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A LUTA DE IDEIAS NO BRASIL E AS CRÍTICAS AO CPC DA UNE

Nos anos 1970 constituiu-se uma visão bastante crítica às experiências do movimento nacional, democrático e popular, hegemonizado pelos comunistas e nacionalistas. Tudo, ou quase tudo, o que foi produzido nas décadas anteriores foi tachado de populista e autoritário. Nada escapou à devastadora onda crítica: ISEB, CPC, PCB, CGT etc. O principal núcleo irradiador desta crítica foi, sem dúvida, a Universidade de São Paulo (USP).
A respeito do Instituto Superior de Estudo do Brasil (ISEB) afirmou a filósofa Maria Sylvia Carvalho Franco: “A distorção do idealismo, aliada a um empirismo vulgar tem, no interior do discurso do ISEB (…), a função de ratificar seu conservadorismo e seu autoritarismo: sustentam uma ideologia de classe com base na primazia da consciência dos que monopolizam o saber e o poder (o cientista, o filósofo, o industrial, o burocrata) cujas representações são qualificadas de autênticas e verdadeiras porque estariam refletindo a imagem do processo histórico e seus limites”.
Para a autora, mesmo quando os isebianos buscavam incorporar o marxismo em suas análises, seria com o objetivo de fortalecer os argumentos conservadores e autoritários presentes nas suas posições teóricas e políticas. Por isso, seria “preciso uma considerável paciência para atravessar a espessa camada de jargão filosófico, com mimetismo de conceitos que têm suas raízes na dialética e numa teoria revolucionária, para chegar ao conservadorismo e ao autoritarismo de Álvaro Vieira Pinto”. Aqui o preconceito contra um dos principais filósofos nacionalistas (de esquerda) brasileiros é evidente.
Assim, segundo ela, o ISEB estaria orientado “para montagem da dominação ideológica da burguesia ‘moderna’” e teria cumprido o “seu papel de legitimar o progresso econômico, convencendo o trabalhador a fazer de sua existência trabalho e só trabalho, fazendo-o crer que sua sujeição fosse liberdade, integrando-o ao capitalismo”.
Capa do livreto Violão de Rua, que fazia parte da coleção Cadernos do Povo Brasileiro.

Sobre a coleção Cadernos do Povo Brasileiro, publicada pela editora Civilização Brasileira sob direção de intelectuais ligados ao ISEB, afirmou a filosofa Marilena Chauí: “percebe-se que sua pedagogia é antes persuasão do que discussão e esclarecimento (…). Os autores não dizem explicitamente de onde e a partir do que estão falando, apresentando-se como se fossem portadores de uma fala universal cujas premissas são evidentes (…) cada um deles se enuncia como conclusão da verdade”. O povo brasileiro era apresentado pelos autores daquela instituição como “inconsciente, alienado, passivo, desorganizado, em suma, figura acabada da falsa consciência carecendo por isso de uma vanguarda que o oriente e conduza. Essa imagem faz com que os autores se dirijam ao povo como dirigentes dele, uma vez que na definição de vanguarda todos são unânimes em incluir os intelectuais e, portanto, a si mesmos”.
Embora o alvo principal desses críticos fosse a produção teórico-política do ISEB, eles voltam as suas baterias também contra outra organização, considerada a filha caçula da ideologia isebiana (e pecebista): o Centro Popular de Cultura da UNE. Esta relação (ISEB-CPC) não era de todo equivocada, contudo mereceria ser relativizada.
A experiência do CPC, como lembrou o professor Renato Ortiz, “estava teoricamente vinculada à filosofia isebiana, embora fosse uma radicalização à esquerda dessa perspectiva”. Isso levou que se alterasse o conteúdo de um dos conceitos centrais para ISEB: o de alienação. Deslocando o ponto de referência de Hegel (no ISEB) para Marx e Lukács (no CPC). Tema que não trataremos aqui.
A maioria das críticas feitas se concentrou no documento escrito por Carlos Estevam Martins em 1962: Anteprojeto de Manifesto do CPC. O autor, na época, era um jovem sociólogo oriundo das fileiras do ISEB e que acabou sendo eleito o primeiro presidente do CPC. Para muitos, esta era uma prova cabal da íntima relação existente entre o ISEB e o CPC – dois lados de uma mesma moeda populista.
