Democracia versus simulação
Os modelos políticos institucionais adotados a partir de 1985 encontraram nas manifestações de junho uma de suas crises mais agudas. Entre toda a sorte de pautas e demandas que se sobrepuseram às do Movimento Passe Livre, a luta pela participação democrática parecia de longe um ponto de convergência. Da parte do Estado e de seus aparelhos, repressão violenta e outras barbáries mostram que as raízes da ditadura permanecem sólidas e não se contentam com o subsolo da política.
Lembremo-nos de que um dos principais objetivos da ditadura era a extinção do pensamento político, seja por meio da suspensão de direitos, seja da eliminação física da dissidência. E isso estende-se à produção intelectual, artística e científica.
Ensinar democracia e seus valores num país que ainda tem fortes resquícios de modelos de repressão é algo ainda não muito claro. Como resposta ao novo contexto histórico pós-ditadura, mantivemo-nos no plano da simulação. De fato, para muitos, ensinar às crianças e aos adolescentes os valores democráticos e suas possibilidades ainda consiste em simular, em condições controladas, modelos limitados de participação, diálogo e decisão coletiva. A simulação de processos eleitorais é a mais óbvia delas, mas há outras mais sutis. Trata-se de criar situações que impelem ao diálogo, mas que ao mesmo tempo o aprisionam num simulacro de participação, evitando, por exemplo, que as decisões tomadas nesse processo tenham consequências reais na vida escolar.
A escola brasileira não sofre de problema diferente do que está posto nas ruas, nem em proporção nem em complexidade, talvez por isso não deva ficar tão distante de seus apontamentos. Construir a democracia no Brasil passa pelas questões de como construí-la na escola e pela revisão do modelo e da função da própria escola diante das expectativas democráticas. O paradigma da simulação chegou ao seu limite, pois democracia não consiste apenas em uma série de regras e normas de conduta.
Não se pode criar um ambiente democrático de aprendizado em condições de autoritarismo e burocratização extrema, situação de grande parte das escolas brasileiras. Igualmente, democracia não pode ser um discurso, mas uma prática efetiva, contraditória, conflituosa, dialógica, que coloca em xeque as relações de poder na própria escola, na própria sala de aula. O grande desafio é sensibilizar-se a isso. Pensar na consolidação de um sistema democrático é pensar na consolidação de uma vivência democrática na escola e vice-versa. •
*Filho de professor, educador na rede pública de SP, integrante do coletivo organizador do Simpósio dos Pensadores Periférico
Publicado em Carta Fundamental, na edição 60, de agosto de 2014.