A defesa do imperialismo do dólar
“A ‘necessidade’ de o Fed ter um papel ainda mais activo, enquanto os estrangeiros abrandam ainda mais a compra da nossa divisa, é para travar a corrida da desvalorização cambial que ocorre no mundo desenvolvido – uma corrida que está a precipitar-nos para o fim do actual regime de divisas”.
– Stephanie Pomboy, MacroMavens
“Seja o que for que os nossos correspondentes ocidentais nos digam,
podemos ver o que se está a passar. A NATO está a montar
descaradamente as suas forças na Europa de Leste,
incluindo as áreas do Mar Vermelho e do Mar Báltico.
As suas actividades operacionais e de treino em combate estão a aumentar”.
– Presidente russo Vladimir Putin
Se houvesse uma forma de os Estados Unidos poderem concretizar os seus objectivos a longo prazo e, simultaneamente, evitarem uma guerra com a Rússia, fa-lo-iam. Infelizmente, isso não é uma opção e por isso vai haver um confronto entre os dois adversários com armas nucleares em algum momento no futuro próximo.
Passo a explicar: A administração Obama está a tentar reequilibrar a política dos EUA mudando o foco da atenção do Médio Oriente para a Ásia, que, segundo se prevê, será a região de maior crescimento no próximo século. Chama-se a esta mudança de política o “pivô” para a Ásia. A fim de beneficiar do grande crescimento da Ásia, os EUA planeiam incrementar a sua presença neste continente, expandir as suas bases militares, reforçar alianças bilaterais e acordos comerciais e assumir o papel-chave da segurança regional. O objectivo nada secreto desta política é a “contenção” da China, ou seja, Washington quer preservar a sua posição de única superpotência mundial, controlando o crescimento explosivo da China. (Os EUA querem uma China fraca, dividida, que faça o que lhe mandarem).
A fim de atingir os seus objectivos na Ásia, os EUA precisam de empurrar a NATO mais para Leste, apertar o seu cerco à Rússia e controlar o fluxo do petróleo e do gás de Leste para Oeste. Estas são as pré-condições necessárias para instituir o domínio hegemónico no continente. E é por isso que a administração Obama está tão interessada em apoiar o governo torpe da junta de Kiev; é porque Washington precisa das tropas de choque neonazis de Poroshenko para arrastar a Rússia a um conflito na Ucrânia que esgote os seus recursos, desacredite Putin aos olhos dos seus parceiros comerciais da UE e crie o pretexto para posicionar a NATO na fronteira ocidental da Rússia.
A ideia de que o exército pró-Obama na Ucrânia está a defender a soberania do país é uma charlatanice pura. O que se passa nos bastidores é que os EUA estão a tentar combater um declínio económico irreversível e uma parte sempre contracção do PIB global, em permanente redução, através da força militar. Assistimos hoje na Ucrânia a uma versão do século XXI do Grande Jogo, implementado por fantasistas políticos e com dificuldades financeiras, que acham que podem atrasar o relógio para o tempo do apogeu pós II Guerra Mundial do Império americano, quando o mundo era a pérola da América. Graças a Deus, esse período acabou.
Não se esqueçam que as gloriosas forças armadas americanas passaram os últimos 13 anos a lutar no Afeganistão com pastores de cabras calçados com sandálias num conflito que, na melhor das hipóteses, pode ser caracterizado como um impasse. E agora a Casa Branca quer conquistar a Rússia?
Estão a ver a loucura desta política?
Foi por isso que o secretário da Defesa, Chuck Hagel, foi demitido na semana passada, porque não se mostrou suficientemente ansioso para prosseguir nesta política louca de reforçar as guerras no Afeganistão, no Iraque, na Síria e na Ucrânia. Toda a gente sabe que é verdade, a administração nem sequer tentou negá-lo. Preferem agarrar-se a palhaços enraivecidos, como Susan Rice e Samantha Power, do que a um veterano condecorado que tem mais credibilidade e inteligência no dedo mindinho do que toda a equipa de Segurança Nacional de Obama, em conjunto.