A respeito da articulação intelectual/povo proposta naquele documento, afirmou Chauí: “para poder respeitar o povo, o artista do CPC não pode tomá-lo nem como parceiro político e cultural, nem como interlocutor igual: oscila, assim entre o desprezo pelo povo ‘fenomênico’ (que, no entanto, é descrito como o povo realmente existente) e a invenção do povo ‘essencial’, o herói do exército de libertação nacional e popular (que existe apenas na imaginação). Sem o fantasma do ‘bom povo’ por vir, o artista do CPC não teria sequer tido a lembrança de ‘ir ao povo’ e, sobretudo, de ‘optar por ser povo’”.
Novamente ao se referir à opção cepecista pelo povo, escreveu: “Os artistas do CPC não optaram por aquilo que outros, cristãos, costumam chamar de ‘comunidade de destino’, isto é, a partilha da existência em comum numa prática construída em comum, tanto assim que a arte do povo é caracterizada pelo anonimato do artista. Optaram por ser vanguarda do povo, condutores, dirigentes, educadores (…). No fundo, o missionário do CPC quer ser individualizado sem o anonimato do artista do povo e sem a pasteurização do artista de massa. Como vanguarda, parece conseguir os dois intentos”. Em outro texto ela afirmaria: “Esse iluminismo vanguardista e inconscientemente autoritário carrega em seu bojo uma concepção instrumental da cultura e do povo e uma de suas expressões lapidares encontra-se no Manifesto do CPC, de 1962”. 
Cartaz do filme Cinco vezes favela, produzido pelo CPC da UNE.

Seguindo a trilha aberta por Chauí, afirmou Heloísa Buarque de Hollanda: “Ao reivindicar para o intelectual um lugar ao lado do povo, não apenas se fez paternalista, mas terminou (…) por escamotear as diferenças de classes, homogeneizando conceitualmente uma multiplicidade de contradições e interesses”. Continuou a autora: “A linguagem do intelectual trans-vestido em povo traiu-se pelos signos de exagero e pela regressão estilizada a formas de expressão provinciais ou arcaicas”.
Estes autores pagavam um pesado tributo ao tempo histórico no qual viviam, marcado pela negação radical das experiências passadas que, segundo eles, teriam sido responsáveis pela derrota política e moral dos trabalhadores no fatídico primeiro de abril de 1964.  Era preciso começar do zero, abstraindo (ou subtraindo) a experiência comunista e trabalhista.
Vivíamos um período de acirrada disputa política (e ideológica) entre as novas correntes da esquerda, que vinham se projetando no cenário político nacional a partir da década de 1970, e a esquerda dita tradicional, notadamente o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). A “nova esquerda” ganhava maior impulso com as greves dos operários no ABC, passando a se organizar no Partido dos Trabalhadores (PT), considerado a expressão política mais autêntica da negação do populismo e burocratismo. “Nova Esquerda”, “novo sindicalismo”, “novos movimentos sociais” eram os temos em voga. Rejeição absoluta – portanto, não dialética – do passado do movimento operário e socialista brasileiro.
Outra das particularidades desta “nova esquerda” brasileira foi a subestimação, e mesmo negação, da chamada questão nacional tão cara às organizações tributárias de certa tradição do movimento comunista internacional. As bandeiras nacionais, e antiimperialistas, passaram a ser consideradas instrumentos a serviço da subordinação dos trabalhadores à ideologia política da burguesia que procurava encobrir a contradição fundamental da sociedade capitalista: a contradição entre o operário e o burguês. Nessa perspectiva ficava também em segundo plano a chamada questão democrática, embora ainda vivêssemos sob uma ditadura militar.
As suas atenções recaíram, fundamentalmente, sobre a luta econômica dos trabalhadores. Esta considerada o verdadeiro (e único) campo da luta de classes moderna. A nova esquerda tinha um forte viés autonomista e economicista, embora negasse isso e afirmasse combater tais concepções.
