Lênin e Ignácio Rangel
É de justo tom que a influência de Lênin deve ser bem assinalada com os tons de sua importância ao pensamento de Ignacio Rangel. Frequentemente ignorada e, mesmo, evitada. Como atualização do marxismo à época do imperialismo, Rangel a apropriou de forma que nesta influência encontra-se a raiz das discordâncias entre o pensador maranhense e seus contemporâneos marxistas e estruturalistas, principalmente no que tange a questão agrária e sua anexa dinâmica entre campo e cidade: se de um lado existia um “ato de fé” onde se percebe que o não-desenvolvimento (e do nosso “atraso”, “estagnação”, “dependência”, “inelasticidade da oferta de bens agrícolas” etc) de nossa agricultura era fator de retardamento ao desenvolvimento. Partindo de Lênin, Rangel pôs a nu o oposto deste mantra na determinação urbana/citadina ao processo (1).
Outro ponto leniniano está na relação imperialismo/desenvolvimento desigual (2), conforme o próprio Rangel: “Com efeito, já Lenin havia observado que o desenvolvimento desigual é uma lei do capitalismo. Contra a noção vulgar de um desenvolvimento fazendo-se com a ordem de uma parada militar, guardando cada unidade as distâncias regulamentares relativamente às que que a precedem ou sucedem, mostrou ele que, na vida real, as posições se trocam, se embaralham, mudam-se constantemente os balanços mundiais de força, passando inoptadamente um retardário, para uma posição de vanguarda, e vice-versa” (3). No concreto, isso significa capacidade de nosso país tirar grande proveito dos choques interimperialistas e as respectivas transformações históricas no âmbito da hegemonia no centro do sistema capitalista. É fato objetivo que ao capital industrial inglês interessava nossa independência de Portugal e, consequente, desenvolvimento do capitalismo comercial brasileiro. Da mesma forma aos EUA, o rompimento brasileiro com a Inglaterra – no âmbito da Revolução de 1930 – seria interessante, e diante, à mudança de formas de exportações de capitais que passou a ser concentrada em implantação de cadeias produtivas, dos EUA à periferia do sistema. Da mesma forma que o imperialismo passou a ser hostil à fusão de nosso capital industrial com o capital financeiro nacional, daí o Brasil estar concentrado no “combate à inflação” – pela via das mais altas taxas de juros do planeta um mais do mesmo aplaudido pelos setores mais conservadores da sociedade brasileira, notadamente o sistema financeiro e seu braço político, o oligopólio midiático (4).
Sobre a leitura de Rangel de O desenvolvimento do capitalismo na Rússia (5). É quase dispensável expor a relação entre o suposto leniniano no citado livro com a problemática central da economia brasileira. Na Rússia do final do século XIX o avanço do capitalismo irradiava profundas mudanças em sua estrutura industrial e agrária, tendo como manifestação mais perceptível no desmonte do complexo rural, minando as bases de um sonho de transição ao socialismo partindo do mir rural, como acreditavam os narodniks (populistas). Acreditavam os populistas sobre a impossibilidade de realização da mais-valia por ausência de pequenos produtores e o próprio mercado externo. A resposta de Lênin, baseando-se no desenvolvimento como um processo movido pela cidade, está no fato, para quem a que a diferenciação social (por exemplo, na via americana, onde pequenos produtores se transformam em granjeiros ou em trabalhadores assalariados) era fator central à formação do mercado interno, a especialização da agricultura (divisão social do trabalho) e as respectivas substituições naturais e artesanais de exportações.
Rangel nunca pôs a si a tarefa de explicar as razões do atraso brasileiro e de seu subdesenvolvimento. Colocou-se a tarefa de apontar os caminhos que explicativos de nosso dinamismo, os limites ao nosso desenvolvimento e onde se localizavam as possibilidades ao próximo passo (síntese) numa espiral que converteria o capitalismo industrial em capitalismo de Estado (via formação de um amplo aparelho de intermediação financeira nacional), daí ao socialismo (6) . De onde vem essa “empolgação” com o Brasil, típica dos intelectuais emergentes pós-Revolução de 1930 e em contraponto à visão pessimista de país de seus congêneres renascidos na trágica década de 1990?
