O bruxo contra o comunista ou: o incômodo ceticismo de Machado de Assis
Publicado originalmente em Kriterion vol.48 no.115 Belo Horizonte 2007
http://dx.doi.org/10.1590/S0100-512X2007000100014
Palavras-chave: Machado de Assis; Octávio Brandão; Ceticismo Filosófico; Literatura Brasileira
ABSTRACT
The paper comments the skepticism present in the work of Joaquim Maria Machado de Assis according to Octávio Brandão’s criticism in O niilista Machado de Assis, published in 1958. Brandão equals the terms “skepticism”, “nihilism”, “cynicism” and “pessimism” to devalue Machado de Assis’ work. The article seeks to demonstrate that those terms denote very different philosophies; the article recognizes Machado’s skepticism to sustain that his artistic value derives precisely from this skepticism.
Keywords: Machado de Assis; Octávio Brandão; Philosophical Skepticism; Brazilian Literature
A divisão da obra machadiana em duas fases pode ser produtiva, se por ela se estuda o desdobramento da perspectiva cética, como faz Maia Neto (1994), ou se observamos a evidente modificação da técnica narrativa: na primeira fase predomina o narrador onisciente, em terceira pessoa, enquanto na segunda predomina o narrador personagem, em primeira pessoa. Entretanto, a vulgarização dessa divisão, em especial nos manuais didáticos, provoca uma outra dicotomia que “facilita”, no mau sentido do verbo, a reflexão – ou seja, propõe uma solução fácil e facilitadora que, na verdade, bloqueia análises mais reflexivas.
Em praticamente todos os manuais de história da literatura brasileira, a oposição “primeira fase vs segunda fase” se desdobra na oposição “romantismo (da primeira fase) vs realismo (da segunda fase)”. Ainda que Machado eventualmente corrobore a distinção em fases da sua própria obra, dividindo-a a partir do retiro, por razões médicas, que fez em Friburgo, ele seguramente contesta ter sido ou romântico ou realista. Deveria ser mais conhecida sua proverbial condenação ao realismo: “a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada”.1 Ainda assim, os autores dos livros didáticos, em conseqüência os professores do ensino médio, repisam a frágil dicotomia edição após edição, aula após aula, prova após prova, tentando convencer o país de que um dos maiores críticos do realismo enquanto escola teria sido não apenas um realista, mas até o principal representante do realismo brasileiro.
Considerar que os primeiros romances de Machado de Assis pertenciam à fase romântica deixa implícito que eles seriam inferiores, enquanto os segundos, por pertencerem à fase realista, seriam superiores – logo, que o realismo teria sido superior ao romantismo. Essa conclusão é um duplo equívoco. O realismo não é superior ao romantismo, primeiro, porque a superioridade em arte é sempre uma falácia, e segundo, porque o realismo não é na essência diferente do romantismo. Ambos os estilos são no fundo o mesmo estilo burguês, ocupado em fetichizar a realidade e denegar a imaginação: vistos da altura de hoje, romantismo e realismo “aproximam-se e descobrem a sua comum raiz realista”.2
No caso específico de Machado de Assis, a persistência no equívoco é mortal não apenas para a parte supostamente menor da sua obra, mas também para a parte supostamente maior, monumentalizada a ponto de se tornar inócua. Mesmo o melhor dos manuais, escrito por um dos melhores machadianos, assume que “o ponto mais alto e equilibrado da prosa realista brasileira acha-se na ficção de Machado de Assis”,3 embora, em extensa nota de rodapé, descarte opor uma segunda fase realista à primeira fase romântica. Em trabalho mais recente, Alfredo Bosi reitera que “Machado nunca foi, a rigor, um romântico (o Romantismo está às suas costas)”.4 Ao se referir aos contos e romances da primeira fase, considera que eles são inexatamente considerados como românticos: melhor seria dizê-los “de compromisso” ou “convencionais”. Logo a seguir, especifica o estilo de Machado, entendendo-o como um “realismo de sondagem moral”. A especificação ajuda a distinguir o escritor dos demais realistas do século, mas não deixa de contribuir um pouco para o equívoco.