Portanto, Obama está agora totalmente rodeado por imbecis defensores da guerra, que subscrevem o mesmo conto de fadas de que os EUA vão reduzir a Rússia a pó, derrubar Assad, redesenhar o mapa do Médio Oriente, controlar o fluxo de gás e de petróleo do Médio Oriente para os mercados da UE, e estabelecer miríades de bases pela Ásia onde podem manter um controlo apertado sobre o crescimento da China.
Diga-me, caro leitor, isso não lhe parece um pouco improvável?
Claro que a claque de Obama pensa que tem tudo sob controle, porque, bem, porque é o que lhe têm dito para pensar e porque isso é o que os EUA têm de fazer se quiserem manter a sua posição excelsa enquanto única superpotência mundial, quando o seu significado económico no mundo está a declinar paulatinamente. Este é o problema. A nação excepcional está a tornar-se cada vez menos excepcional e é isso que tem preocupado a classe política, porque vêem os graffiti nas paredes e eles dizem: “Gozem enquanto dura, porque já não vão ser o número um por muito mais tempo”.
Os EUA também têm aliados nesta louca cruzada, nomeadamente Israel e a Arábia Saudita. Os sauditas têm sido especialmente prestimosos ultimamente, inundando o mercado com petróleo para fazer baixar os preços e esmagar a economia russa. (Na sexta-feira, os preços de referência do crude caíram ao nível do preço de há quatro anos, com o preço do crude Brent a baixar para os 69,11 dólares por barril). A administração Obama está a usar o clássico golpe duplo das sanções económicas e da quebra das receitas do petróleo para forçar Moscou a retirar-se da Crimeia, para que Washington possa avançar com o seu arsenal nuclear para uma distância mínima de Moscou. Aqui está algo do Guardian:
“Pensem em como a administração Obama vê o estado do mundo. Quer que Teerã desista do seu programa nuclear. Quer que Vladimir Putin se retire da Ucrânia oriental. Mas, depois das recentes experiências no Iraque e no Afeganistão, a Casa Branca não está interessada em pôr as botas americanas no terreno. Em vez disso, e com a ajuda do seu aliado saudita, Washington está a tentar baixar o preço do petróleo, inundando de crude um mercado já débil. Como os russos e os iranianos são profundamente dependentes das exportações do petróleo, a presunção é que assim será mais fácil lidar com eles.
John Kerry, o secretário de Estado dos EUA alegadamente fechou um acordo com o rei Abdullah em Setembro, segundo o qual os sauditas venderiam o crude abaixo do preço de mercado. Isso ajudaria a explicar porque é que o preço tem estado a descer numa altura em que, dadas as convulsões no Iraque e na Síria provocadas pelo ‘estado islâmico’, o natural seria que estivesse a subir”.
( Stakes are high as US plays the oil card against Iran and Russia , Larry Eliot, Guardian )
E há mais, de Patrick L. Smith, do Salon:
“Menos de uma semana depois da assinatura do Protocolo Minsk, Kerry fez uma viagem pouco noticiada a Jedá para se encontrar com o rei Abdullah na sua residência de Verão. Quando acabou por ser noticiada, foi justificada como fazendo parte da campanha de Kerry para garantir o apoio árabe na luta contra o ‘estado islâmico'”.
Alto lá. A visita não foi só por causa disso, é o que me dizem minhas fontes de confiança. A outra metade da visita teve a ver com o desejo inabalável de Washington de arruinar a economia russa. Para isso, Kerry disse aos sauditas 1) para aumentar a produção, e 2) para reduzir o preço do crude. Não se esqueçam destes números pertinentes: os sauditas precisam de um preço de menos de 30 dólares/barril para equilibrar o orçamento nacional, enquanto os russos precisam de 105 dólares
Pouco depois da visita de Kerry, os sauditas começaram de facto a aumentar a produção – em mais 100 mil barris por dia durante o resto de Setembro, segundo parece, para virem a aumentar ainda mais…
Pensem nisto. O Inverno está a chegar, há graves interrupções de produção no Iraque, na Nigéria, na Venezuela e na Líbia, há outros membros da OPEP aos gritos a pedir um alívio e os sauditas fazem movimentos de recuo que levam a uma maior descida dos preços? Façam as contas, pensando no itinerário oculto de Kerry e, para vos ajudar, ofereço-vos isto de uma fonte extremamente bem posicionada nos mercados de produtos: ‘Há agora mãos muito poderosas a pressionar o petróleo na oferta global, escreveu noutro dia essa fonte num e-mail”.
