“O Estado é esta totalidade que transcende e integra os elementos concretos da realidade social [o nacional, o popular…], ele delimita o quadro de construção da identidade nacional” (Renato Ortiz, “Cultura brasileira & identidade nacional”, Brasiliense, 2012 [1985]).

1. Lúcida e forte a interpretação de Jessé de Souza [1] acerca do que estava em jogo nas eleições de Outubro no Brasil. Praticamente transcrevo-o ipsis verbis, no que segue – e subscrevo-o.
Derrota da estratégia da “demonização” do Estado
O “modelo” de desenvolvimento construído há 12 anos compreende a derrota do outro – feito para 20% da população, implantado desde o golpe de 1964 e consolidado com FHC nos anos 1990 -, ainda longe de ser hegemônico na construção da esfera pública edificadora da opinião pública, portanto não detentor do “efetivo controle da prática econômica e social”. O novo modelo embora tendo incluído mais 20% dessa população no mercado consumidor de modo “instável e precário” e reduzido a miséria material extrema, o processo ocorreu erraticamente, incompleto e sem planejamento. No entanto, a fragilidade que acompanhou o desenvolvimento desse modelo deve ser explicada manutenção da força social e econômica daquele anterior, da força “inabalada do modelo dominante” apesar da perda eventual do poder politico. Modelo econômico e social cujo mote propagandístico e ideológico de legitimação da exclusão da sociedade tem como “bandeira única” a corrupção e a ineficiência estatal, contra o de supremacia do mercado. É isso que o 1% mais rico do país pretexta e difunde como supostamente do “interesse geral”!
Para o sociólogo e professor da UFF (RJ), é o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, uma forma mesma de “corrupção organizada”, “sempre” a começar pelo controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime: “criminoso passa a ser o funcionário do Estado ou o batedor de carteira pobre enquanto o especulador de Wall Street – a matriz da Avenida Paulista – que frauda balanços de empresas e países e arruína o acionista minoritário embolsa, hoje mais que antes da crise, bônus milionários”. Por isso os primeiros vão para a cadeia, o segundo, que às vezes faz desabar a economia de países inteiros, “ganha foto na capa da Time como financista do ano”. “É isso que o cidadão feito de tolo não vê”, denuncia Jessé. Não há, enquanto sociedade complexa, “uma tão absurdamente desigual como a nossa, na qual quase 70% do PIB é ganho de capital – lucro, juro, renda da terra ou aluguel – e está concentrado no 1% mais rico da população”. Nas sociedades capitalistas mais dinâmicas da Europa, como França e Alemanha, tal relação é inversa; já os brasileiros são “pelo menos o dobro mais tolos que os europeus. Essa deveria ser a real vergonha nacional”.
Na análise aguda de Jessé, no Brasil contemporâneo o papel das frações majoritárias e conservadoras da classe média (de estilo de vida e padrão de consumo semelhante as europeia e americana), tornou-se sócia menor do modelo de sociedade para 20% da população e ocupa os cargos de prestígio do mercado superfaturado e monopolizado; frações “tropa de choque” do 1% mais ricos, “não só porque o defendem na prática nos tribunais, nas salas de aula, nos jornais e em todas as dimensões do cotidiano onde a defesa dos privilégios dessa pequena minoria e de seu sócio menor está em jogo”. Por isso não deveríamos nos espantar por ativistas dessa fração social terem participado das “manifestações de junho de 2013, sequestrando as demandas populares do início dos protestos em nome da eterna corrupção só da política, para defender os interesses da classe de endinheirados que a explora”. Afinal, a demonização do Estado “é o pretexto perfeito para quem ganha com a mercantilização total da sociedade, ou seja, o mesmo 1% que já controla toda a riqueza”.
Em nossa opinião, o artigo de Jessé de Souza se inscreve naqueles raros que sintetizam: 1) as características centrais das grandes mazelas da sociedade brasileira, as profundas desigualdades socioeconômicas existentes – e persistentes -, elucidando como agem politicamente as frações de classes superiores, em variadas esferas, para assegurar seus privilégios e os dos grandes capitalistas; 2) os êxitos do novo ciclo político abertos por Lula e Dilma, conceituados corretamente de “incipiente e inconcluso”, colocam na ordem do dia, mais que nunca, a ideia do grande abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco da urgência de uma “segunda abolição da escravatura”.
Nas fronteiras da luta anti-imperialista
2.