Outra noção contra a qual se batiam os seus porta-vozes – como vimos nas citações acima – era a de vanguarda, encarada como um verdadeiro “palavrão”. Tratava-se agora de re-valorizar o papel desempenhado pela ação espontânea das massas trabalhadoras até então sufocada pelas direções burocratizadas dos sindicatos oficiais e dos partidos da esquerda tradicional, estalinistas e social-democratas. A corrente autonomista ganhou relativa força no interior do PT. As suas teses (negação da vanguarda, valorização do espontaneísmo e antiteoricismo) encontraram guarida entre as jovens lideranças operárias. As ideias autonomistas, engendradas pelos intelectuais da “nova esquerda”, encontraram assim os seus portadores materiais: o “novo” sindicalismo brasileiro.
Acredito que somente agora, passadas várias décadas, é possível fazer um balanço mais equilibrado, menos apaixonado, dos difíceis e conturbados anos 1960 e das alternativas que a esquerda brasileira procurou construir. Especificamente no que se refere às críticas da “nova esquerda” ao projeto cultural do CPC, podemos afirmar que o grande limite delas está no fato de ter tentado reduzir toda experiência cepecista a um único documento: o Anteprojeto de Manifesto do CPC, redigido por Carlos Estevam Martins, que, como o próprio nome diz, foi apenas um “anteprojeto”.
Capa do disco O Povo Canta, produzido pelo CPC da UNE

Os críticos, em geral, não analisaram outros textos importantes para uma melhor compreensão do que tenha sido o CPC-UNE, como o livro de Ferreira Gullar, Cultura Posta em Questão; o de Carlos Estevam Martins A Questão da Cultura Popular, do qual o Anteprojeto era apenas um apêndice; os prefácios da série Violão de Rua (especialmente o último), redigidos pelo poeta comunista Moacyr Félix; o texto Do Arena ao CPC de Oduvaldo Vianna Filho.
A leitura do conjunto destes textos poderia demonstrar que não havia uma unidade, sem contradições, na compreensão do que deveria ser definido como “cultura popular” ou sobre quais os caminhos para a construção de um projeto de cultura nacional e popular no Brasil. Poderia demonstrar que o projeto cepecista era ele próprio perpassado de contradições, muitas delas engendradas pela própria prática cultural, intensa e rica, de seus integrantes.
As coisas tenderiam a se tornar ainda mais complexas quando estudados atentamente o conjunto da produção cepecista – teatro, poesia, cinema, música – e a ação dos jovens que compuseram os CPCs em todo o país. Feito isso, no final das contas, creio que uma das conclusões a que chegaríamos seria: foram os aspectos positivos (democráticos, populares e até revolucionários) que prevaleceram e são eles que deveriam ser resgatados pelas jovens gerações de artistas e intelectuais que ainda alimentam o velho sonho de ter um Brasil soberano e mais justo para o seu povo. Um Brasil socialista.

UM BALANÇO AUTOCRÍTICO

Procuraremos agora apresentar o balanço autocrítico realizado pelos principais dirigentes do CPC da UNE e, especialmente, buscaremos apreender quais rumos estavam sendo implementados pela direção do CPC no momento final de sua atuação e que não se encontram sistematizados nos documentos ou artigos da época, mas na cabeça dos seus militantes.
A quase totalidade de seus antigos membros ressaltou os aspectos positivos do movimento, mas reconheceu os limites daquele projeto. Insuficiências que já começavam a ser percebidas no final de 1963. Em depoimento, Carlos Estevam Martins esclareceu: “O propósito inicial era (…) mudar de um público de classe média para um público popular. Encontramos aí várias dificuldades; tínhamos a ilusão na época de que poderíamos entrar facilmente em contato com o povo, mas a decepção foi terrível”. A principal surpresa foi “a ausência do operário nos locais onde supúnhamos que ele deveria estar: os sindicatos. Montamos muitos espetáculos em sindicatos, mas não aparecia ninguém para assisti-los (…). A partir dessas decepções desenvolvemos aquilo que viria a ser chamado ‘Teatro de Rua’” (Arte em Revista, 1980:67).
