As obras e a crise de abastecimento
O governo do Estado de São Paulo anunciou recentemente um conjunto de obras para enfrentar a crise hídrica na macrometrópole paulista, dentro e fora de seu território. Elas incluem reservatórios e suas interligações, novas captações de água superficial e subterrânea, e sistemas de tratamento de esgoto para abastecimento e adução.
Para essas obras consideradas emergenciais pelo governo estadual, foram estimados R$ 9,5 bilhões, dos quais R$ 6 bilhões deverão ser utilizados em parceria público-privada (PPP), sendo parte desses recursos originada do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Em função do vulto dos investimentos e do agravamento da situação, cabe avaliar a necessidade e importância dessas obras, considerando as causas dessa crise.
A crise e sua evolução
Estamos diante de um quadro de evidentes alterações climáticas que vem se agravando a cada ano. Segundo especialistas, estamos ingressando em um novo patamar climático, dominado por duas tendências: a de maior incidência de eventos climáticos extremos, combinando estiagens mais acentuadas e chuvas mais intensas em várias regiões, especialmente no Sudeste do país, e maior ocorrência de chuvas nas áreas urbanas mais densas, reduzindo as que se precipitariam, por exemplo, nos mananciais da Região Metropolitana de São Paulo.
Essa constatação, que não é nova, deveria ter sido incorporada à gestão das águas pelas autoridades estaduais, em especial pela crescente defasagem entre o sistema de abastecimento e sua demanda. Nessa situação, qualquer anomalia climática certamente levaria a uma grave crise.
Na situação a que chegamos, a vinda ou não de novas chuvas definirá o futuro imediato, sendo apenas possível, agora, prever três cenários. No primeiro, as chuvas ficariam abaixo, ou pouco acima da média anual da região, o que significaria o total desabastecimento, a partir de abril de 2015, considerando o período seco subsequente do inverno. No segundo, a atual estiagem teria continuidade durante todo o próximo verão, o que representaria uma catástrofe. No terceiro, caso tivéssemos chuvas excepcionalmente intensas e volumosas, superaríamos a crise desse período, embora com risco de ela se repetir no futuro.
Diante da ausência de, ao menos, um plano emergencial, ou de contingência, que o Estado vem se negando a apresentar, pode-se prever a proliferação de alternativas individuais de suprimento, estabelecendo-se uma perspectiva de desorganização, aumento da violência e convulsão social. Sendo a água imprescindível para a sobrevivência da população e a manutenção das atividades econômicas, já vem ocorrendo sua busca onde é possível, a qualquer preço, por meios legais ou não.
Enquanto isso, o governo paulista vem se preparando para possíveis manifestações e mesmo graves levantes sociais em razão da falta de água: a alta cúpula da Segurança Pública da Polícia Militar do Estado de São Paulo esteve recentemente nos Estados Unidos, onde manteve contato com a direção da Swat, para se preparar e montar esquemas de segurança, passando, portanto, a considerar a falta de água não como um problema social, mas de segurança pública.1
Na escassez que já se verifica, emerge a questão da qualidade da água consumida, pois, além das preocupações de especialistas quanto àquela fornecida na rede oficial, todas as fontes agora em disputa podem ter condições de potabilidade inaceitáveis. Diante disso, ainda não se tem resposta ou ao menos um programa abrangente para avaliação da qualidade das fontes em uso e daquelas a que a população recorrerá, no agravamento da crise. Diante desses riscos – sociais e policiais –, fica evidente a quais deles o governo estadual prefere se dedicar.
Mesmo com a redução do suprimento, que tem afetado principalmente a população mais pobre, a lucratividade da Sabesp não foi reduzida significativamente: no segundo trimestre de 2014, seu lucro líquido passou de R$ 361,7 milhões para R$ 302,4 milhões.2
As políticas e as obras
O conjunto de obras propostas pelo governo estadual segue a política adotada, há tempos, de buscar água de melhor qualidade em mananciais cada vez mais distantes, exigindo grandes investimentos. Isso é feito ao mesmo tempo que se ignora a crescente degradação dos mananciais em uso e as medidas de redução do consumo, conhecidas como “gestão de demanda”. Além dos mananciais, seguem sendo intensamente poluídos e inviabilizados para qualquer uso todos os córregos, rios e águas subterrâneas, pelos escassos resultados no tratamento de esgotos, apesar dos grandes dispêndios realizados desde os anos 1990.