Costa Lima reconhece, por óbvio, que Machado deparasse com duas poéticas, a romântica e a realista.5 Avança na reflexão, no entanto, quando entende que o rumo estabelecido pelo escritor se contrapunha às duas poéticas, simplesmente porque nenhuma se ajustava ao tipo de reflexão que veio desenvolver. Em termos subterrâneos e insidiosos, o realismo que denega a imaginação (em conseqüência, a própria ficção) se torna um valor em si, prejudicando a compreensão de qualquer literatura. Dizer-se “realista” implica anunciar-se capaz de mostrar a realidade “como ela é”, e não como determinada perspectiva a vê. Acreditar-se capaz de mostrar a realidade “como ela é”, por sua vez, implica uma hybris relativamente escandalosa, como se alguém se supusesse capaz de ver ou de deter a realidade-toda. Ora, como nenhuma perspectiva já se mostrou competente para ver ou deter a realidade-toda, vale dizer, tudo o que acontece, aconteceu ou acontecerá em todo e qualquer lugar, o que se pode dizer com alguma segurança é que aquilo a que chamamos “realidade” é, no mínimo, não-todo: a realidade é não-toda. Não será coincidência que o adjetivo “realista”, na fala cotidiana, seja carregado de pessimismo e negatividade: dizemos para outrem ser “mais realista” não quando queremos que esse outrem veja o lado “bom” da vida e das pessoas, mas sim quando queremos que ele não seja ingênuo e aprenda a enxergar o lado “mau” da vida e das pessoas.
Vários outros estudiosos contestam o atributo de “realista” a Machado de Assis, apoiando-se não apenas na sua obra, mas também nas manifestações explícitas do escritor e nas metáforas da própria obra, como a representação caricatural do sujeito realista na figura do personagem Simão Bacamarte, em O alienista. Correia Jr. afirma que o estudo dessa obra “tem necessariamente de levar em consideração o fato básico de que o escritor era um desafeto do realismo escola”.6 Ele reconhece que o afastamento da notação da realidade e a conseqüente desobediência aos ditames da verossimilhança fazem parte de um movimento maior que inclui o retorno à reflexão sobre a realidade, o que justificaria chamar a obra de realista. Entretanto, tal realismo “deve ser entendido enquanto efeito e não enquanto procedimento”.7 Ou seja, toda e qualquer obra, em qualquer tempo, pode ser classificada como “realista”, uma vez que faz parte da intenção do autor falar da ou expressar a realidade – mas isso torna a classificação, no melhor dos casos, circular e inócua. No pior dos casos, a classificação de realista se contamina com as marcas positivistas e denegadoras do século dezenove.
Por isso, a especificação de Bosi, atribuindo ao estilo machadiano a designação de “realismo de sondagem moral”, qualifica um pouco melhor a discussão. É o que também faz John Gledson, mas por outro ângulo: “encontram-se muitos críticos que nos dizem que Machado é realista [mas esse realismo] é sobretudo enganoso”.8 O epíteto de “realismo enganoso”, contraditório nos próprios termos, parece adequado para a obra de Machado, bem como para a melhor ficção.
Todavia, o meu tema não é o realismo ou o não-realismo de Machado de Assis, mas sim o ceticismo daquele que também foi chamado de “Bruxo do Cosme Velho”, em alusão ao bairro carioca onde viveu muito tempo e à sua surpreendente habilidade literária. Senti-me forçado, porém, a principiar a discussão pelos equívocos que rondam o suposto realismo do escritor porque esses equívocos se encontram na raiz dos equívocos maiores sobre a sua filosofia cética, raramente estudada com a atenção que merece. O cético, adepto da suspensão do juízo, seria o último dos mortais a acreditar que se possa mostrar a realidade ou a humanidade como elas são, foram ou serão. Como desconfia de todo dogmatismo e suspeita profundamente de toda utopia, a vida do cético, nos nossos tempos pós-românticos e pós-heróicos, não parece exatamente admirável. O individualismo moderno “tende a admirar pessoas que aceitam desafios e os enfrentam com sucesso”.9 Os céticos, porém, preferem evitar o confronto. Dizendo-o de maneira mais específica, os céticos, como o nosso Conselheiro Aires, preferem evitar a controvérsia, quer porque a controvérsia mais afasta a verdade do que a aproxima, quer porque não se sentem seguros para escolher qualquer um dos lados da questão.