Martins negou que o CPC tivesse apenas levado mensagens prontas, autoritariamente de cima para baixo. O contato com a população levava-os a alterar os seus esquemas pré-concebidos de arte popular. Talvez o melhor exemplo disso fosse a experiência que ele chamou de teatro camponês: “Joel Barcelos (…) liderou a equipe que se locomovia para o Estado do Rio. Os primeiros espetáculos (…) foram fracassos lamentáveis (…). Diante disso, Joel teve a feliz inspiração de rejeitar os textos prontos e exteriores à realidade local, sugerindo que o grupo chegasse ao local de apresentação uns dias antes e se dedicasse a estudar os problemas e os tipos humanos mais característicos do local (…). Isso funcionou otimamente”.
Nelson Cavaquinho e Cartola. Redescobertos pelo CPC.

Outros exemplos de valorização do popular, não apenas como expressão da alienação cultural, foram as descobertas e a divulgação, através das feiras lítero-musicais, de vários compositores da música popular de raiz, como Zé Keti, Nelson Cavaquinho e Cartola. “Esses artistas eram desconhecidos e o CPC os descobriu nos morros, trazendo-os para as feiras”, disse Estevam Martins.
O CPC, diferentemente do MPC de Pernambuco, não era um organismo de Estado e nem necessitava de verbas públicas para sobreviver. O próprio público deveria manter o seu funcionamento. Continua o entrevistado: “o nosso público, que iria usufruir de nossa criação cultural, é que deveria pagar por ela, pois só assim tiraríamos, como de fato tiramos, o Estado da jogada e não ficaríamos, como os sindicatos, atrelados ao Estado pelo umbigo da dependência econômica”. Continua ele, “intuitivamente, ou, quem sabe, forçado pelas circunstâncias, o CPC constituiu-se como órgão da sociedade civil, foi criado e sustentado por ela o tempo todo”.
O primeiro presidente do CPC rebateu, categoricamente, a tese amplamente difundida de que o CPC teria sido autoritário e populista. “Que autoritarismo é esse que sai pelo país afora criando e apoiando o funcionamento de entidades congêneres, cada uma das quais seguindo seus próprios caminhos e fazendo o que bem entendia, de acordo com suas próprias concepções a respeito do trabalho de cultura popular? E que populismo é esse que fez tudo o que sabia num esforço penosíssimo para criar CPCs nas organizações de massa (…) que eram dirigidos e desenvolvidos pelos próprios trabalhadores?”.
Martins apontou onde estaria o problema central nas críticas ao trabalho cepecista: elas partiriam sempre da leitura e generalização de alguns poucos textos produzidos pelos intelectuais da instituição. Estes críticos acreditavam que compreendê-los seria o equivalente a compreender a história da própria organização que se desejava criticar. “Este método, afirma, parece muito precário, simplesmente porque a vida não é igual aos textos e, no caso daquelas instituições, das quais participei, a vida foi incrivelmente diferente dos textos”.
A extensa produção realizada em tão pouco tempo era fruto do entusiasmo daqueles jovens que acreditavam que a revolução brasileira batia às portas. “O CPC surge daí, decorrente da ideia de que era necessário aumentar as fileiras, politizando as pessoas a toque de caixa, para engrossar e enraizar o movimento pela transformação estrutural da sociedade brasileira”. Assim, o artístico acabou sendo sacrificado no altar da agitação político-revolucionária. “Era preciso sacrificar o artístico? Claro que sim, porque as classes populares vão chegar ao poder logo, logo (…). A gente fazia uma peça com uma rapidez espantosa, peças que fizeram sucesso como o Auto dos 99% (…), fizemos em uma semana, cinco pessoas sentaram e fizeram o trabalho”. Esta tensão entre a priorização do artístico e a constituição de uma pedagogia política através da arte “percorreria toda história do CPC e teve momentos muito dramáticos”.
O CPC cometeu muitos erros, mas, em geral, os críticos contemporâneos não fizeram uma análise séria dessa experiência. Apenas expressaram uma vontade, ideologicamente fundada, de “cortar seus laços com o passado (…). As pessoas que começaram a fazer política recentemente preferem tomar uma atitude infantil de ruptura absoluta com o passado, como se eles fossem fazer agora algo inteiramente novo, algo que nunca existiu na face da terra (…). Cada geração opera dentro de um determinado horizonte histórico. As pessoas acham que estão agindo corretamente quando sentem que estão pensando no limite, quando vêem que não há ninguém fazendo mais ou melhor do que elas. Foi isso que aconteceu conosco. (…) Não havia ninguém propondo fazer outra coisa (…). O que é preciso entender é isso: nós estávamos atuando no limite do nosso tempo histórico”.