É indispensável aproveitar adequadamente os recursos existentes em cada região, mesmo que a segurança hídrica evidencie a necessidade de captar água em áreas distantes.
Essa situação se agravou significativamente a partir de 2002, quando a empresa pública Sabesp passou a priorizar a obtenção de lucro. Com essa alteração, a água deixou de ser considerada bem público e recurso essencial para a sociedade, abandonando-se o foco na universalização dos serviços de saneamento básico. Nesse mesmo caminho, seguiu uma diretriz estratégica de atender à expansão econômica, beneficiando-se com a lucratividade do aumento do consumo, ignorando a suficiência de água para atender a essa crescente demanda. Além disso, o governo estadual e as prefeituras seguem incentivando a vinda de novos empreendimentos, muitos dos quais grandes consumidores de água, sacrificando o atendimento à população, que é a prioridade estabelecida em lei.
A insustentabilidade das obras
O volume de água que as obras propostas vão agregar ao sistema de abastecimento não será suficiente para atender às atuais necessidades. Por outro lado, essa reiterada política de buscar novos mananciais tem repercussões que não são administradas e estão na raiz de boa parte dos problemas hoje enfrentados.
Ao trazerem mais água para dentro do atual sistema de abastecimento, geram esgotos adicionais àqueles que não recebem tratamento; e os impactos socioambientais negativos das obras, dos reservatórios e da própria retirada da água de locais que já têm uma destinação para ela não são evitados ou reduzidos e vão se acumulando.
A degradação dos mananciais superficiais
Todos os mananciais superficiais, principalmente aqueles localizados na Grande São Paulo, encontram-se degradados, em maior ou menor grau, ameaçando o fornecimentode água. Eles sofrem os impactos da urbanização do entorno: intensos desmatamentos e precário sistema de tratamento de esgotos, entre outros.
A proteção dessas áreas de mananciais baseia-se na aplicação de leis de controle do uso do solo e proteção ambiental sobre as propriedades, predominantemente privadas. Esses regulamentos mais rígidos que os do entorno promovem uma desvalorização da terra em comparação aos territórios urbanos vizinhos, o que torna essas áreas preferenciais para diversas atividades econômicas, oficiais e clandestinas, incluindo sua utilização como local de moradia para famílias de baixa renda. Expulsas de localizações mais adequadas, essas populações têm suas já graves carências aumentadas pela “inapetência” dos poderes públicos de enfrentarem a especulação imobiliária e ampliarem os programas públicos de habitação.
Assim, sem ao menos fiscalizarem atividades e ocupações clandestinas, reduzirem o avanço sobre os remanescentes de vegetação ou recuperarem as áreas degradadas, os próprios órgãos públicos são responsáveis por esse quadro de degradação. Pior: boa parte dos projetos de infraestrutura vem sendo implantada pelos governos nos mananciais, em função do baixo custo e da “disponibilidade” dessas áreas, como é o caso do Rodoanel, que, ademais, incentiva a expansão urbana na região.
O Sistema Cantareira, que abastece grande parte das metrópoles de São Paulo e Campinas, já sofreu desmatamento de quase 80% de seu território – inclusive nas margens dos reservatórios –, além de conter núcleos urbanos e atividades industriais e agrícolas inadequadas. Ele está inserido numa área de proteção ambiental (APA Piracantareira, Lei Estadual n. 7.438/91) que, embora conte com uma legislação aprovada e um Conselho Gestor instalado, não possui ainda um plano de manejo, condição para permitir sua efetiva viabilização.
A intensa deterioração da Bacia do Guarapiranga, que avança progressiva e ininterruptamente, segue ameaçando seu uso para abastecimento e exigindo enormes custos para o tratamento de suas águas.
O mais comprometido é o reservatório Billings, submetido às mais variadas formas de deterioração, que incluem o recebimento das águas poluídas das bacias densamente urbanizadas, por meio do bombeamento do Rio Pinheiros, efetuado para controle de cheias. No lugar de um programa para sua preservação e recuperação, ele está sendo submetido a um “canibalismo”, mediante o aproveitamento de seus “braços” menos poluídos para abastecimento. É o caso, por exemplo, do braço do Taquacetuba, que está sendo bombeado para o reservatório Guarapiranga. Some-se a isso a interligação dos braços do Rio Pequeno ao do Rio Grande, prevista no pacote de obras do governo estadual.