Há um ceticismo epistemológico, desconfiando-se desde Pirro e Sócrates da possibilidade do conhecimento total e final, assim como há um ceticismo ético, relativizando-se princípios, normas e costumes de acordo com o tempo e o lugar. Ora, justamente o ceticismo sobre valores causa um impacto negativo maior do que o ceticismo epistemológico. Na academia, somos preparados para aceitar, quase como uma exigência da razão teórica, a dúvida sobre a possibilidade do conhecimento. Entretanto, “a dúvida sobre a existência, o sentido, a validade e a aplicabilidade de valores, sobretudo morais, nos parece decepcionante. É como se comumente esperássemos sempre da filosofia uma resposta positiva no campo do que poderíamos chamar de razão prática. A necessidade de combatermos a corrupção, a violência, a fome e a desigualdade social nos parecem óbvias. E se a filosofia nada pode nos dizer nesse campo, então finalmente para que serve?”.10
Eis porque a solução cética, se a podemos chamar de solução, coloca uma série de problemas morais, tanto para o ceticismo quanto para os autores identificados com ele. É o caso de Machado de Assis, volta e meia considerado acomodado, reacionário ou niilista, por conta da sua identificação e de seus personagens com a postura cética. Ainda que suas crônicas e romances veiculem uma crítica bastante ácida à sociedade e seus preconceitos, nunca se posicionou claramente a favor de mudanças, em geral, ou a favor da abolição da escravatura, em particular (apesar de mulato ele mesmo, enfatizariam seus detratores), quer porque não concordasse com as mudanças propostas, quer porque suspeitasse que elas provocariam problemas maiores do que os que tentavam solucionar (suspeita essa premonitória, como hoje sabemos). Além de Sílvio Romero e de Lima Barreto, o autor que mais atacou as posições céticas de Machado de Assis foi o militante marxista Octávio Brandão, com o livro intitulado O niilista Machado de Assis. Como se trata do ataque mais violento que Machado recebeu, tomo-o como o sintoma mais visível da perturbação que provoca, na inteligência e na pedagogia brasileiras, o nosso mais importante escritor.
Desde o título do seu livro, o ataque de Octávio Brandão é tão político quanto filosófico. Brandão reagia antes à estátua de Machado de Assis, isto é, às suas canonização e glorificação, do que propriamente ao escritor. Ele considerava a idolatria pelos super-homens, como Caxias e Pedro II, ou Rui Barbosa e Machado de Assis, um “erro tremendo”.11 Mas, para tentar demolir a estátua do Bruxo, lê sua obra com uma atenção que nem todos os admiradores tiveram. Reconhece sua qualidade intelectual: “foi um persistente trabalhador intelectual, um autodidata infatigável”.12 Admite também que, quando jovem, Machado se tenha revelado anticlerical, ou seja, que pelo menos em um aspecto importante ele mostrasse caráter revolucionário: “não se prestou a ser monstruosamente deformado pela clericalha”.13 Admira a nobreza do escritor que, na hora da morte, recusou a confissão e a extrema-unção para se converter ao catolicismo e assim “servir de pasto às hienas que sempre andam atrás de cadáveres”.14 Toma como emblema a resposta de Machado aos que lhe querem trazer um padre: “seria uma hipocrisia”. Aceita ainda que, nas crônicas, o escritor criticasse a política brasileira e internacional com lucidez crítica, e que, no terreno literário, apurasse a forma sem se deixar arrastar pela retórica balofa e pela bacharelice estéril: “não foi vazio e empolado”.15 Para ele, o escritor apresentava certos elementos do realismo crítico, portanto progressista, mostrando em sua obra aspectos negativos da monarquia escravista: “revelou a vida estreita e o triste destino dos homens nessa sociedade apodrecida. Deste modo, contribuiu objetivamente para desmascará-la”.16 Reconhece que Machado tenha se dedicado à língua, à literatura e à sua mulher, Carolina. Acusa-o, porém, de não ter amado “a Pátria e a Humanidade, a terra e o universo, a vida e a luta”.17
Nesse estilo apaixonado e grandiloqüente, o militante passa a atacar o escritor. Considera que em 1876, com a publicação de Helena, Machado de Assis se despede “do velho romantismo chorão, bolorento, decadente”, mas não abraça a literatura revolucionária, optando antes pelo mergulho nos amargos humoristas ingleses, afundando então “no pântano sombrio, pessimista e niilista, do Eclesiastes, de Pascal e Schopenhauer”.18 Podemos questionar, naturalmente, a atribuição de niilismo ao Eclesiastes, bem como aproximação tão estreita do escritor com os filósofos citados: Machado sem dúvida os leu, mas o fez crítica e ironicamente. No entanto, a leitura filosófica de Brandão é contaminada pela perspectiva marxista e pela postura combativa, tendendo a misturar todos os inimigos da causa em um mesmo saco.