Outro fato que refutaria a acusação de que haveria uma relação autoritária dos artistas do CPC com o público é o de ter sido justamente estes que instituíram no país “a prática de jamais apresentar um espetáculo (…) sem que a apresentação (…) fosse sucedida por um debate com o público a respeito das ideias, informações e teses apresentadas aos espectadores. (…) O que acima de tudo nos interessava era que o público reagisse, falasse, criticasse, tomasse posições (…). Evidentemente nós levávamos ao público determinadas ideias e informações (…). Não vejo como chamar isso de paternalismo”.
“A nossa atuação ‘de cima para baixo’ (…) destinava-se a produzir ações de baixo para cima”. Ao povo caberia ser o agente principal das transformações sociais e não aos intelectuais. Outra das virtudes dos artistas do CPC é que nunca adotaram uma posição hipócrita em relação àqueles a quem se dirigia sua arte, “fazendo de conta” que não tinham suas próprias posições, que não apoiavam determinadas ideias ou concepções. Coisa comum na literatura e imprensa burguesa.
O poeta Ferreira Gullar, o terceiro presidente do CPC, em entrevista dada a Jalusa Barcellos, fez também o seu balanço crítico da produção cepecista, suas virtudes e seus defeitos. Gullar reconheceu que os membros do CPC já estavam em pleno processo de realização de uma autocrítica do trabalho realizado. Declarou ele: “quando veio o golpe, o CPC estava se reformulando. Certas posições que o CPC tinha adotado, como superestimar a questão ideológica em detrimento da qualidade artística, estavam sendo revistas. Na verdade, nós estávamos re-valorizando o trabalho artístico, tentando recuperar os padrões de qualidade”.
Mas, os defeitos que pudessem ter tido não invalidavam o fato de que “o CPC influiu sobre o cinema, a música, a poesia e o teatro brasileiro. É claro que não atingimos o nosso sonho, que era fazer a revolução, mas conseguimos, pelo menos, fazer com que a realidade brasileira merecesse mais atenção dos nossos artistas. Se há uma coisa que o CPC conseguiu foi isso: estimular o intelectual brasileiro, de forma geral, a pensar sobre a realidade do seu próprio país”.
Gullar se mostrou bastante amargo em relação às duras críticas recebidas por eles nas décadas de 1970 e 1980. Desabafou o poeta, quando ainda era de esquerda: “no Brasil se tem a mania de destruir aquilo que foi feito. Todo mundo quer começar tudo de novo. Em vez de querer guardar a experiência do passado, criticar essa experiência, salvar o que é de saudável, e com isso avançar, dizem não, nada do que foi feito presta, tudo foi uma besteira, todo mundo se iludiu”. E concluiu reforçando os aspectos positivos daquela experiência: “O que a gente tem que ver é que o CPC praticou erros sim, mas conseguiu também coisas importantes, como já vimos. Ao mesmo tempo em que influiu sobre a cultura brasileira, ele foi expressando uma determinada época da nossa história. E você pode ter certeza de que parte dos erros do CPC foi consequência daquele momento, daquela época”.
O poeta Moacyr Félix também mostrou sua discordância diante das acusações contra aquele projeto tão generoso e avançado. Para ele, “o CPC precisa ser mais estudado, mais meditado, porque é errado quando se fazem críticas apenas aos seus erros, sem ver seus significativos impulsos, embora ainda primários sob certos aspectos, de transformar a sociedade profundamente desumanizada (…). Essa simplificação em relação ao CPC me dói muito”.
