O terrorismo, a extrema-direita e o suicídio europeu, um continente em explosão
O ato terrorista contra os jornalistas do francês Charlie Hebdo, em Paris, que também provocou ontem (7) a morte de um funcionário da revista, de dois policiais no ato e possivelmente de mais um em tiroteio posterior – num total de 12 mortos –, é mais uma face da grande ameaça que paira sobre a Europa.
O continente inteiro está assentado sobre uma bomba-relógio. Não é uma bomba comum, porque casos como o do Charlie Hebdo mostram que ela já está explodindo. Nas pontas da bomba estão duas forças antagônicas, com práticas diferentes, porém com um traço em comum: a intolerância herdeira dos métodos fascistas de antigamente – e de sempre.
De um lado, estão pessoas e grupos fanatizados que reivindicam uma versão do islamismo incompatível com o próprio Islã e o Corão, mas que agem em nome de ambos. Os contornos e o perfil desses grupos estão passando por uma transformação – o que aconteceu também nos Estados Unidos, no atentado em Boston, durante a maratona, e no Canadá, no ataque ao Parlamento, em Ottawa. Cada vez mais aparecem “iniciativas individuais” nas ações perpetradas.
Esse tipo de terrorismo se fragmentou em pequenos grupos – muitas vezes de familiares – que agem “à la cria”, como se dizia, em ações que parecem “espontâneas” e até “amalucadas”, mas que obedecem a princípios e uma lógica cuja versão mais elaborada, para além da “franquia” em que a Al-Qaïda se transformou, é o Estado Islâmico, que se estruturou graças à desestruturação do Iraque e da Síria. São fanáticos que negam a política consuetudinária como meio de expressão de reivindicações e direitos: negam, no fundo, a própria ideia de “direitos”, inclusive o direito à vida, como fica claro no gesto assassino que vitimou o Charlie Hebdo.
Do outro, estão os neofascistas – ou antigos redivivos – que se agarram à bandeira do anti-islamismo também fanático como meio de arregimentar “as massas” em torno de si e de suas propostas. Agem de acordo com as características próprias dos países em que atuam, mobilizando, de acordo com as circunstâncias, as palavras adequadas.
No Reino Unido, criaram o United Kingdom Independence Party – UKIP, Partido da Independência do Reino Unido, nome malandro que oculta e ao mesmo tempo carrega a ojeriza pela União Europeia. Na França têm a Front Nationale, da família Le Pen, que mobiliza o velho chauvinismo francês – que lateja o tempo todo desde o caso Dreyfus, ainda no século 19.
Na Alemanha é feio ser nacionalista alemão, desde o fim da Segunda Guerra. Então, criou-se um movimento – Pegida – que se declara de “Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente”, procurando uma fachada pseudamente universalista para seus preconceitos anti-Islã e anti-imigrantes.
Essa, aliás, é a bandeira comum desses movimentos: fazer do imigrante ou do refugiado político ou econômico o bode expiatório da situação de crise que o continente vive, assim como no passado se fez com o judeu e ainda hoje se faz com os roma e sinti (ditos ciganos).
Na Itália, esse fascismo latente se organiza com o nome de “Liga Norte”, mobilizando o preconceito social contra o sul italiano, tradicionalmente mais empobrecido. São movimentos que, embora busquem por vezes o espaço da política partidária, como é o caso do Ukip e da Front Nationale, ou mesmo da Liga Norte, têm como cosmovisão a negação da política como espaço universal de manifestação de direitos e reivindicações.
Negam a política como campo de manifestação das diferenças, barrando ao que consideram como alteridade o direito à expressão ou mesmo aos direitos comuns da cidadania. O exemplo histórico mais acabado disso foi o próprio nazismo que, chegando ao poder pelas urnas, fechou-as em seguida.
O caldo de cultura em que vicejam tais pinças contrárias à vigência dos princípios democráticos é o de uma crise econômico-financeira que se institucionalizou como paisagem social. Na Europa, a tradição é a de que crises desse tipo levam a saídas pela direita. O crescimento do Ukip e da Front Nationale, partidos mais votados nas respectivas eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2013, é eloquente nesse sentido.
Na Alemanha, as manifestações de rua do Pegida vêm crescendo sistematicamente, atingindo o número de 18 mil pessoas na última delas, na cidade de Dresden, reduto tradicional de manifestações nostálgicas em relação ao passado nazismo devido a ter sido o alvo (também criminoso) de um bombardeio ao fim da Segunda Guerra pelos britânicos.
Deve-se notar, como fator de esperança, que manifestações contra essas formas de intolerância – o terrorismo que reivindica o Islã como inspiração e os movimentos de extrema-direita – têm tomado corpo também. Houve manifestações de solidariedade aos mortos na França em várias cidades europeias e, na Alemanha, manifestações contra o Pegida reuniram milhares de pessoas em diferentes cidades.
Mas pelo lado da extrema-direita cresce a aceitação de suas palavras de ordem na frente institucional (líderes do novo partido alemão Alternative für Deutschland têm acolhido reivindicações do Pegida) e junto à opinião pública. Na Alemanha, recente pesquisa trouxe à baila o dado preocupante de que 61% dos entrevistados se declararam “anti-islâmicos”.
Como ficou feio alegar motivos racistas, o que se alega agora no lado intolerante é a “defesa da religião” ou a “incompatibilidade cultural”. Os assassinos do Charlie Hebdo gritavam – segundo testemunhas – estarem “vingando o profeta”, referência a caricaturas de Maomé consideradas ofensivas.
Na outra ponta, jovens da Front Nationale, também no ano passado, recusavam a pecha de racistas e declaravam aceitar o mundo muçulmano – em “seus territórios”, não na Europa agora dita “judaico-cristã”, puxando para seu aprisco a etnia ou religião que a extrema-direita europeia antes condenava ao ostracismo, ao campo de concentração e ao extermínio.
Os partidos e políticos tradicionais, em sua maioria, estão brincando com fogo, sem se dar conta, talvez. Não aceitam o reconhecimento, por exemplo, que grupos por eles apoiados na Ucrânia são declaradamente fascistas, homofóbicos e até antissemitas. Preferem exacerbar o sentimento antirrusso e anti-Putin.
Durante mais de uma década as duas agências do serviço secreto alemão concentraram-se em esmiuçar a vida dos partidos e grupos de esquerda (além dos possíveis terroristas islâmicos) e negligenciaram criminosamente o controle sobre os grupos e terroristas alemães.
No momento, o “grande terror” que se alastra no establishment europeu não é o de que a extrema-direita esteja em ascensão, embora isso também preocupe, mas é o provocado pela possibilidade de que um partido de esquerda, o Syriza, vença as eleições na Grécia (marcadas para dia 25 deste mês), forme um governo, e assim ponha em risco os sacrossantos pilares dos planos de austeridade.
Nega-se o pilar da democracia: contra o Syriza agitam-se as ameaças de expulsão da Grécia da zona do euro e até da União Europeia; ou seja, procura-se castrar a livre manifestação do povo grego através da chantagem política e econômica.
Se as coisas continuarem como estão, poderemos estar assistindo o suicídio da Europa que conhecemos. O que nascerá desses escombros ainda se está por ver, mas boa coisa não será, nem para a Europa, nem para o mundo.
Publicado em Rede Brasil Atual.