Intelectuais discutem ousadia de Clóvis Moura em Dialética Radical do Brasil Negro
A base marxista do pensamento de Moura, em especial nesta obra, foi motivo para um diálogo sobre a força de sua concepção sobre as relações entre racismo e luta de classes no capitalismo brasileiro. Como lembrou o mediador do debate, o historiador Buonicore, nestes 30 anos de combate ao racismo as vitórias são poucas, mas suficientes para uma reação violenta dos setores que perdem espaço na disputa política e de ideias.
“Estes que foram às ruas, não são contra a corrupção, como costumam se afirmar, mas contra as cotas, contra a democratização da educação, contra os direitos conquistados pelas empregadas domésticas, e em defesa de seus privilégios. Neste sentido, é preciso resgatar Clóvis Moura e travar um debate com amplos setores, no sentido de mostrar a atualidade desse autor na conjuntura”, afirmou o diretor da Fundação Maurício Grabois, lembrando das manifestações conservadoras pós-eleitorais, de cerca de dez mil brancos de classe média “enfurecidos com ódio nos olhos” contra toda e qualquer política de integração dos pobres e negros.
Assim, Buonicore pontua uma constante de Clóvis Moura, que é desvendar como o racismo, enquanto ideologia do capitalismo, justifica a manutenção da desigualdade acirrando a disputa por direitos sociais e controle sobre os mecanismos de poder.
Sofisticação da opressão
Coordenador do coletivo Quilombação, Oliveira vai à base original da obra moureana, quer seja, sua base historiográfica e analítica, para mostrar como o racismo é parte de um projeto de capitalismo e de modernização conservadora para o Brasil. Ele aponta a “coincidência” de algumas políticas institucionais, implantadas a partir de 1850, que desembocam na segregação da população negra, da capacidade de disputar oportunidades no capitalismo nascente.
Esta data, lembra ele, “marca o início do processo de transição controlada, feita pela própria natureza de uma abolição gradual, e o redirecionamento dos recursos aplicados no tráfico para a infraestrutura necessária ao desenvolvimento das relações capitalistas”. Além disso, já se vislumbrava naquele momento a segregação de negros, negras e escravizados como população marginalizada, negando o direito à posse da terra, “que é estabelecido pela promulgação da Lei da Terra, que transforma a posse de concessão em propriedade privada, concentrando, e, praticamente, congelando a estrutura fundiária nas mãos dos antigos senhores de escravos”.
O trabalho assalariado também sofre uma intervenção governamental racista com a politica de branqueamento da população brasileira. “A exclusão de negros e negras era justificada pela intelectualidade da época, com a importação das teorias do racismo científico e da eugenia, populares no espaço acadêmico daquele período”, diz Oliveira.
Com isso, Moura mostrava que o racismo, de acordo com a pontuação de Oliveira, não era apenas resquício de uma sociedade arcaica, que pudesse ter sido superada conforme o capitalismo avançasse, “mas era elemento central da estrutura do capitalismo brasileiro”. Para o acadêmico, esta crítica fundamental ao capitalismo brasileiro alerta para a necessidade de uma vigilância sobre o tipo de desenvolvimentismo que se implementa nos governos progressistas do Brasil. Um desenvolvimentismo sem inclusão social e, particularmente racial, corre o risco de perpetuar o modelo capitalista previsto pelas elites após a abolição da escravidão.
Neste ponto, ele cita a interpretação de Moura sobre o que ele chama de República de Palmares, um projeto político e econômico surpreendentemente progressista para a época (século XVI e XVII). A propriedade coletiva da terra, a policultura e a distribuição equitativa entre os trabalhadores favoreceu que Palmares tivesse fartura alimentar, enquanto a colônia sofria com a fome devido à concentração econômica. Movimentos rebeldes como dos Alfaiates e da Conjuração Baiana previam projetos mais avançados do que aquele da Inconfidência Mineira, que no entanto, coloca aquelas rebeliões de negros em segundo plano frente à insurreição de intelectuais brancos mineiros. “Hoje, como ontem, os movimentos sociais mais radicalizados, formados predominantemente pela população negra, desmistificam a passividade dessa população frente à opressão, como demonstra Moura desde sua primeira obra”.
O professor ainda aponta a importância dos últimos capítulos da Dialética Radical, ao discutir a formação de uma identidade específica rebelde para confrontar o racismo. Moura aponta as reações de agressividade e ansiedade que marcam parcelas da militância de negros e negras, reativos ao racismo sofrido, como compensação simbólica para o ajustamento à sociedade racista, gerando ambiguidades e branqueamentos de personalidades negras importantes.