( What Really Happened in Beijing: Putin, Obama, Xi And The Back Story The Media Won’t Tell You , Patrick L. Smith, Salon)
A equipa de Obama conseguiu convencer os nossos bons amigalhaços, os sauditas, a inundar o mercado de petróleo, a baixar os preços e a precipitar a economia russa no abismo. Simultaneamente, os EUA intensificaram as sanções económicas, fizeram tudo o que puderam para sabotar o gasoduto South Stream da Gazprom (que contornaria a Ucrânia e forneceria o gás natural à Europa através dum caminho pelo Sul) e convenceu o parlamento ucraniano a leiloar 49 por cento dos direitos de leasing e das instalações de armazenagem subterrâneas a empresas estrangeiras pertencentes a privados.
Gostam disto? Assim, os EUA desencadearam uma guerra devastadora contra a Rússia que tem sido totalmente omitida pelos meios de comunicação ocidental. Estão surpreendidos?
Washington está determinado a bloquear ainda mais a integração económica da Rússia na União Europeia, a fim de fazer desabar a economia russa e pôr o capital estrangeiro a controlar a distribuição regional da energia. Tem tudo a ver com o eixo. Os rapazes do grande capital acham que os EUA têm que ser o eixo para a Ásia. para poderem manter o seu papel no próximo século. Todos estes ataques não provocados a Moscou baseiam-se nessa estratégia louca.
Mas as pessoas na UE não vão ficar irritadas quando não puderem obter a energia de que precisam (aos preços que querem) para os seus negócios e para aquecer a casa?
Washington acha que não. Washington acha que os seus aliados no Médio Oriente podem satisfazer as necessidades de energia da UE sem qualquer dificuldade. Vejam este trecho de um artigo do analista F. William Engdahl:
“… estão a aparecer pormenores dum novo segredo e de um acordo bastante estúpido Arábia Saudita-EUA sobre a Síria e o chamado ‘estado islâmico’. Envolve o controlo do petróleo e do gás de toda a região e o enfraquecimento da Rússia e do Irão, pela inundação saudita do mercado mundial com petróleo barato…
A 11 de Setembro, o secretário de estado Kerry encontrou-se com o rei saudita Abdullah no seu palácio do Mar Vermelho. O rei convidou o antigo chefe dos serviços secretos sauditas, o príncipe Bandar, para assistir. Foi preparado um acordo que previa o apoio saudita a ataques aéreos sírios contra o ISIS com a condição de Washington dar apoio aos sauditas para derrubar Assad, um firme aliado da Rússia e também do Irão, e um obstáculo aos planos sauditas e dos Emirados Árabes Unidos para controlar o mercado emergente do gás natural da UE e destruir o comércio lucrativo da Rússia com a UE. Uma notícia no Wall Street Journal fazia notar que tinha havido meses de trabalho nos bastidores entre os líderes americanos e árabes, que acordaram na necessidade de cooperar contra o ‘estado islâmico’ mas não como nem quando.
O processo deu aos sauditas a possibilidade de arrancar aos EUA o compromisso de reforçar o treino para os rebeldes lutarem contra o Sr. Assad, cuja queda os sauditas continuam a considerar uma prioridade absoluta”. ( The Secret Stupid Saudi-US Deal on Syria , F. William Engdahl, BFP)
Portanto, as guerras na Ucrânia e na Síria não são conflitos separados de modo algum. Fazem parte da mesma guerra global por recursos que os EUA têm desencadeado nos últimos 15 anos. Os americanos planeiam cortar o fluxo de gás russo e substitui-lo pelo gás do Qatar que atravessará a Síria e entrará no mercado da UE depois de Assad ser derrubado.
Eis o que se está a passar: os problemas da Síria começaram pouco depois de ela ter anunciado que ia participar de um “gasoduto islâmico” para transferir o gás natural do reservatório de gás de South Pars, ao largo da costa do Irão, através do Iraque e da Síria, que viria a ligar ao lucrativo mercado da Grécia e da UE. Segundo o autor Dmitri Minin:
“Um gasoduto a partir do Irão seria altamente lucrativo para a Síria. A Europa também ganharia com isso, mas há nitidamente no ocidente quem não goste da ideia. Os fornecedores de gás, aliados do ocidente no Golfo Pérsico, também não ficaram satisfeitos, nem a Turquia, o transportador de gás número um, porque ficaria fora do jogo”.