Voltemos a Lênin, e de forma mais preciso ao uso da categoria de formação social em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Explicar como o capitalismo se desenvolvia, cercado de feudalismo, levou Lênin à elaboração de uma chamada lei objetiva da formação social intrínseca na relação entre atraso x dinamismo. O Brasil do final do final do século XVIII e nos séculos XIX e XX é expressão desta lei objetiva onde o escravismo não impediu o país de inundar o mundo de café e colocar o Brasil em franca concorrência com os EUA ao suprimento de algodão à Inglaterra. O século XX foi marcado pelo fato de o Brasil ter sido o país que mais cresceu no período e mesmo o neoliberalismo não impediu – de forma direta – a transformação da região nordeste na maior incubadora de empreendedores individuais do país. Longe de ser uma combinação de atraso x estagnação, de forma brilhante implantou-se no Brasil um moderno Departamento 1 Novo (indústria mecânica pesada) e um sofisticado sistema financeiro. As desigualdades persistem, são gritantes – fruto de uma via prussiana, industrialização sem reforma agrária. Porém, devem ser vista não sob o ângulo da “filosofia da miséria” e sim em dinâmica que deverá ser encerrada em outra vaga de crescimento acelerado, altas taxas de investimento e plena tomada de seu papel histórico pela iniciativa privada nacional e do Estado como regulador do comércio exterior e dos instrumentos cruciais ao processo de acumulação (câmbio, juros, crédito e sistema financeiro). É perceber a contradição gerada pelo processo, porém se se perder em tal. É concentração na síntese, não na antítese.
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Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ). Autor de China Hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado. Anita Garibaldi/EDUEPB. São Paulo. 2012. 456 p. Este artigo é parte de um estudo mais amplo e denso sobre a historicidade e atualidade do pensamento de Ignácio Rangel.
NOTAS:
(1) Sobre a determinação urbana, vale a seguinte afirmação de Marx: “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior.”. In. MARX, K.: Karl Marx’s Outline of the Critique of Political Economy (Grundrisse). Disponível em:https://www.marxists.org/archive/marx/works/1857/grundrisse/ch01.htm. Acessado a 03/11/2014. O mesmo se aplica à seguinte afirmação de Lênin: “Em todos os países capitalistas o desenvolvimento das cidades, fábricas, cidades industriais, terminais ferroviários, portos etc, provoca uma demanda crescente de produtos deste gênero (legumes), faz subir seus preços, aumenta o número de empresas agrícolas que os produzem para a venda. In, LENIN, V.: New data on the laws governing the development of capitalism in agriculture. Part One: Capitalism and agriculture in the United States of America. P. 75. Disponível em: http://www.marx2mao.com/Lenin/ND15.html. Acessado a 10/01/2015. Interessantes artigos de Lênin, escritos no final da década de 1890, sobre a ação das leis econômicas na agricultura, são: LENIN, V.: “On the so called market question”. In, LENIN V., Collected Works, 1 th English Edition. Progress Publishers. Moscou. 1972. Vol. 1 pp. 75-128; LENIN, V.: “New Economic Developments in Peasant Life”. In, LENIN V., Collected Works, 4 th English Edition. Progress Publishers. Moscou. 1972. Vol. 1 pp. 11-74. A Lênin ainda cabe um desenvolvimento das teses de Ricardo e Marx sobre as rendas diferencial e absoluta da terra, com ênfase na demonstração de como a renda absoluta pode travar o desenvolvimento técnico da agricultura e demonstrando a inconsequência de determinados enunciados vulgares param quem sobre uma suposta existência da “lei da fertilidade decrescente do solo”. Em Rangel, essa influência leniniana sobre as “rendas da terra” é perceptível na elaboração, por Rangel, da chamada 4ª renda da terra (“a terra como parâmetro financeiro”), com grande serventia à explicação da preço da terra no Brasil em tempos de adicção por Preferência pela Liquidez. Em: RANGEL, I. “Estrutura agrária, sociedade e Estado”. In, RANGEL, I.: Obras Reunidas. Vol. 2. Contraponto, RJ, 2005. P. 87-95.