Considera, por exemplo, que os personagens machadianos via de regra “tomavam atitudes de céticos e cínicos”,19 misturando duas posturas filosóficas bastante diversas e que, portanto, não poderiam conviver na mesma representação de um indivíduo. Lê todos os personagens machadianos como tipos profundamente negativos, sentindo falta de algo como um herói do povo. Vê Dom Casmurro como “frio, cético e cínico”, insistindo na mistura filosófica; enquanto Brás Cubas seria “cético, cínico e niilista”, adicionando então mais um elemento no seu incompatível milk-shake filosófico. Caracteriza o Conselheiro Aires, em particular, como “velho diplomata aposentado, parasita desse viveiro de parasitas que sempre foi, em geral, o Ministério das Relações Exteriores”.20 Fazendo eco àqueles que vêem no Conselheiro uma representação do próprio autor, diz que “o escritor foi, como a sua criatura e seu alter ego o Conselheiro Aires, um velho pessimista – maldoso, malicioso, maledicente”.21 Ao invés de perceber qualquer crítica social na construção do personagem, supõe que o romancista tenha feito um elogio do ócio e do tédio, em conseqüência, uma apologia da maldade e da maledicência, elementos que não resistem quer a uma leitura menos armada da obra de Machado, quer a uma passada rápida na sua vida de trabalho ininterrupto como escritor e funcionário público exemplar.
As personagens femininas não seriam melhores. Machado de Assis não teria visto “as nossas grandes mártires e heroínas. Só viu uma triste coleção de adúlteras e aventureiras, grandes burguesas e latifundiárias, escravas do sexo e da vida fútil. Sua obra é, pois, uma calúnia contra a mulher brasileira”.22 Para quem se acostumou a reconhecer em Lívia, de Ressurreição, e Capitu, de Dom Casmurro, duas das maiores figuras femininas da literatura brasileira, o ataque se afigura escandaloso, mas ainda assim o crítico insiste e generaliza: “as mulheres inventadas por Machado de Assis são vulgares adúlteras como Virgília e Capitu”.23 Para ele, não há dúvida de que Capitu fosse adúltera, logo, deve ser condenada e censurada, ou quiçá nunca houvesse sido concebida. Para ele, toda a obra machadiana “é uma flor da decadência – flor seca, estéril e venenosa. Não pode servir de guia, modelo, orientação às novas gerações brasileiras. O Brasil precisa de uma literatura máscula, viril, varonil, literatura de combate e libertação!”.24
O ponto de exclamação fechando sentença tão adolescente e lamentável serve-nos para reforçar o espanto com esse tipo de leitura, ainda mais assinada por um militante que também foi um intelectual importante na história brasileira do século vinte. Ele conseguia perceber como Machado recorria à ironia e à sátira, mas entendia que o escritor carioca aproveitava essas armas poderosas para, infelizmente, “condenar e expor ao ridículo toda a Humanidade, e não apenas as classes, os grupos e indivíduos dominantes”.25 Trai assim seu pensamento essencialista, logo, pouco dialético, admitindo que se combata pela ironia tão-somente as classes dominantes, como se as classes dominadas não padecessem dos mesmos males morais e, por isso mesmo, não contribuíssem de alguma maneira para a dominação, ou como se apenas os opressores tivessem o gene da opressão e os oprimidos, o gene da justiça. Nega, desse modo, a história das revoluções e suas reviravoltas ideológicas, aliás, muitas vezes mostradas por Machado de Assis nas crônicas e nos romances: o conhecido episódio da tabuleta do Custódio, em Esaú e Jacó, parece resumir tudo: regimes políticos e sistemas filosóficos têm valor equivalente a tabuletas de uma confeitaria.