( The Geopolitics of Gas and the Syrian Crisis: Syrian “Opposition” Armed to Thwart Construction of Iran-Iraq-Syria Gas Pipeline , Dmitri Minin, Global Research)
Dois meses depois de Assad ter assinado o acordo com o Iraque e o Irão, rebentou a rebelião na Síria. É uma grande coincidência, não acham? É curioso como este tipo de coisas acontece tão frequentemente quando os líderes estrangeiros não afinam com Washington.
Mas há mais de Minin:
“O Qatar está a fazer tudo o que pode para torpedear a construção do gasoduto, incluindo armar os combatentes de oposição na Síria, muitos dos quais vêm da Arábia Saudita, do Paquistão e da Líbia…
O jornal árabe Al-Akhbar cita informações segundo as quais há um plano aprovado pelo governo dos EUA para criar um novo gasoduto para transportar gás de Qatar para a Europa, envolvendo a Turquia e Israel…
Este novo gasoduto deverá começar em Qatar, atravessar o território saudita e depois o território da Jordânia, ultrapassando assim o Iraque xiita, e chegar à Síria. Perto de Homs o gasoduto dividir-se-á em três direcções: para Lataquia, Trípoli no norte do Líbano, e Turquia. Homs, onde também há reservas de hidrocarbonetos, é a principal encruzilhada do projecto, e não é para admirar… que ocorra aí a luta mais feroz. O destino da Síria está a ser decidido aí. As partes do território sírio onde estão a operar os destacamentos de rebeldes, com o apoio dos EUA, Qatar e Turquia, ou seja, o Norte, Homs e os arredores de Damasco, coincidem com o caminho que o gasoduto deverá seguir para a Turquia e Trípoli, no Líbano. Uma comparação de um mapa das hostilidades armadas e um mapa da rota do gasoduto de Qatar indica um elo entre as actividades armadas e o desejo de controlar estes territórios sírios. Os aliados de Qatar estão a tentar atingir três objectivos: quebrar o monopólio do gás da Rússia na Europa; libertar a Turquia da sua dependência do gás iraniano; e dar a Israel a hipótese de exportar o seu gás para a Europa por terra a um custo menor”.
Que tal, gostam disto, mais uma coincidência: “A luta mais feroz (na Síria) está a ocorrer” onde há enormes “reservas de hidrocarbonetos” e ao longo da rota planeada para o gasoduto.
Portanto, o conflito na Síria não tem nada a ver com terrorismo. Trata-se do gás natural, de gasodutos concorrentes e do acesso aos mercados na UE. Trata-se de dinheiro e de poder. Toda essa história do ISIS é uma grande mistificação para esconder o que se está realmente a passar, que é uma guerra global pelos recursos, mais sangue para o petróleo.
Mas como é que os EUA beneficiam de tudo isto, afinal as receitas do gás não vão para Qatar e para os países por onde transita o gasoduto, em vez de irem para os EUA?
Claro que vão. Mas o gás também vai ser denominado em dólares que aumentarão brutalmente a procura do dólar americano, perpetuando assim o sistema de reciclagem do petrodólar, o que cria um grande mercado para a dívida dos EUA e que ajuda a manter as acções e títulos dos EUA na secção da hemorragia (apenas) nasal. É disto que se trata, de preservar a supremacia do dólar forçando as nações a manterem quantidades excessivas de dólares americanos para usar nas transacções de energia e para servir suas dívidas denominadas em dólares.
Enquanto Washington puder controlar os abastecimentos mundiais de energia e forçar o mundo a comerciar em dólares, pode gastar muito mais do que produz e não ser responsabilizado por isso. É como ter um cartão de crédito que nunca seja preciso reembolsar.
Isto é uma trapaça que o Tio Sam está preparado para defender com tudo o que tiver, incluindo bombas nucleares.
01/Dezembro/2014
[*] Mike Whitney vive no estado de Washington, EUA, [email protected] , colaborou em Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion , AK Press.
O original encontra-se em www.counterpunch.org/2014/12/01/defending-dollar-imperialism/ . Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .