No século dezenove apareceram muitos loucos que, fascinados pela personalidade do imperador dos franceses, tinham a mania de ser Napoleão Bonaparte: imitavam seus gestos, sua postura, e andavam com a mão sobre o estômago, como se também sofressem de úlcera.

No século vinte, o modelo mudou. Sob o impacto da “Revolução de Outubro”, ocorrida na Rússia em 1917, numerosos ativistas revolucionários, em vários países, fortemente impressionados pela vigorosa personalidade do líder russo, começaram a dar sinais de que estavam atacados pela mania de ser Lênin.

O Brasil tem diversos casos desse tipo. Um deles é particularmente interessante: o caso de Octávio Brandão, o intelectual que maior influência exerceu sobre o pensamento dos comunistas brasileiros durante a primeira década de existência do PCB.

Brandão se dedicou integralmente, com espírito generoso e radical, à luta em prol dos explorados e oprimidos, à organização dos trabalhadores, à revolução socialista. Foi preso várias vezes, perseguido, sofreu muito, mas suportou com estoicismo todas as agruras em nome da grandeza da sua causa: o comunismo.

Animava-o, desde 1919, o ideal de se tornar um herói. Escrevia que sua meta não consistia em fazer a vida boa ou má, “e sim em fazê-la heróica, isto é, vibrante, agitada, gloriosa”. Lênin arrebatou-o como exemplo vital; e ele se dispôs a ser o Lênin brasileiro. Desgraçadamente, contudo, foi um Lênin que não deu certo.

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Octávio Brandão conta a sua vida num livro intitulado Combates e batalhas, cujo primeiro volume foi lançado em 1978 pela editora Alfa-Omega. A importância do documento foi sublinhada por Paulo Sérgio Pinheiro no prefácio: através das recordações de Brandão, podemos obter elementos preciosos para o aprofundamento dos nossos estudos a respeito do movimento operário nas primeiras décadas da história republicana. Se tantos intelectuais ligados aos valores das classes dominantes nos trazem dados significativos, em suas memórias, para compreendermos as razões conservadoras da versão da nossa história que os de “cima” nos impingem, faltam-nos, contudo, elementos que nos esclareçam o que se passava na cabeça dos intelectuais comprometidos com a revolta e com os anseios dos de “baixo”. Por isso, o testemunho de um trabalhador como Octávio Brandão é precioso.

Mas a autobiografia, além do interesse que tem para o estudo da história dos trabalhadores, ainda apresenta o interesse literário de nos revelar umas das personalidades mais bizarras que a cultura nacional já produziu.

Brandão, nas memórias, fala de si mesmo, com freqüência, na terceira pessoa. Na infância, ele é “a criança”, que nas histórias de Carlos Magno e dos Doze Pares de França “bebeu lições de bravura e de heroísmo”. Depois, se torna “o jovem autor”, “o jovem escritor” que “não temia a derrota”, ou “o jovem intelectual” que denunciava as “bambochatas políticas” e desejava que “os frutos da sua alma” fossem “sugados por milhões de lábios sequiosos”, mas ficava frustrado por não encontrar entre os intelectuais das classes dominantes “calor e simpatia, apoio e estímulo, justiça e compreensão”.

Com certa candura, Brandão registra orgulhosamente o fato de que, “embora os outros alunos disputassem muito”, ele sempre conseguiu ser, no colégio, o primeiro da classe. E – em maré de autopromoção – assinala os méritos da “longa tese científica” que apresentou em 1914, ao se formar no curso de farmácia, dedicada às peculiaridades da erva-cidreira.

Uma característica que impressiona na personalidade de Brandão é a sus total ausência de senso de humor: ele se leva terrivelmente a sério, o tempo inteiro. A magnitude dos seus objetivos não lhe deixa espaço para a ligeireza inconseqüente de um sorriso despreocupado. Com toda a gravidade exigida pela situação, ele dirigia apelos aos povos do mundo, concitava os trabalhadores da Índia a se sublevarem contra a Grã-Bretanha, convidava os povos da Indochina à luta pela independência, chamava os povos da áfrica ao combate contra os “brancos” parasitas. Recomendava-lhes (ainda que dificilmente pudessem ouvi-lo): “Contrapor às vagas reacionárias os vagalhões revolucionários”.