Seria de se imaginar que o pensamento essencialista de Brandão o levasse a defender um patriotismo raso e, em conseqüência, como tantos antes dele, o obrigasse a acusar Machado de Assis de não fazer uma literatura verdadeiramente nacional. Entretanto, a condição de marxista e comunista, que por princípio teórico almeja a superação do nacionalismo burguês em nome de uma sociedade sem classes e, em última instância, sem pátria, não autorizaria esse desvio. Entretanto, novamente, a teoria, no Brasil, vira samba e parada de 7 de setembro, como se vê no delírio nacionalista de Brandão: “a Pátria é a terra profundamente amada, encantada e inebriante, cercada de um halo sublime, saturada do perfume da imortalidade!”.26
Seguem-se a essa frase vários outros parágrafos ufanistas da mesma espécie, obrigando-me a comparar o ilustre marxista ao conde Affonso Celso, que em 1900, quando Machado ainda era vivo, publicou Porque me ufano do meu país. O livro do conde tinha um subtítulo em inglês: “right or wrong, my country”. O subtítulo “certa ou errada, minha pátria”, além de formar um lema vicioso, torna-se particularmente engraçado por vir escrito em inglês, contrastando com livro dedicado à pátria brasileira. O conde escreveu que no Brasil até as laranjas, quando murcham nos galhos, reamadurecem dulcíssimas, exagerando sobre o que já era exagerado em 1500, quando o afirmou Pero Vaz de Caminha: “em se plantando, tudo dá”.27 Por isso, quando disséssemos “somos brasileiros”, deveríamos levantar a cabeça: “ufanemo-nos do que somos!”.28
Essa aproximação infeliz com o ufanismo do conde leva o militante Octávio Brandão, em outros aspectos revolucionário, a dedicar toda uma seção, adiante, à falta de patriotismo do escritor brasileiro: “Machado de Assis não amou a terra, a história, as tradições e a natureza do Brasil. Não batalhou pela libertação da Pátria, vilmente explorada e oprimida. Viveu à margem dos acontecimentos. […] Não sofreu pela Pátria. Não teve a altivez e o orgulho nacionais. Envenenou a consciência dos leitores com as idéias mais anti-sociais e antinacionais: o ceticismo, o pessimismo e o niilismo”.29 Mais adiante, repisa antiga acusação: “na realidade, Machado de Assis foi um fruto estranho ao Brasil. Tentou exprimir estados d’alma estranhos à nossa Pátria”.30
Para Octávio Brandão, parece só haver uma maneira de amar: euforicamente; e uma só maneira de pensar: coletivamente. Sua própria história de militância não autorizaria essa conclusão, porque ele se notabilizou pelas perseguições políticas que sofreu fora e dentro do Partido Comunista Brasileiro, naqueles anos seguidor da orientação estalinista. Ao lado da sua coerência de combatente, demonstrava uma relativa liberdade de pensamento que, infelizmente, não reconheceu em Machado de Assis, talvez porque o escritor houvesse demolido qualquer possibilidade de utopia humana: “na prática, o ceticismo significa compreensão ante o que tenha sido transmitido e desconfiança frente a toda utopia”.31 A obra de Machado confrontava a sua visão de mundo a tal ponto que ele precisou estudá-la para tentar destruí-la, através de um dos mais rancorosos trabalhos de crítica literária já escritos.
É importante relembrar Octávio Brandão como representante de um pensamento que de quando em quando se faz presente. Retornam periodicamente tanto esse tipo de crítica a Machado de Assis quanto a crítica equivalente às posições céticas. De hábito elas reaparecem com menos rancor, ou com o rancor melhor disfarçado, defendendo sempre aquela espécie de realismo que denega a ficção e a imaginação. Encontramos essa crítica, com toda a sua circularidade imanente, também no livro de Brandão. O crítico recorre a uma das mais importantes frases programáticas de Machado – “voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo” – para defender o realismo que o escritor queria excluir: não se poderia ignorar que “o realismo é exatamente um reflexo real da própria realidade”.32
Pelo menos ele reconhece que o escritor não apenas não era realista, como ainda combatia o realismo na teoria e na prática, isto é, em toda a sua obra. O crítico dá um bom passo à frente dos autores dos manuais didáticos que teimam em apresentar Machado de Assis como realista, mas vários passos atrás ao ficar preso ao elogio tautológico do realismo. Sua frase “o realismo é exatamente um reflexo real da própria realidade” pode ser traduzida como “a realidade mostrada pelo realismo é realmente muito realista”, ou: “A = A”. Já se lembrou que toda e qualquer obra, em qualquer tempo, pode ser classificada como realista, se faz parte da intenção do autor falar da ou expressar a realidade – mas isso torna a classificação, no melhor dos casos, inócua, porque circular, e no pior, presa ao positivismo mecanicista. O elogio do realismo expõe o elogio subjacente ao dogmatismo – mais especificamente, ao sistema dogmático e aos dogmas daquele que elogia.