Como os demais ele não negou os limites da experiência, mas afirmou que eles poderiam ter sido superados se tivesse tido mais tempo para se desenvolver: “É claro que no início o CPC pecou um pouco, talvez, na questão da qualidade. Mas as coisas foram se modificando (…). Eu acho que, se tivessem deixado, era para isso que o CPC caminharia. Ele encontraria o seu verdadeiro público. Mas eles cortaram tudo”. O autor defendeu, inclusive, o papel da política cultural do PCB naquele momento. “Era como uma lâmpada pequenina lá no fundo do quintal, no banheiro da empregada. Mas, às vezes, era a única lâmpada que havia naquele quintal escuro”. Neste caso, devemos concordar com ele.
Em sua última entrevista, dada a Ivo Cardoso, Oduvaldo Viana Filho – o Vianinha – reforçou o papel que do contato com os trabalhadores representou para autocrítica dos intelectuais cepecistas nos últimos anos do movimento. “Acho”, disse ele, “que a massa trabalhadora é que ajudou esses intelectuais a dimensionar melhor os problemas. Realmente havia muita aspiração, muita ingenuidade no CPC da UNE”. Os limites do trabalho com o público popular, e do projeto de elevação e aprofundamento do nível político e cultural do povo, estavam ligados às dificuldades de se manter a continuidade do trabalho junto a uma determinada comunidade. Apesar de ter realizado apresentações em quase todas as favelas do Rio de Janeiro não conseguiu realizar mais de uma, ou duas, apresentação em cada uma delas, ou seja, não havia continuidade.
“A paixão pelo encontro do intelectual com o povo”, seguiu Vianinha, “informou muito mais a nós do que aos trabalhadores com que nós entrávamos em contato (…). E nós estávamos lá, dávamos uma pequena contribuição através de um espetáculo, mas aprendíamos muito mais com eles. E fomos aprendendo e, ao mesmo tempo, fazendo um processo autocrítico”. E concluiu o seu depoimento reafirmando que “imediatamente antes de 64, o CPC já tinha chegado a essa conclusão no interior dele mesmo e começava a fazer um processo de transformação: ao invés da sua característica de dispersão, ele estava se concentrando na identificação do teatro, para ter um centro de atividade. Ao invés de ficar fazendo literatura de cordel (…) estávamos tentando fazer algo de maior profundidade (…). Então era, novamente, voltar ao trabalho intelectual de grande profundidade.”
Esta parece ser a opinião de todos os participantes do movimento: o CPC caminhava célere para uma transformação, no sentido de valorização do artístico, sem abandonar seu conteúdo democrático, nacional e popular. Existe também certa unidade de opinião quanto à necessidade de não se confundir o movimento de cultura popular, encabeçado pelo CPC, com os documentos e textos teóricos produzidos pelos seus integrantes. Todos apontavam para uma contradição entre teoria e prática, mesmo nos primeiros anos. Contradição que tendeu a se agravar com o passar dos anos. Na terceira e última parte do ensaio continuaremos com a nossa crítica à crítica ao CPC.

Nota: Recentemente, em 3 de janeiro, faleceu o dramaturgo Chico de Assis. Ele desempenhou um importante papel na vida cultural brasileira.  Ingressou no Teatro de Arena em 1958 e foi o coordenador do seu Primeiro Seminário de Dramaturgia. Participou do elenco de Eles não usam black-tie, que revolucionou o teatro brasileiro, e de Chapetuba Futebol Clube. Depois viajou para o Rio de Janeiro com o grupo e, com Vianinha, decidiu não regressar a São Paulo. Dirigiu a peça “A mais-valia vai acabar, seu Edgar!”. Participou ativamente da criação do CPC da UNE e de vários outros CPCs pelo país afora, incluindo no Nordeste. Escreveu O Testamento do Cangaceiro, encenado por Boal em 1961. No seu currículo coleciona cerca de 30 peças, entre elas: Missa Leiga e Ripió Lacraia. Mais tarde escreveria textos para novelas em diversas redes de TVs. Sua morte é uma perda para a cultura nacional.
A bibliografia virá na terceira e última parte.

* Esta versão texto foi originalmente apresentada no seminário Memória do Movimento Estudantil, realizado em dezembro de 2004 no TUCA/PUC-SP. Os trabalhos foram publicados em livro no ano seguinte pela editora Museu da República. O texto também foi publicado no livro Juventude, Cultura e políticas públicas, editado pela Anita Garibaldi e o Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ).

** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos pela Editora Anita Garibaldi.