Ele ainda critica a postura de intelectuais que negam a Moura o caráter acadêmico de sua obra, considerando-o um mero autor militante. Para Oliveira, a imagem de “bomba atômica” que Moura afirmava para o caráter explosivo da luta contra o racismo, ao desmontar a estrutura social capitalista, é o que temem esses intelectuais que se beneficiam dos privilégios raciais institucionais.
Oliveira também apontou na obra moureana a percepção de que o sistema de opressão racial se dinamiza, conforme o avanço das rebeliões de negros no percurso histórico. “Se o racismo sofistica sua atuação, como observamos em programas de televisão aparentemente inclusivos, há uma qualificação da atuação militante do qual Clóvis Moura é nosso mestre”, celebra ele.
Coerência intelectual
O militante do Nepafro, por sua vez, apontou o fato de não haver na obra de Moura um jovem e um velho pensador, ou seja, não há rupturas de pensamento, mas complexificações das ideias e um aprimoramento do método de pesquisa. Faria vai pontuando a bibliografia de Moura e a evolução de seu pensamento.
A abordagem de Faria prefere situar epistemologicamente a origem das ideias de Moura e sua consequente força e originalidade. Ao passo que Caio Prado Jr é parte do alicerce de sua obra, Gilberto Freire e sua leitura da relação cordial e harmoniosa da Casa Grande e da Senzala seria uma referência invertida para Rebeliões da Senzala. “O Clóvis Moura devia ter uma foto de Freire no quarto para jogar dardos toda noite”, brinca ele.
Uma questão epistemológica para Faria seria identificar qual o marxismo que norteia Moura, se aquele de 1843 com a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, ou se em Miséria da Filosofia (1847), apontada em Dialética Radical, pelo próprio Moura. Para ele, emancipação política e humana e a teoria da alienação são categorias que já estariam postas para a compreensão de determinações colocadas.
Para ele, é preciso avançar “de onde Moura limpou o terreno pra gente” e partir para uma interpretação e “radicalização dialética do Brasil negro”, para entender as mudanças que ocorreram nesses dez anos, desde que ele faleceu.
Motivos para celebrar Moura
Almeida destacou o legado intelectual e a sofisticação teórica de seu pensamento, particularmente em sua referência marxista. A categoria de totalidade, aquela já afastada da noção hegeliana, marca a análise moureana em sua abordagem das relações sociais e raciais articuladas com as determinações históricas da evolução do capitalismo.
Mas o presidente do Instituto Luiz Gama, observa a possibilidade de um diálogo de Moura com noções ainda hegelianas de ideologia e sujeito, no lugar que o autor coloca o negro na construção sócio-histórica do Brasil. “Colocar o negro como sujeito histórico de uma transformação social, de uma revolução, nos permitiria dizer que há um diálogo com o Marx das concepções de ideologia e de sujeito mais próximas do hegelianismo”.
Ou, então, Moura estaria mais em diálogo com o Marx posterior às obras de 1945, onde se coloca as questões de relações de produção e não mais de forças produtivas. Então, a questão não seria apenas estudar o papel do negro na história, mas entender como se dá a constituição das relações de produção e como essas relações têm o racismo como elemento estrutural e estruturante. Estas duas leituras marxistas definem como se dá a práxis da luta social na obra de Moura.
“Mesmo não apreendendo a metodologia do livro, percebemos o nível de sofisticação dialética de seu pensamento”, diz Almeida, ao citar os textos finais do livro, mencionadas por Oliveira, ao discutir a dialética entre condições objetivas e subjetivas do racismo. Para ele, a obra de Moura é uma das melhores formulações sobre o papel da ideologia, entendida como condicionantes sociais forjadas a partir dos aparelhos ideológicos.
Almeida aproveitou o relançamento da obra de um intelectual negro com visibilidade relativa numa sociedade racista, inclusive entre a intelectualidade, para destacar o jurista Luiz Gama em sua invisibilidade como maior pensador do Direito. “Os alunos de direito e seus professores não sabem de Luiz Gama, e acham que o maior intelectual é Rui Barbosa, que admirava abertamente Gama”, ressaltou, mostrando o modo como a sociedade trata aqueles que assumem a negritude e sua luta em nome das questões raciais.
Almeida ainda aponta a importância de Moura para a orientação política dos movimentos sociais. “Há um ressentimento compreensível do movimento negro com as organizações de esquerda, devido à formação destas instituições dentro de estruturas racistas, mesmo lutando contra o capitalismo”. Segundo lembra ele, Moura já alertava para a necessidade de uma autocrítica destas organizações revolucionárias, sob o risco de não ser efetivamente socialista, ao preservar estruturas racistas na sua formação.
