Nas instituições em que não circula o vento cortante da crítica franca e aberta, cresce como bolor uma corrupção inocente. (Friedrich Nietzsche)

O COMUNISMO criou a contragosto incentivos estruturais para práticas corruptas que, associadas a maus costumes enraizados na sociedade, tornaram-se fatos normais e corriqueiros, característicos de economias excessivamente reguladas e sistemas jurídicos muito rígidos. Isso diziam os inimigos do regime, mas que poderia haver de ruim em subornar para obter serviços de melhor qualidade? – pergunta o cidadão comum, que viveu sob o comunismo. Cidadão que hoje se recorda com saudade das vantagens do comunismo em termos não só de segurança, saúde, educação, mas também de corrupção: “bastava subornar um só safado e você tinha certeza que ia ser atendido”. No capitalismo, ao contrário, “paga um monte de safados e mesmo assim não sabe se vai dar certo”. Nada de mais, justifica por sua vez um laureado jurista norte-americano: que pode haver de mal em subornar também sob o capitalismo “quando a prática corrupta é notória e ajuda a corrigir informalmente o salário de um servidor”? Era o que dizia o antigo governador de São Paulo, Adhemar de Barros, um dos líderes do golpe de 1964: “delegado de polícia não precisa de aumento, pois se dinheiro é problema usa a carteira funcional”.

Corrupção: bomba-relógio

Em qualquer regime político e econômico, mas acentuadamente no comunismo a corrupção “normal” representa um tremendo obstáculo ao progresso social. Com efeito, se as práticas corruptas das elites e dos dirigentes persistem, a população por sua vez torna-se cada vez mais indiferente à desonestidade e acostuma-se a sonegar impostos, recorrer aos serviços do crime organizado, corromper e ser corrompida por políticos e servidores públicos. No comunismo, a corrupção “normal” transformou-se em uma bomba-relógio que, em circunstâncias de crise política e econômica, explodiu e levou consigo o sistema por inteiro, a União Soviética e todo o bloco de países socialistas.

Os precavidos comunistas chineses, por seu turno, já em 1978 incluíram o combate à corrupção na pauta de prioridades do seu movimento de “Reforma e Abertura”. Porém, como seria de se esperar, não agiram com a devida determinação, gerando descrédito e descontentamento, expondo o regime ao ridículo e ao risco de derrocada. Não foi surpresa, portanto, a ocorrência das sangrentas manifestações de 1989 na Praça da Paz Celestial, e que em seguida houvessem profundas mudanças na cúpula e na política de reformas do Partido Comunista, que ao combate à corrupção finalmente concedeu status de política pública tão urgente quanto a geração de empregos.

As penas dos corruptos, na China, incluem até mesmo pena de morte, mas tiveram sucesso apenas relativo, pois corrupção não se resume a roubo de dinheiro público, a crimes econômicos como suborno, extorsão, fraude, contrabando, evasão, sonegação. Corrupção depende de mecanismos diabólicos que reproduzem os “maus costumes” de quem se nutre de relações espúrias e privatistas com o Estado. Corrupção cinzenta, bem mais difícil de exterminar que o roubo descarado do dinheiro público: não somente é validada por formas legais, ilegais e semilegais, como também convalidada até por quem a desaprova, mas adota quando tem a oportunidade de usar práticas daninhas em benefício próprio. Não surpreende, portanto, a eficácia do “convite” que fazem os “corruptos cinzentos”: quem quiser usufruir e abusar das mesmas regalias e privilégios, que consiga cargo de confiança ou passe em concurso público.

Corrupção: rede diabólica

Os comunistas fracassaram, no passado, porque entenderam corrupção como “vício de origem” capitalista e descartaram seus impactos sobre os padrões de moralidade e os modelos sociais de conduta da sociedade que queriam construir. Na verdade, sob o comunismo, da mesma forma que no capitalismo, corrupção gera desânimo em relação ao trabalho duro, competente e honesto, e desconfiança para com o próprio cidadão, que, quando extrapola o papel de simples consumidor torna-se “o inimigo”, causador de problemas cuja mera existência justifica abuso e práticas corruptas. Livres ficam, portanto, os aparelhos de manipulação ideológica para explorar os nossos sentimentos de culpa, para apregoar que todos temos “um dedão na lama”, pois afinal quem de nós “não aceitou um pagamento sem recibo” ou deixou de dar “uma cervejinha ao guarda”?

Essa noção de corrupção como “pecado de todos nós”, traço do caráter nacional, pedra no meio do nosso caminho à modernidade, é profundamente reacionária. Corrupção não acontece somente quando a ocasião se faz presente nem se restringe a “bandas podres” de “maus servidores”, como o safado do guarda e políticos sem vergonha que só agem quando são “seduzidos” por alguém mal-intencionado. Práticas corruptas são “organizadas” de forma hierárquica e autoritária; permeiam a polícia, o Judiciário e o Ministério Público, envolve políticos, partidos, empresas, intermediários e a própria população. Formam redes diabólicas em que superiores dizem aos subordinados como e quando empregar práticas corruptas e cometer abusos, estabelecendo quotas de participação em transações com dinheiro, informações, proteção política, decisões favoráveis, apoio e consentimento.

Caso da mocinha que, aprovada em concurso público, foi nomeada para trabalhar em uma movimentada repartição tributária. Ainda vibrando com suas realizações pessoais, recebeu o primeiro pagamento, mas verificou que na sua conta havia um salário e meio a mais. Atônita, perguntou ao supervisor o que poderia ter acontecido e como fazer para devolver o dinheiro. Paternalmente, o chefe lhe disse que sossegasse, o dinheiro sim era dela, mas poderia continuar recebendo tanto ou até mais se cumprisse determinadas “instruções superiores”. O chefe não disse, mas a moça logo aprendeu que todos que se recusavam a cumprir as tais “instruções” não só deixavam de receber depósitos extras como eram transferidos para lugares distantes, perdidos no sertão brasileiro.

Não podemos ou não sabemos? 

Diante dessa rede demoníaca, em que indivíduos safados são meras peças de reposição, todas as nossas experiências de corrupção têm o comum o fato de dizermos, apáticos e impotentes, que “nada podemos fazer” quando o certo seria admitir que “não sabemos o que fazer”. Não sabemos, e sobretudo as autoridades também não sabem, o que fazer, pois falta-lhes coragem e vontade de convencer as pessoas que não devem confiar indefinidamente nos outros (principalmente nas próprias autoridades) para resolver suas preocupações, e sim que cada um precisa assumir a sua parcela de responsabilidade.  Não “somos todos iguais”, como dizia aquela velha canção, nem “temos todos um dedão na lama”. A verdade é que jamais somos ouvidos e muito menos convocados a participar da solução dos problemas que ainda parecem estar além da capacidade de cooperação e entendimento dos poderosos e das elites dirigentes.

Pedro Scuro Neto é membro da Fundação Maurício Grabois Seção São Paulo