“[Fidel] Castro demonstrou gratidão à presidente Dilma: ‘por ajudar neste projeto transcendental [Mariel]… o mais importante da Revolução para a economia nacional’”. [2]
Olhar o quadro de fundo dos aspectos da nova politica externa Lula e Dilma  -distinções à parte – é compreender como as contradições anti-imperialistas vêm sendo exploradas, na correlação de forças dada; e enfrentadas numa visão das tendências estratégicas. É não recusar apreender criticamente a maneira como o Brasil, sob a hegemonia das forças de esquerda e progressistas passou a se inserir nos processos concretos de reconfiguração dos sistemas de governo (e poder) na América Latina e Caribe, iniciado com a eleição de Hugo Chávez (1998), na Venezuela. Sim, por aqui hegemonia num arco de forças que vai até a setores de direita – não maioria.
Movimento latino-americano e caribenho desde logo inserido numa evolução tempestuosa da situação geopolítica mundial marcada por uma transição no sistema de relações internacionais. Impressionantemente, tal síntese nos é dada agora numa representação gráfica abaixo, a mais significativa das transformações forjadas no sistema de relações internacionais dos últimos 40 anos. Fenômeno possivelmente equivalente ao do final do século XIX quando os EUA ultrapassaram economicamente a Grã-Bretanha: conforme o insuspeitadíssimo FMI, já no final deste ano a China deve projetar a passagem do PIB por sobre a economia dos EUA, em paridade de poder de compra (PPP):


Fonte: O FMI (out./2014), que considera que a economia da China, ajustada ao poder de compra (PPP) é agora a maior do mundo.
Assim, a) de acordo com o relatório do FMI, a China alcançou um PIB de US$ 17,6 trilhões (16,48% do PIB mundial), sendo de US$ 17,4 trilhões o dos EUA (16,28%); essa diferença ultrapassará US$ 1 trilhão em 2015; entretanto, em termos de PIB os EUA alcançam US$ 16,8 trilhões, enquanto a China US$ 10,4 trilhões, diz o relatório do Fundo; b) na interpretação do “Financial Times”, em 2014 a China passou a ser a maior economia do planeta; utilizando-se a mesma metodologia encontram-se Brasil, México, Índia, China, Rússia, Indonésia e Turquia, com US$ 37,8 trilhões de PIB; enquanto  o antigo G-7 (EUA, Grã Bretanha, França, Alemanha, Canadá, Itália e Japão) somaria US$ 34,5 trilhões. Eis porque – diz o Financial –, os países em desenvolvimento citados alcançariam cerca de 50% do PIB mundial, naquele critério.
Evidente que não foi à toa a enorme repercussão da reeleição de Dilma Rousseff. O diário argentino Página/12 estampou na manchete da edição pós-eleitoral: “A alegria não é só brasileira”; lembrando ainda a declaração da presidenta Cristina Kirchner: “Trata-se de um passo a mais na consolidação da Pátria Grande”. Sugestivamente, o articulista Martín Granovsky ali escreveu que, ao alcançar 54.499.901 milhões de votos, Dilma tornou-se “a política de esquerda mais votada do mundo”.
A emissora multiestatal TeleSUR, que fez uma ampla cobertura do pleito no Brasil, estampou que o “Brasil demonstrou a força da esquerda latino-americana”. Enquanto nos Estados Unidos, no The New York Times, o jornalista Simon Romero enfatizou que os brasileiros reelegeram e a endossaram uma vez que sob a esquerdista Dilma Rousseff conquistou-se “importantes ganhos na redução da pobreza e manteve o desemprego baixo”; acrescendo que ela foi preferida mesmo diante de um “forte escândalo de corrupção” e uma economia de baixo crescimento econômico.
De acordo com o coordenador federal da espanhola “Esquerda Unida”, a vitória é “certamente um evento chave para a América Latina, dada a força política, econômica e geográfica do Brasil na região e no mundo. Servirá também para transferir a força brasileira para a integração política e econômica da América Latina”.
No mexicano “La Jornada”, o sociólogo Emir Sader escreveu, com razão, que a direita brasileira, latino-americana e mundial excitou-se com a possibilidade de mudar a política econômica, sonhando em abocanhar os gigantescos recursos do Pré-sal, em enfraquecer o Mercosur, a União das Nações Sul-americanas (Unasul), a recém-criada Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) e, “muito especialmente, ao bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics), cujos últimos acordos incomodam profundamente aos Estados Unidos e a seus aliados”.
Ou nas definitivas palavras do PCP (Partido Comunista Português), endereçadas ao PCdoB, através de seu secretariado central: “Os resultados destas eleições, derrotando ambiciosos projetos da reação e do imperialismo, adquirem uma grande importância para o prosseguimento dos processos revolucionários e de mudança progressista em curso na América Latina assim como na resposta aos grandes desafios que a atual situação internacional, em profunda mudança, marcada por uma profunda crise do capitalismo e por uma violenta ofensiva do imperialismo, comporta.
