Comissão da Verdade pede a revisão da Lei da Anistia
Após mais de dois anos de trabalho a respeito das violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura (1964-1985), a Comissão Nacional da Verdade decidiu pedir, em relatório final tornado público nesta quarta-feira 10, a revisão da Lei da Anistia, que há 35 anos mantém impunes os crimes de lesa-humanidade daquele período. Para a CNV, a lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, é uma lei de autoanistia, o que viola leis internacionais.
A anistia, segundo a CNV, não poderia incluir agentes públicos que realizaram crimes como “detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres”, pois tais ilícitos são “incompatíveis com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional”, uma vez que se tratam de crimes contra a humanidade, “imprescritíveis e não passíveis de anistia”. A CNV afirma que a jurisprudência internacional endossa “a total impossibilidade de lei interna”, como é a da anistia, “afastar a obrigação jurídica do Estado de investigar, processar, punir e reparar tais crimes”.
Em sua argumentação, a Comissão da Verdade invoca a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 2010 responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento de participantes da Guerrilha do Araguaia e considerou que as disposições da lei da anistia “são manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis.”
Por fim, afirma a CNV, leis de autoanistia “constituem ilícito internacional”, pois “perpetuam a impunidade” e “propiciam uma injustiça continuada, impedindo às vítimas e a seus familiares o acesso à justiça, em direta afronta ao dever do Estado de investigar, processar, julgar e reparar graves violações de direitos humanos”.
A revisão da lei era um dos assuntos mais divisivos da CNV, e não se deu de forma unânime. Foi aprovada por cinco dos seis integrantes – José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso – mas rejeitada pelo advogado José Paulo Cavalcanti Filho. Segundo o relatório, Cavalcanti Filho divergiu pelas “mesmas razões” que fizeram o Supremo Tribunal Federal recusar, em 2010, a revisão da anistia.
No julgamento de quatro anos atrás, ao considerar uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, o STF considerou, por 7 votos a 2, que não cabia revisão da Lei da Anistia. O voto vencedor, do ministro Eros Grau (aposentado), considerava que a lei não poderia ser modificada pelo Judiciário pois seria fruto de “acordo político” realizado no período final da ditadura.
Apesar da decisão do STF, há significativos fatos históricos a contrapor a tese de “acordo político” vencedora na corte.
A história da Lei da Anistia
A anistia desejada pela sociedade civil no período de distensão do regime ditatorial brasileiro tinha como objetivo anistiar os presos políticos que foram sequestrados, torturados e estuprados nos porões da ditadura, não seu algozes. A pressão por uma anistia vinha desde os primeiros anos após o golpe de 1964, mas cresceu de forma exponencial na década de 1970.
Diante do clamor popular, o governo João Figueiredo decidiu agir e apresentar, em 27 de junho de 1979, um projeto próprio a ser enviado ao Congresso. Escrito pelo então ministro da Justiça, Petrônio Portella, com a participação de Golbery do Couto e Silva (ministro-chefe da Casa Civil), Octávio Aguiar de Medeiros (chefe do Serviço Nacional de Informação), Danilo Venturini (chefe do gabinete militar) e Heitor Ferreira (secretário de Figueiredo), o texto era limitado no que dizia respeito aos presos políticos, mas anistiava todos os agentes do Estado.
A anistia condicional aos presos políticos fez com que a sociedade civil, e a oposição parlamentar, então encarnada no MDB, se tornassem contrárias ao projeto. A proposta era criticada por transformar a ação política em terrorismo e por conceder o perdão antecipado aos torturadores. Como conta a cientista política Glenda Mezarobba no livro Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências, a oposição classificava a proposta de “restrita, mesquinha, discriminatória, burocrática, casuística, parcial, arbitrária, omissa e até mesmo odienta”. Senadores e deputados oposicionistas percorreram o Brasil conversando com presos políticos e seus familiares, enquanto os detidos decidiram realizar uma greve de fome. Diante do limitado projeto do governo, a oposição e a sociedade civil se organizavam para pedir uma anistia “ampla, geral e irrestrita”.