O dogmatismo é forçosamente circular e vicioso: ele diz “pai é pai” para significar “você tem de me obedecer cegamente”; ele diz “a realidade é real” para significar “meu ponto de vista sobre a realidade é o único admissível”. E nenhum outro ponto de vista lhe é mais nocivo e ameaçador do que o ponto de vista cético. A definição que Brandão faz do ceticismo é, portanto, emblemática: “o ceticismo é uma corrente ‘filosófica’ que nega a possibilidade de conhecer com exatidão a vida e o universo. Levada para o terreno político e social, nega a possibilidade de transformar o mundo, liquidar a exploração e a opressão, a miséria e o obscurantismo. Duvida de tudo. Afunda, pois, na impotência total”.33 Para ele, tudo quanto existe de belo e grandioso no mundo seria obra de fé, convicção, entusiasmo, energia criadora: “nunca os céticos descobriram a América, tomaram de assalto a Bastilha, liquidaram o tzarismo e derrubaram o capitalismo. Jamais!”.34
A par da contraditória defesa da fé na pena de um militante marxista e ateu, infelizmente reforçando a suspeita freudiana (de que o comunismo não seria muito diferente de uma religião), suas palavras foram retomadas em crônica recente de jornal por influente crítico literário: “os céticos não fazem história, contemplam-na à distância, comodamente, instalados na sabedoria do não correr riscos. […] Fosse Deus cético e não teria sequer dito fiat. Nem Colombo teria partido para a América com aquelas três caravelas. O cético tem paralisia na alma. O irmão gêmeo do cético é o cínico”.35 Ambos os críticos parecem-se com os céticos que criticam, porque não vêem, à frente dos seus olhos, a obra de um cético: toda a obra de Joaquim Maria Machado de Assis.
Machado foi impotente? Ele precisou de fé? Ele não correu riscos? Ele teve “paralisia na alma”? Se em qualquer caso a resposta fosse positiva, não teria escrito o que escreveu, não seria lido como ainda é lido, não geraria uma fortuna crítica comparável apenas a de William Shakespeare. Como leitor, posso preferir a leitura de qualquer outro autor, mas não posso negar as evidências que surgem pelos mais diversos ângulos: Machado de Assis é o mais importante escritor brasileiro. Uma das razões principais pela qual podemos dizer isso é porque se trata, também, do escritor que, não saindo da sua cidade, soube falar em primeiro plano do ser humano (com o perdão da rima). A outra razão pela qual podemos dizer isso é porque ele foi, antes de tudo, um cético. Machado não é bom apesar de ser cético, ele é bom porque é cético – desde que se entenda ceticismo como o faço aqui: uma filosofia de investigação permanente, uma filosofia de proteção à dúvida, uma filosofia que dribla o caráter assertivo da língua e sua tendência ao dogmatismo através do humor e da ironia. Uma filosofia que, em conseqüência, coleciona inimigos da mais alta estirpe, como Octávio Brandão, que, em determinado momento do seu livro, declara, altissonante: “estas páginas constituem uma solene declaração de guerra ao ceticismo, ao pessimismo e ao niilismo”.36 A declaração é solene e redundante, porque ela se repete em tantas passagens do livro que o leitor perde a conta. Através da declaração ele não apenas mistura alhos filosóficos com bugalhos metafísicos, mas também reforça o senso comum a respeito do ceticismo, equivalendo-o à negatividade extremada do pessimismo e do niilismo para melhor denegar a positividade do primeiro.