Duas farsas: Brasil “dividido” e uma “nova direita”
3.
O poderoso impacto da reeleição da presidenta nas hostes neoliberais trouxe à baila e de imediato o rancor de conclusões penduradas nas botas do golpismo; bem como fantasias do abstencionismo esquerdista, logo, logo de prontidão a “novas revelações” à mídia neoliberal.
Rubens Ricupero, intelectual internacionalmente conhecido quando ministro da Fazenda (de FHC!) por ter dito ao repórter Carlos Monforte (1994), em off e imediatamente vazada às escâncaras, o seguinte: “Eu não tenho escrúpulos. Eu acho que é isso mesmo: o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”. A declaração, imunda para uma autoridade pública, ficou conhecida como “o escândalo da parabólica”, e Ricupero logo foi posto para fora do governo completamente desmoralizado… Pois bem: esse desastrado espalha-brasas escreveu em artigo, que “Lula, Dilma e seu partido escolheram o confronto e a violência para ganhar”; que a sociedade brasileira está “rachada, polarizada e radicalizada”; e citando nosso grande (negro e pobretão) Cartola, diz que no destino que aguarda os brasileiros (as) eles (as) “herdarão somente o cinismo e resvalarão ao abismo que cavaram com seus pés”. Quer dizer, a linguagem de ilimitado rancor e ódio é dele! Perda de tempo: não existe nem existirá no Brasil de hoje “sociedade rachada”, que é o que ele incita e deseja ardentemente. Não, seu cínico: no Brasil de hoje o voto é “móvel”; ainda não se vota rigorosamente por ideologia, vota-se, longinquamente, também, por ela; nosso voto tem a ver com conjunturas políticas; notadamente, ainda, vota-se com e em pessoas; tem a ver com determinado nível de consciência política alcançado, decorre avanços obtidos no nossa consciência social; os eleitores não votam – ainda, novamente – seguindo a carteirinha de seu Partido, como na Europa. [Nota Bene: Comprovou-se inclusive que eleitores de Marina Silva no segundo turno passaram a Dilma!]
Por isso, nessas eleições uma campanha sistemática de mentiras covardes repetidas diuturnamente para aterrorizar os “de baixo” pelo insulto “dos de cima” – a partir, também, de exigências materiais maiores daqueles que já conquistaram alguma cidadania advinda nos governos de Lula e Dilma! Não, não há “divisão do Brasil”, como propagandeou um dia após o pleito, o fascistóide Merval Pereira, ou como vitupera Ricupero [4]. Sonham em cindir o eleitorado em busca de um “terceiro turno” raivoso, através da manipulação ideológica midiática do antipetismo. Dilma e as forças avançadas hão – tem a obrigação – de saber conduzir com clareza os anseios, reivindicações e nível de compreensão das grandes massas desejosas de avanços  das conquistas!
Ricupero Merval et caterva são bajuladores da fracassada apoiadora pública do “playboy”, “The Economist”, quem logo publicou matéria afirmando que o Brasil saiu das eleições “Um país dividido” (A riven country); como outro porta-voz da financeirização imperialista e neoliberal, o diário londrino “Financial Times” intitulou imediatamente artigo: “Os resultados eleitorais do Brasil em um país dividido”. Uma pressão violenta não aguardou 48 horas de fechamento das urnas – juntando os mesmos, os de lá e os de cá! Querem nomear o Ministro da Fazenda, o presidente do Banco Central, onde a “divisão” do país serve de lobby, de carniça aos urubus e hienas.
“Nova direita”?[5] Com Agripino, as famílias Magalhães, Marinho, Bornhausen, Caiado, Bolsonaro e cia ilimitada; o apoio do Clube Militar a Aécio, os atos (com a presença de militares) pedindo retorno a ditadura e apoiando Aécio abertamente; com a reciclagem de vários ex-caciques do PMDB ao PSDB, com montanhas de parlamentares oligarcas vindo de ex-Arena e do ex-PFL, todos no exato ninho fedorento da tucanagem? Que espetacular bobagem desse professor Paulo Arantes! Essa cambada toda de apoio explícito ao rentismo neoliberal, daqui e de fora, é a mesma dos 30% que apoiaram-ganharam na ditadura militar; os mesmos que, como cansou de repetir Celso Furtado, sempre se fartaram a reproduzir aqui o padrão das classes médias dos EUA e da Europa; que são os mesmíssimos das classes que apoiaram-ganharam nos anos 1990 de FHC e sua corja, quase todos esses agora que estão exatamente contra, combatem virulentamente os aproximadamente 40% dos “de baixo” que, nos últimos 12 anos chegaram às portas da cidadania (modestíssima, brasileira) com a luta das forças que asseguraram a vitória e os governos de Lula e Dilma!