(2) A seguinte passagem de Lênin é ilustrativa: “A desigualdade na taxa de expansão colonial é muito grande. (…) Por mais vigoroso que tenha sido nas últimas décadas o nivelamento do mundo, o nivelamento das condições econômicas e de vida em diferentes países, como o resultado da pressão da grande indústria, do comércio e do capital financeiro, diferenças consideráveis ainda existem; e entre as seis potencias mencionadas, vemos em primeiro lugar, jovens países capitalistas (América, Alemanha, Japão) cujo progresso tem sido extraordinariamente rápido; em segundo, países com um desenvolvimento capitalista antigo (França e Grã-Bretanha), que ultimamente tem progredido muito mais lentamente que os países previamente mencionados; e, em terceiro, um país que é economicamente mais atrasado (Rússia), onde o moderno capitalismo imperialista se encontra envolvido, por assim dizer, por uma rede particularmente fechada de relações pré-capitalistas.”. LENIN, V.: Imperialism, the highest stage of capitalism”. In, LENIN, V. Selected Works, 1 th English Edition. Progress Publishers. Moscou. 1963. Vol. 1 pp. 156. Disponível em: http://www.marxists.org/archive/lenin/works/1916/imp-hsc/. Acessado a 10/01/2015.
(3) RANGEL, I.: “Ciclo, tecnologia e crescimento”. In, RANGEL, I.: Obras Reunidas. Vol. 2. Contraponto, RJ, 2005. P. 271.
(4) O imperialismo tornou-se, em Rangel, uma importante categoria de análise na mesma proporção em que esse fenômeno apresentava sua faceta reatora e retardadora ao nosso projeto de desenvolvimento. Em A Inflação Brasileira (1962), a denúncia ao imperialismo aparece, já com muita força. O ápice desta denúncia pode ser observada em um artigo onde Rangel denuncia a contrarrevolução expressa na eleição de Collor de Mello (e seu “combate à inflação” à outrance), a subida de Gorbachev e Yeltsin ao poder na URSS com a ofensiva geral imperialista contra o socialismo após a chegada Reagan à presidência dos EUA. Em Rangel é claro o enunciado para quem “o imperialismo é inimigo principal dos povos” e, conforme Lênin, “a reação em toda linha” sendo o neoliberalismo a outra face desta mesma moeda, logo o identificando (imperialismo norteamericano) como o centro de outra vaga fascista no mundo. Sobre isto, ler: RANGEL, I. “Fogo, blindagem e conjuntura”. In, GEOSUL 5 (10). 1990. P. 7-19. Disponível em:https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/12746
(5) Trata-se de um livro de 580 páginas, amplificado ao público em 1899, onde cerca de 4000 dados estatísticos servem de rock bottom ao argumento do autor. Do ponto de vista do método da Economia Política, esta obra insere-se em um momento onde a matemática não se aplicava de forma arbitrária nos trabalhos econômicos, pois a estudo das múltiplas determinações do processo, partindo da observação/percepção dos fatos já era uma prática recorrente à época onde, independente da própria experiência, observava-se uma questão sair das raias da descrição à explicação.
(6) Um dos aspectos das grandes diferenças entre Rangel e Furtado é explicado pelo próprio Celso, em Brasil – a construção interrompida. Conforme segue: “O trabalho intelectual a que me dediquei durante toda a vida teve como ponto de partida o desejo, que me empolgou, de conhecer as razões de nosso atraso no processo de industrialização que marca a história contemporânea do final do século XVIII. Citado por: MAMIGONIAN, A: “Introdução ao pensamento de Ignacio Rangel”. In, GEOSUL 2 (3). 1987. P. 63-71. “Notas sobre as raízes e originalidade do pensamento de Ignacio Rangel”. In, MAMIGONIAN, A. (Org.): O pensamento de Ignacio Rangel. Fundação Banco do Brasil – CNPq – PPGG-UFSC. 1997. P 134. Maria da Conceição Tavares, demonstra essa diferença, conforme segue: “A esta altura, entre os chamados ‘economistas heterodoxos’, primava ainda, a interpretação estagnacionista, derivada de uma análise da tendência, projetada e entendida como o ‘limite’ do modelo de expansão anterior. Um dos poucos economistas brasileiros do meu conhecimento que não participava dessa visão era Inácio Rangel, ao qual devo as mais importantes intuições sobre a natureza central da acumulação naquele período de transição – a necessidade de transferir excedentes dos setores atrasados ou poucos dinâmicos para os de maior potencial de expansão. In, TAVARES. Maria da C.: Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Zahar. 6ª edição. Rio de Janeiro. p. 18.