Quando as condições de luta pioram, ele se encastela em suas convicções inabaláveis e as endurece ainda mais. O único alívio que o seu ascetismo lhe permite é a elaboração de versos parnasianos, cheios de retórica humanista e de brados de revolta. No Nordeste, pouco antes de vir para o Rio, enquanto trabalhava como farmacêutico, o revolucionário (ainda anarquista) escreveu numerosos poemas. Como ele mesmo diz: “Em 1918-1919, fui invadido por uma onda de lirismo”. Para termos uma idéia desse lirismo, Brandão transcreve um poema escrito quando se achava preso em Maceió, no qual podemos ler: “É glorioso marchar para a Cadeia / por defender o ideal em mil batalhas”.

Em seu interesse pela poesia, cultivado na leitura de traduções francesas de antigos poetas da Índia, Brandão deixa claro que repele “a sensualidade grosseira”. O revolucionário que enfrenta os preconceitos políticos da burguesia se transforma num conservador moralista quando se defronta com certos aspectos da mudança dos costumes; e se escandaliza diante de fenômenos que lhe parecem despudorados.

A psicanálise perturba-o, incomoda-o: “O freudismo é obra de maníacos do sexo. Tenta transformar o instinto sexual em força motriz da história”.

Sua chegada à então capital da república deixou-o consternado. Ele descreve suas impressões em termos sintomáticos: “O Rio de Janeiro era uma cidade de grande beleza e democratismo. Infelizmente, perdia-se nas piadas e futilidades, no carnaval e futebol, no jogo e no álcool, na macumba e espiritismo, nos excessos sexuais e dramas passionais. Daí, sofrimentos espantosos para o jovem escritor e cientista”.

Brandão foi um pioneiro. Denunciou, com firmeza, os males da exploração das riquezas minerais do solo brasileiro por empresas estrangeiras. Desde 1917, sustentava a tese de que existia petróleo no nosso subsolo. Acusava o ceticismo a respeito da existência do petróleo de ser cultivado por interesses imperialistas. Essa atitude de defesa das riquezas nacionais, entretanto, se misturava a uma postura político-cultural ingenuamente “nativista”.

Empolgado com a idéia de que os artistas deveriam se voltar para as coisas do Brasil, acabava por assumir a posição de “diretor de consciência” deles, advertindo-os de que não se entregassem à “amplificação de baboseiras européias”. Aos poetas, recomendava: “Poderão cantar o meu pau d’arco, a minha árvore de ouro; o angelim, tão roxo, tão nostálgico; a sapucaia, tão rósea, tão linda; o pindobal, tão majestoso”. E aos pintores determinava que pintassem “os cenários das minhas lagoas, os visgueiros admiráveis, os socós tristonhos, os piri-pirizais divinos”.

Na cabeça do revolucionário romântico se mesclavam causas importantes e motivações pitorescas, convicções amadurecidas e ardores provincianos. De um lado, um quadro de referências estreito, a recusa das “baboseiras européias”; de outro a conversão ao marxismo, a sensação de ser um “cidadão do mundo”, instalado no convívio com os grandes da cultura universal.

Brandão mandava seus folhetos para Maksim Górki, para Anatole France, para Henri Barbusse, para Rabindranath Tagore; e ficava triste ao constatar que eles não lhe respondiam. “Admirava os homens de tendências universais: Goethe, Shakespeare, Leonardo da Vinci”. Houve um período curto em que se entusiasmou pelo estilo de Nietzsche, porém os “erros terríveis” do pensador alemão logo o levaram à conclusão de que Nietzsche “foi um pobre homem doente e infeliz”.

Em sua auto-suficiência de autodidata, Brandão exalta os autores que lhe parecem “progressistas” e condena inapelavelmente ao opróbrio as expressões culturais que considera “reacionárias”. Aplaude Heráclito e Epicuro, Giordano Bruno e Spinosa, porém se orgulha de proclamar: “Nada aprendi com a Bíblia, Sócrates e Platão”. No Brasil, elogia Tobias Barreto e repele Machado de Assis.

A quintessência da dimensão universal a que podia chegar um ser humano, segundo Brandão, se achava em Lênin. “Lênin – escreveu – é a maior personalidade da História Universal em todos os tempos”. Perto de Lênin, o “Mestre sem par”, Alexandre o Grande, Júlio César, Carlos Magno e Napoleão Bonaparte passavam a ser figuras de segunda categoria. Comparada à influência de Lênin, empalideciam as influências de Aristóteles, Santo Tomás de Aquino e Kant.