O senhor Arantes e sua “nova direita” é o mesmíssimo que esculhamba o governo Dilma: não há diferença alguma dos tucanos e a esquerda – que não seja ele -, e que desqualifica como “oficial”; quem vem dizer que não passa de “lenga-lenga” a polarização PT-esquerda X PSDB. Lenga-lenga é a dele, hoje um filósofo patético, atolado em abstrações e mecanicismos interpretativos ridículos (compara o Brasil com os EUA e as atitudes políticas frente aos governos Democratas e Republicanos, assim como compara Dilma e Aécio).
Isso aí, doutor Paulo é a manipulação ideológica das classes e camadas “financeirizadas”, quer dizer, hoje luta política-eleitoral concreta adaptada aos interesses econômico-sociais do domínio do capital financeiro. Creditar às jornadas de Junho o surgimento de uma “nova direita” no país não passa de um raciocínio maniqueísta, sociológica e rigidamente insuflado pelo weberianismo do “tipo ideal” – e politicamente interesseiro aos intelectuais abstencionistas à procura de “teses”. Ademais de se marcar a data para um assassinato da dialética. São ilusões “assustadas” que terminam por servir à velha direita. Essa dita “nova direita” é ou não similar àquela que lutou contra Chávez, luta agora contra Maduro, contra Cristina… e sempre, sempre apoiada e sustentada pelos americanos imperialistas e golpistas que, afinal, conseguiram êxito com essa tal “nova direita” em Honduras e no Paraguai.
Cabe-nos, enfim, lembrar as sábias palavras do grande abolicionista pernambucano (recifense) Joaquim Nabuco: “Não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir a sua obra”. Mas é mais que necessário retomar e difundir as ideias fascinantes – e muito avançadas! – de Darci Ribeiro, para quem apesar do trágico destino dos povos e indígenas e africanos no Brasil, o nosso processo histórico levou a um “criatório de gente” que nos levará a uma Nova Roma: “…tardia e tropical…Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta a convivência com todas as raça e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra” (em: “O povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”).
Sim! Os últimos 12 anos foram os primeiros passos dessa epopeia no Brasil!

NOTAS
[1] Ver: “O caminho da inclusão”, de Jessé de Souza, O Estado de S. Paulo, Aliás, 26/10/2014, p. E3.
[2] Em: “Ao lado de Fidel, Dilma promete mais apoio a Cuba”, Portal Brasil 247/Cuba Debate, 28/01/2014. A manifestação do líder revolucionário cubano é signo reluzente de um dos elementos centrais do que estava em jogo nas eleições presidenciais brasileiras de outubro, do ponto de vista essencial da politica externa e dos mecanismos atuais de integração latino-americana. A propósito, o circo mambembe do esquerdismo tupiniquim foi ao êxtase com declarações de empreiteiros que investimentos no porto de Mariel foram bons para o capitalismo daqui – e haja toneladas do ridículo nessa interpretação “de classe”! O sempre travestido oportunismo e serviçal da direita – “Nem Dilma, nem Aécio” – finge desconhecer que Cuba recentemente aprovou uma lei para investimentos estrangeiros bastante flexível (como deve ser, na crise atual e situação geoeconômica mundial), buscando formas e caminhos reais ao necessário progresso de seu povo. Coisas que não interessam à estupidez esquerdista. Sobre essa questão, conforme reportou de Havana o jornalista brasileiro da Telesur Beto Almeida, colhendo arguto depoimento do marinheiro cubano aposentado Jorge Luis, que já estivera nos portos de Santos e Rio de Janeiro: “Com Mariel, Brasil rompe concretamente o bloqueio imperialista contra Cuba”, disse. E adverte: “Jamais os imperialistas vão perdoar Lula e Dilma”. (Ver: “O porto de Mariel, Brasil Cuba e o socialismo”, Beto Almeida, Carta Maior, 28/01/2014).
[3] Ver: “Quem perdeu as eleições”, de R. Ricupero, Folha de S. Paulo, 27/10/2014.
[4] Ver: “Nova direita surgiu após junho”, entrevista de Paulo Arantes à Folha de S.Paulo, 31/10/2014.