Ao mesmo tempo, havia uma pressão para que os torturadores fossem punidos. O regime, entretanto, se recusava a tratar sobre o tema, postura revelada no próprio discurso de Figueiredo ao lançar o projeto de lei, quando afirmou que “certos eventos, melhor silenciá-los, em nome da paz da família brasileira”. Como afirma a linguista canadense Danielle Forget no livro Conquistas e Resistências do Poder (1964-1984): A Emergência de um Discurso Democrático no Brasil, o governo mantinha “a postura de que a anistia a ele pertence como projeto político, desviando-se da possibilidade de colocar em jogo o regime em seu conjunto”.
Não se tratava, assim, de um “acordo político”, mas da aprovação de um projeto nos moldes do que desejava a ditatura.
Mesmo diante da pressão para que os torturadores fossem julgados, o governo não se curvou. E fez sua vontade no Congresso. O substitutivo apresentado pelo relator do projeto, o deputado Ernani Satyro (PB), integrante da Arena, o partido governista, foi aprovado em comissão mista dominada pela base de sustentação da ditadura.
O Plenário da Câmara analisou o projeto em de lei em 21 e 22 de agosto de 1979, em sessões marcadas por muita tensão dentro do Casa e protestos fora dele. O substitutivo de Satyro foi aprovado de forma simbólica, inclusive pela liderança do MDB, que tinha como estratégia aprovar o texto governista e, em seguida ele, uma emenda de Djalma Marinho (Arena-RN) cujo teor faria da anistia uma “ampla e irrestrita”. O MDB conseguiu amealhar 15 votos de deputados governistas, mas perdeu a votação por cinco votos – 206 integrantes da Arena rejeitaram a “emenda Djalma Marinho”.
Abaixo, o discurso de Figueiredo ao assinar o projeto da anistia:
Como rever a Lei da Anistia?
A revisão da anistia solicitada pela Comissão Nacional da Verdade pode ser realizada pelo Judiciário ou pelo Congresso. A primeira alternativa dificilmente vai vingar. Após a votação realizada em 2010 a respeito da ação impetrada pela OAB, a entidade entrou com um recurso, que ainda aguarda julgamento. Ao menos dois dos atuais ministros do STF – Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello – já sinalizaram que é mínima a possibilidade de o Supremo mudar seu entendimento durante o julgamento do recurso, mesmo com a ampla renovação do quadro de ministros desde 2010.
No Congresso, as chances também são pequenas. A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) apresentou em 2011 um projeto de lei que pede a revisão da Lei da Anistia, mas ele segue parado na Câmara e deve continuar assim caso não haja mobilização popular. Em março, quando o golpe de 1964 fez 50 anos, uma pesquisa do Datafolha mostrou que 46% dos brasileiros são favoráveis à anulação da anistia para torturadores, mas esse número não se transforma em pressão popular. Em abril, o escritório brasileiro da Anistia Internacional lançou uma petição pública para recolher assinaturas em favor da revisão da lei e conseguiu apenas 13 mil assinaturas.
O ímpeto pela mudança poderia vir do Executivo, mas nenhum dos presidentes eleitos democraticamente após a ditadura se mobilizou para tanto, nem mesmo aqueles que foram perseguidos pelo regime, como Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Dilma Rousseff (PT), que foi torturada nos porões da ditadura, também não parece se interessar por isso. No cinquentenário da derrubada de João Goulart, Dilma fez, pelo Twitter, um discurso em tom de superação da ditadura. Ela afirmou que as “cicatrizes podem ser suportadas e superadas” e que “reverencia” quem lutou pela democracia, ao mesmo tempo em que reconhece e valoriza “os pactos políticos que nos levaram à redemocratização”.
A Lei da Anistia é, assim, um episódio emblemático da transição para a democracia no Brasil. Não houve ruptura entre o regime ditatorial e o democrático, com julgamento e identificação de culpados por violações de direitos humanos. Houve, em vez disso, o surgimento de uma democracia que carrega em seu bojo várias das estruturas da ditadura. Isso é verdade nas instituições do Direito e da segurança pública atuais, como escancarou a Comissão da Verdade, mas também na política, frequentada, em todos os lados do confuso espectro ideológico brasileiro, por apoiadores do regime militar. O passado revela como a farsa a tese de acordo político por trás da lei aprovada em 1979, mas o presente deixa clara a existência de um acordo tácito hoje em dia. Em nome da governabilidade, silenciamos “certos eventos”, como pediu Figueiredo. É uma pena que o resultado disso não seja “a paz da família brasileira”, como desejava o ditador, mas a perpetuação de graves violações aos direitos humanos.
Publicado em Carta Capital