O próprio Machado brincou com essa confusão, em crônica datada de 28 de fevereiro de 1897. O trecho é muito citado, mas usualmente interpretado à letra, ou seja, mal interpretado. Tentemos relê-lo:
Não achareis linha cética nestas minhas conversações dominicais. Se destes com alguma que se possa dizer pessimista, adverte que nada há mais oposto ao ceticismo. Achar que uma coisa é ruim, não é duvidar dela, mas afirmá-la. O verdadeiro cético não crê, como o dr. Pangloss, que os narizes se fizeram para os óculos, nem, como eu, que os óculos é que se fizeram para os narizes; o cético verdadeiro descrê de uns e de outros. Que economia de vidros e de defluxos, se eu pudesse ter esta opinião!37
Por essas palavras o escritor parece recusar a pecha de cético, admitindo, todavia, que possa ser considerado pessimista. O trecho é muito citado exatamente porque serve para descartar in limine o ceticismo incômodo de Machado. O tom, no entanto, é irônico.
O cronista diz que não vem escrevendo nenhuma linha cética. Não se refere à sua própria ficção, não diz que nunca escreveu alguma linha cética, mas que ao menos as suas crônicas dominicais não o seriam. Admite, porém, a acusação de pessimista. Não exatamente aceita a acusação de pessimista ou se confessa um pessimista, mas sim admite que possa haver alguma linha, das que escreve, que possa ser considerada pessimista. O torneio é sutil: ele aceita não a acusação, mas a possibilidade da acusação, para dela melhor escapar.
Escapar como? Distinguindo o ceticismo do pessimismo para desfazer o senso comum a respeito: enquanto o pessimismo tem certeza de que o mundo vai mal, o ceticismo prega apenas a suspensão do juízo perante o conflito de opiniões e filosofias. Se o otimista acha que os narizes se fizeram para os óculos porque estamos no melhor dos mundos, o pessimista entende que os óculos é que se fizeram para os narizes porque estamos no pior mundo possível, onde os óculos não se encaixam nos narizes mas têm de ser usados assim mesmo. O cético, porém, não seria nem pessimista nem otimista, mas apenas alguém que suspende suas crenças e certezas. O cético reconhece que é míope, como todos, mas prefere não usar óculos para fingir que está vendo a verdade.
A frase final da crônica, “se eu pudesse ter esta opinião!”, deixa claro que Machado gostaria de ser cético. Se, no entanto, admitirmos que o pensamento e a obra de Machado de Assis caracterizam-se por um ceticismo muito bem definido, já lemos a frase final de outro modo, entendendo que ela deixa claro que Machado gostaria de ser cético, mas como se já não o fosse. A ironia é sofisticada: o escritor apóia-se na própria ficção, no seu como se, para se defender da recorrente acusação de ceticismo. Chamam-no de cético? Ao invés de retrucar dizendo “não sou” ou então “sou, e daí?”, ele responde: “quem me dera…”.
Desse modo, menos do que se defender, ele defende o ceticismo e a dúvida suspensiva, condições da sua ficção.
Artigo recebido em dezembro de 2006 e aprovado em abril de 2007.
Professor do Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. [email protected]
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1 MACHADO DE ASSIS, 1879, p. 239. Nesta nota e nas demais, refiro-me sempre ao ano de publicação da obra citada.
2 ORTEGA Y GASSET, 1925, p. 28.
3 BOSI, 1970, p. 193.
4 BOSI, 2003, p. 79.
5 COSTA LIMA, 1981, p. 58.
6 CORREIA JR., 199, p. 95.
7 Ibidem, p. 109.
8 GLEDSON, 1986, p. 23.
9 LANDESMAN, 2002, p. 87.
10 MARCONDES, 1993, p. 49.
11 BRANDÃO, 1958, p. 9.
12 Ibidem, p. 13.
13 Ibidem, p. 13.
14 Ibidem, p. 17.
15 Ibidem, p. 15.
16 Ibidem, p. 15.
17 Ibidem, p. 16.
18 Ibidem, p. 30.
19 BRANDÃO, 1958, p. 33.
20 Idem.
21 Ibidem, p. 151.
22 Ibidem, p. 35.
23 Ibidem, p. 35.
24 Ibidem, p. 34.
25 BRANDÃO, 1958, p. 38.
26 Ibidem, p. 96.
27 CELSO, 1900: 46.
28 Ibidem, p. 198.
29 BRANDÃO, 1958, p. 98.
30 Ibidem, p. 103.
31 HORKHEIMER, 1938, p. 146.
32 BRANDÃO, 1958, p. 74.
33 Ibidem, p. 148.
34 BRANDÃO, 1958, p. 148.
35 SANT’ANNA, 1990.
36 BRANDÃO, 1958, p. 149.
37 Apud CASTELLO, 1969, p. 70.