Ruptura com a oficialidade marxista
Gevanilda não se considera uma especialista em Clóvis Moura, mas, como ativista, diz que foi se encantando com a ousadia do autor ao romper com a historiografia marxista oficial. “Ele vai dar vazão aos estudantes brasileiros que não conseguiam colocar a participação do negro na sociedade brasileira numa perspectiva revolucionária”, diz ela. Segundo ela, o negro, até então, estava atomizado na sociedade, lidando com sua própria culpa como se fosse responsável por todas as mazelas do Brasil. “Moura define o negro como estruturante da luta dos trabalhadores do Brasil”, afirmou.
Ela lembra que as relações de raça e gênero estão muito presentes no debate dos movimentos sociais, mas é difícil encontrar esse diálogo na academia. “Sem teoria, não tem revolução!” lamenta ela, ao observar a importância de autores tão articulados com a militância, como Moura, e o vazio que toma a academia na falta de intelectuais militantes como ele. Para ela, a questão em debate é qual a radicalidade das transformações do Brasil, hoje, e a participação do negro.
A militante aponta as digressões de Moura sobre a práxis política do movimento negro como um diferencial na teorização sobre o racismo. Para ela, as contradições dentro do dia-a-dia do próprio movimento de negros e negras precisam ser compreendidas a partir da análise de sua relação com a lógica capitalista. “Moura deve ter ficado bolado com as comemorações do Centenário da Abolição em 1988, quando parte do movimento fez a crítica pela luta e parte se acomodou às festividades”, imagina ela.
Para ela, a superação da visão do escravo como dócil e cordial, em busca da integração à sociedade, é um avanço proporcionado pela obra de Moura. Do mesmo modo, a luta racial conquistou uma afirmação da existência do racismo na sociedade, que é fundamental para que se avance. “Também está colocado que o racismo é uma forma de dominação das classes trabalhadoras”, defende ela.
Neste sentido, quando Moura traz a categoria marxista da alienação para explicar como um sistema complexo de dominação racista é apreendida tanto pela população negra, quanto pelas classes trabalhadoras, ele rompe com uma mentalidade de esquerda que ainda não via estas relações como estruturantes de sua luta. “Foram 500 anos de uma dominação racista que criou cultura, subjetividades e formas de vida, assim como invisibilizou a resistência negra na história”.
Gevanilda aponta para os dilemas do movimento negro, ao lidar com a perspectiva moureana de uma ruptura com o capitalismo numa sociedade que não está preparada para isso. Outro desafio está na crucialidade do momento em que o capitalismo reage cada vez mais rápido, a sua maneira, à agenda do movimento negro. “A agenda do genocídio da juventude negra já vem recebendo respostas defensivas, inclusive, da polícia. A omissão dos governos na inserção da juventude negra na sociedade a partir da educação é respondida com seu extermínio.”
Para Gevanilda, desde os anos 1970, quando o movimento dizia “quem é negro levanta a mão”, ser negro já se tratava de uma opção política. Ela cita a assunção de Moura como negro, embora carregasse a cor e os traços do senhor de escravos na miscigenação violenta com sua bisavó. “Aí, não cabe ambiguidades, como acomodação, agressividade, ansiedade, mas a firmeza de superar o racismo pela superação de toda a sociedade capitalista”, concluiu.
Olhar do negro sobre o negro
A presidenta da Unegro em São Paulo ressaltou o fato do altíssimo nível do debate ser proporcionado por uma mesa majoritariamente composta por homens e mulheres negras. Para ela, a grande contribuição de Moura passa por essa perspectiva de um olhar do negro sobre sua história e sua luta. Até então, o debate intelectual era muito pontuado por uma perspectiva de pensadores brancos sobre a realidade da população negra.
“Esses negras e negras que estão na universidade têm um papel de voltar ao seio do movimento negro e beber dessa fonte, dessas expectativas”, salientou Rosa. “Cabe, agora, à universidade, ir para junto do povo compreender suas demandas e formulá-las de um modo que dê consequência a elas, e, aí, sim, estaremos integrando e construindo uma mudança”.
Para ela, o movimento social tem dificuldade de dar uma resposta à altura da sofisticação e velocidade da elaboração racista que sociedade capitalista trata esta população. Daí a importância dos intelectuais na elaboração da teoria e da prática no combate ao racismo.
Após as apresentações, membros da plateia fizeram perguntas e comentários sobre o tema, com rápidos comentários de cada palestrante. Embora a noite tenha sido de uma rara chuva torrencial que embaralhou o trânsito paulistano, o auditório teve mais da metade de sua capacidade (140) ocupado por uma plateia ansiosa, que também comprou 103 livros, sendo 65 exemplares da reedição de Dialética Radical do Brasil Negro, e os demais distribuidos entre Rebeliões da Senzala, também de Moura, Racismo: cotas e ações afirmativas, também recém lançado por Maurício Pestana, e Racismo à Brasileira, de Martiniano José da Silva.