A situação de abandono das águas subterrâneas
O consumo de águas subterrâneas na macrometrópole tem aumentado significativamente nos últimos anos e, agora, diante da crise de abastecimento, deverá assumir uma importância muito maior como alternativa estratégica e emergencial para o abastecimento. Essas águas são exploradas principalmente por meio de poços privados de indústrias, condomínios de luxo, hospitais, hotéis, irrigação e, cada vez mais, como “água de mesa engarrafada” – cujo mercado vem se expandindo de forma crescente e de modo cada vez mais inacessível às populações de baixa renda.
O abandono e a má gestão dessas águas não diferem do que se vê nos mananciais superficiais. Estima-se que na Bacia do Alto Tietê existam cerca de 10 mil poços, dos quais aproximadamente 70% são ilegais, não sujeitos a nenhum tipo de controle de exploração. Ou seja, ocorre uma apropriação privada e uso sem controle dessas águas, embora existam dispositivos legais, cabendo sua gestão ao Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado (Daee). A falta de informações sobre as principais características dos poços perfurados (mais da metade não cadastrada), aliada a uma atuação fiscalizadora e programas de monitoramento praticamente ausentes, impede um gerenciamento adequado, o que favorece a superexploração e contaminação dessas águas. A rigor, essas ações deveriam estar voltadas para uma gestão integrada com as águas superficiais, de modo a permitir também um planejamento articulado com as diretrizes de uso e ocupação do solo dos municípios da macrometrópole.
Gestão de demanda
A política de reduzir a quantidade de água utilizada dos mananciais superficiais e subterrâneos é essencial para a segurança hídrica na região. Essa política, também conhecida como “gestão de demanda”, consiste num conjunto de medidas voltadas à redução de todos os tipos de consumo. O governo paulista e, em particular, a Sabesp praticamente não operam nesse sentido, pois sua lucratividade vem do volume de água fornecida (vendida).
Caso houvesse interesse, há um conjunto de experiências internacionais que aplicaram diversas alternativas, que abrangem a introdução de registros individuais nos condomínios; a adoção de tecnologias que permitam uma diminuição da água utilizada nos equipamentos (como vasos sanitários e torneiras); a reciclagem de água nas residências; o tratamento e reutilização dos próprios efluentes nas indústrias; e o reúso da água para fins não potáveis. Algumas medidas isoladas de reúso foram tomadas pela Sabesp, porém, na medida em que ela condiciona sua expansão à venda da água tratada pelo reúso, seu interesse dependerá de seu preço tornar-se convidativo. Nessa mesma lógica de lucratividade à custa do saneamento, seguem sendo cobrados dos cidadãos e das empresas serviços de tratamento de esgotos não realizados.
A água e as políticas neoliberais
O quadro descrito mostra a gravidade da situação dos recursos hídricos e sua tendência a se agravar em consequência das alterações climáticas que vêm se manifestando com intensidade crescente, principalmente em razão das políticas neoliberais colocadas em prática a partir de 2002. Essas políticas já deram fartas demonstrações de que precisam ser abandonadas. Cabe lembrar que crises geram profundas transformações econômicas, sociais e ambientais, cujo ônus acaba sendo lançado sobre a população, sobretudo a de baixa renda. No entanto, do ponto de vista neoliberal, ela oferece “grandes e novas oportunidades” de negócios, tanto para obras como para serviços, especialmente no setor de gestão das águas, uma vez que se trata de um bem essencial de que todos são obrigados a dispor a qualquer preço e custo.
Delmar Matter, Renato Tagnin e José Prata
* Delmar Mattes, geólogo, consultor e professor aposentado da Escola de Engenharia de Lins, foi secretário de Vias Públicas e de Obras da Prefeitura de São Paulo na administração Luiza Erundina; Renato Tagnin, arquiteto e urbanista, mestre em engenharia civil e urbana pela Escola Politécnica da USP, é consultor e pesquisador; e José Prata é engenheiro e ativista ambiental. Os três são membros do Coletivo Curupira.
Claudomiro dos Santos
Claudomiro dos Santos é engenheiro cartógrafo e membro do Coletivo Curupira.
Ilustração: Reuters/Paulo Whitaker
1 Ver em: www.defesanet.com.br/crise/noticia/17522/Seca-em-Sao-Paulo-e-tratada-como-caso-de-seguranca-publica/
2 Folha de S.Paulo, 24 nov. 2014.
Publicado no Le Monde Diplomatique