A maior importância de Marx para o marxista Brandão consistia no fato de o pensador alemão ter inspirado a ação do “Mestre sen par” Lênin. Era normal, portanto, que o revolucionário brasileiro trouxesse, para a difusão das idéias de Marx no Brasil, um terrível mal-entendido, que até hoje produz efeitos deletérios: Brandão aderiu entusiasticamente à dialética sem tê-la entendido.

Para o autor de Agrarismo e industrialismo (1925), a dialética se reduzia à tríade “tese-antítese-síntese”, uma fórmula simplificadora muito difícil de ser encontrada em Hegel, mas que Brandão aplicava, avidamente, a tudo. O esquema triádico era aplicado, por exemplo, à interpretação do levante de 1924 e resultava no seguinte: Artur Bernardes, presidente da república, representante do agrarismo feudal, era a tese; Isidoro Dias Lopes, o general sublevado, representante da pequena-burguesia e do capital industrial, era a antítese; e a síntese, ainda por vir, era a revolução proletária, comunista.

Empolgado com sua “dialética”, Brandão submetia a trajetória do movimento operário no Brasil ao mesmo esquema triádico; e concluía: a tese era o período inicial, da hegemonia anarquista; a antítese era o período das perseguições desencadeadas por Epitácio pessoa; e a síntese, mais uma vez, era o período da revolução proletária, inaugurado pela fundação do PCB.

Brandão vai além e enquadra na “dialética” toda a história do Brasil, dividindo-a em dez ciclos e colocando-a a girar em torno da dicotomia “centralização-descentralização”. No primeiro ciclo, a tese é a descoberta do Brasil (a terra pertence a uma só pessoa, Dom Manuel, o Venturoso, rei de Portugal); a antítese é a descentralização provocada pela divisão em capitanias hereditárias; e a síntese é a nova centralização operada pelo governo central de Tomé de Souza. Seguem-se os demais ciclos, até o décimo, que se encerra com a síntese a ser promovida – sempre! – pela revolução proletária, socialista.

Por fim, sem se conter, Brandão se lança à mais ambiciosa das suas aplicações da “dialética”: para exemplificar a pujança do seu método, submete os vinte e seis séculos da história de Roma à articulação triádica. Surpreendentemente, ele divide a evolução da sociedade romana em apenas oito ciclos (número inferior ao dos ciclos da sociedade brasileira). No primeiro ciclo da história romana, a tese é o início do período dos reis de Roma, em 753 a.C.; a antítese é a república, proclamada em 510 a.C.; e a síntese é o império, que prevalece a partir de 29 a.C. Seguem-se os demais ciclos. E no oitavo e último a tese é a república burguesa liberal, a antítese é o fascismo de Mussolini (que então estava instalado no poder) e a síntese – que será a “síntese de todas as sínteses passadas” – é, naturalmente, o comunismo.

A influência de Octávio Brandão sobre os comunistas brasileiros foi imensa. O documento programático aprovado pelo PCB em seu segundo congresso, em 1926, se baseou no livro Agrarismo e industrialismo. O ascetismo de Brandão fascinava os militantes mais impressionáveis e, em certos momentos, valia como modelo de comportamento para eles.

Havia em Brandão uma autenticidade que o tornava digno de admiração. Sua abnegação chegava a comover. Sua revolta contra o elitismo da nossa sociedade revela uma coragem excepcional, nas condições de isolamento em que ele viveu. Brandão era audacioso em suas formulações e íntegro em seu caráter. Era, também, obviamente insensato. Mas a insensatez evidente de tantos dos seus critérios e de tantas das suas posições nos parece reveladora de uma situação marcada pela extrema fraqueza teórica e política do marxismo no Brasil. Brandão não pode ser transformado em bode expiatório: com seus exageros e unilateralidades, ela era a expressão de um momento extremamente difícil da história do pensamento de esquerda no Brasil.

Observando-o à distância, evocando-o, examinando-lhe o estilo exaltado de ação e pensamento, hoje, nos dar conta de como é alto o preço pago pela ilusão de nos levarmos exageradamente a sério, de pensarmos que sabemos mais do que efetivamente podemos saber, de pretendermos ser mais do que realmente podemos ser.

LEANDRO KONDER
Filósofo marxista brasileiro. Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor da Universidade Federal Fluminense e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Uma primeira versão deste artigo foi publicada na Folha de S. Paulo, 23-6-1985.