consciência de que a direita sempre se soube na contramão da história. Em uma pesquisa divulgada pela revista Veja em junho de 1996, 62% dos conceitos que a elite brasileira atribuía a si própria eram negativos. E a esquerda era tida como a ala progressista da política nacional. Em maio de 1997, em pleno auge da “era FHC”, a mesma Veja divulgou outra pesquisa em que 50% dos entrevistados discordavam da privatização da Vale do Rio Doce — contra 30% que apoiavam e 18% que não tinham opinião. Ou seja: sete de cada dez brasileiros não estavam de acordo com uma ação que foi considerada símbolo do modelo direitista de governar. E metade dos brasileiros estava simplesmente contra.

Esses resultados constroem duas hipóteses. Na primeira, o que se diz sobre a relação entre a popularidade do governo Dilma e o resultado da sua votação não passa de balela. Ou por outra: com sua cantilena de país dividido a direita faz demagogia e politicagem. Na segunda hipótese, as forças políticas governistas têm toda razão em abraçar a missão de gerar as condições para a continuidade das mudanças. E uma das tarefas nesse sentido é a de mobilizar forças unitárias para impulsionar essa bandeira. As condições objetivas, como vimos, são amplamente favoráveis. E há mais constatações.

O exemplo de São Paulo

Tomemos o caso de São Paulo, onde a disputa mais do que em qualquer outro estado refletiu a dicotomia entre esquerda e direita — ou os dois projetos fundamentais que historicamente disputam a condução do país. Nas regiões em que o desenvolvimento chegou com força, após anos e anos de abandono, Dilma obteve uma boa votação porque a realidade era bem distinta daquela apresentada pela mídia. É o caso de Hortolândia, cuja prefeito é do Partido dos Trabalhadores (PT), onde Dilma e o candidato a governador petista Alexandre Padilha venceram.

Quem vive na capital, também governada por forças petistas e comunistas, igualmente percebe claramente que experimenta novidades positivas. São Paulo começou a mudar de rosto — para desespero de uma fração paulistana reacionária e fortemente presente na mídia. As ciclovias se espalharam. Nas periferias, ruas que nunca viram asfalto foram pavimentadas. E um fato curioso aconteceu: os donos de empresas prestadoras de serviço, a princípio receosos em lidar com uma administração de esquerda, mudaram rapidamente de opinião. A prefeitura passou a pagar suas dívidas em dia e dentro do rigor da lei. No meio do mandato do prefeito Fernando Haddad, a cidade já está pontilhada de benfeitorias.

Moralismo udenista-fascista

São Paulo é muito mais complexa do que Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul e precursora das administrações democráticas e populares, mas é razoável imaginar que aquela experiência vem sendo aperfeiçoada com os paulistanos. Na capital gaúcha, quando o petista Olívio Dutra assumiu a prefeitura, em 1988, uma das primeiras medidas foi espalhar pelo município fiscais rigorosos na arrecadação dos impostos, que ficaram famosos por não aceitarem propinas. A aplicação do dinheiro arrecadado passou a ser decidida nas reuniões do orçamento participativo.

Na periferia, favelas iam sendo urbanizadas. No centro, os camelôs eram cadastrados e relocados. A frota de ônibus foi renovada. O nível de ensino na rede pública aumentava na mesma proporção em que o índice de repetência diminuía. O Hospital de Pronto-Socorro em pouco tempo passou a prestar serviços de altíssimo padrão. Em poucos anos, a capital cinzenta que havia às margens do Guaíba transformou-se em uma cidade com auto-estima recuperada, que via o conceito de cidadania presente em seu cotidiano e que frequentemente era eleita como uma das melhores cidades do Brasil.

Propagação moralista gobbeliana

Em outras regiões do país o fenômeno se repetiu: onde o desenvolvimento chegou, Dilma obteve estrondosas votações. A atuação consequente do eixo político que gerou e sustenta as excelências administrativas municipais progressistas também levou o governo federal a se desvencilhar de algumas amarras macroeconômicas — especialmente as da cartilha do Fundo Monetário Internacional (FMI) — e a fazer a travessia em direção a um novo modelo econômico. O grau de desarranjo da economia decorrente do período neoliberal não podia ser minimizado, mas, com prudência e levando em conta que a situação cobrava urgência, foi possível fazer a convergência para uma situação de resultados positivos inegáveis.

Onde a população estava mais propensa a dar ouvidos à pregação da mídia a votação de Dilma foi reduzida. Nelas, o desenvolvimento não foi tão intenso e o que sobrou foi a propagação gobbeliana do moralismo udenista-fascista. Em grande medida, isso se deve ao fato de que as forças democráticas e progressistas tiveram poucas oportunidades para falar com os eleitores. Basta dizer que muitos brasileiros só tomaram conhecimento pleno das notórias sujeiras tucanas nos poucos meses da campanha de Dilma, quando elas saíram das gavetas e de debaixo dos tapetes da direita. Este respiro democrático permitiu maiores espaços para a defesa das concepções progressistas e para as desmistificações das calúnias direitistas.

No jogo político o que conta é a discussão de questões novas; não com o cunho de novidade banal, como às vezes elas aparecem — as “análises” da reeleição de Dilma pela mídia são um exemplo —, mas de forma séria. É sabido que o peso das lideranças políticas de um país reflete o estado de espírito de uma época segundo a força das aspirações de uma ou outra classe — ou de um conjunto delas. Mas há hoje, apesar da vitória da presidenta, uma nítida predileção entre os “formadores de opinião” da mídia pela ideia de que os líderes de uma nação não são expressão de classes e grupos de classes, mas sim resultado de um abstrato “jogo democrático”. A origem dessa atitude está no fato de haver motivações poderosas em negar que a reeleição de Dilma foi a concretização de uma aspiração popular historicamente republicana.

As eras dos Bragança e dos Silva

O povo brasileiro vê a República, desde antes da sua proclamação, como sinônimo de independência nacional, liberdade política e distribuição de renda. Pode-se dizer que o ciclo Lula-Dilma vem cumprindo razoavelmente bem essa missão. Mas não se pode esquecer que muitos votos das classes intermediárias — tradicionalmente refratárias às propostas progressistas — nessas eleições migraram para a direita. Estas camadas sociais podem oscilar à esquerda ou à direita de acordo com as respostas que se oferecem aos seus anseios. E isto tem reflexos nos rumos que o país toma. O fato é que com um debate franco fica mais difícil para os setores conservadores emperrar o processo de transformação do Brasil em um país desenvolvido. A sociedade terá certeza de que os piquetes anti-progresso são mesmo obra de minorias pouco significativas e não um reflexo do pensamento nacional médio.

Luis Fernando Veríssimo, em uma de suas crônicas sempre bem-humoradas, disse que a vitória de Lula em 2002 significou uma mudança de era: a dos Bragança para a dos Silva. A verdade é que não há como compreender a atual fase do Brasil sem estudar as diversas lutas populares da nossa história, seus objetivos, seus programas, suas causas e consequências na evolução do movimento geral que levou Lula e Dilma à Presidência da República. E sem levar em conta o papel de líderes populares e vultos notáveis da nossa história democrática. Destaco entre eles, por sua expressão representativa da luta brasileira pelo progresso, o republicano Lúcio de Mendonça, que considerava a proclamação da República “uma transição para mais aperfeiçoada forma de governo”.