A professora Madalena Guasco Peixoto encerrou o debate da tarde com uma imersão na teoria, ao resgatar em autores marxistas a discussão sobre a contradição entre subjetividade e objetividade. Ao propor este tema pouco comum entre autores conhecidos por sua abordagem econômica dos fenômenos, a doutora em Educação da PUC-SP atualiza a reflexão sobre a formação da consciência política na sociedade capitalista, em tempos de dominação tecnológica de novas mídias.
A primeira marca da subjetivação do capitalismo é a naturalização da competição entre os indivíduos, conforme observam vários autores. A crise do capitalismo que atingiu o mundo desenvolvido, no entanto, também constrói uma subjetividade que interfere no modo como o proletariado vai reagir a mais esta crise civilizacional.
Embora seja um tema presente nos autores marxistas, desde o início, os reducionismos sobre objetividade e subjetividade prejudicaram um desenvolvimento avançado do tema. A Escola de Frankfurt criticou a tendência teórica de não considerar a importância do indivíduo e sua subjetividade na história.
A classe dominante universaliza suas ideias, mas Madalena enfatiza a necessidade de compreender como se faz isso por meio da mídia, das redes sociais, etc. “Uma ideia se transforma em comportamento, que universaliza as ideias.”
A educadora afirma que, desde os primórdios do liberalismo, a meritocracia impregna essa ideologia, a partir do pressuposto de que o indivíduo só vive em sociedade para exercer seu egoísmo. “Para o liberalismo, uma sociedade sem concorrência é absolutamente antinatural”, diz ela, complementando que os indivíduos devem ser premiados de forma diferente, conforme sua conduta.
Dentro dessa lógica, o liberalismo é contra os serviços públicos universais como a escola, pois oferece as mesmas oportunidades para todos. Um exemplo que evidencia a injustiça da meritocracia, se revela no modo como o Governo de São Paulo premia o professor que mora e trabalha em “bairro bom” da cidade, por ter um aproveitamento melhor de seus alunos (Ideb), enquanto o professor que se desloca a um bairro extremo e pobre da periferia, com toda a precariedade de suas condições fica abandonado pela Secretaria de Educação, por não obter resultados similares ao premiado.
Madalena conclui que o individuo é a forma de subjetivação no capitalismo, pois vende sua força de trabalho “individualmente” para se tornar consumidor. Ou seja, o homem se objetiva através do trabalho, no entanto, no capitalismo, como já demonstrou Karl Marx, o homem se aliena da força de seu trabalho, por não se reconhecer naquilo que ele próprio produz como riqueza. “O capitalismo tem como essencial sustentar a alienação como princípio de subjetivação do indivíduo”, salienta.
“A consciência nos constitui como indivíduo e como ser social e está na gênese de toda subjetividade individual”, diz ela, descrevendo o movimento dialético da consciência como algo que está inscrito no corpo do indivíduo, da mesma forma que só é consciência no contato com a sociedade.
A disputa pela hegemonia de consciência se dá a cada minuto, garante Madalena, referindo-se às contradições capitalistas que favorecem o debate humanista com a opinião pública. “Senão a gente volta pra casa. As classes dominantes capturam as consciências, mas nós também”.
Madalena afirma que tivemos uma crise do socialismo, “mas não a crise da subjetividade do socialismo.” É a subjetividade socialista que coloca todos os dias o capitalismo em cheque e produz um enorme movimento de contestação capitalista.
Após 1917, de acordo com ela, passa a existir essa consciência subjetiva da mudança social como um legado da revolução socialista. Foi assim, que o capitalismo reagiu com a instauração das políticas de “estado de bem estar social” com forte intervenção do estado na economia.
A satisfação dos indivíduos continua importante, mas eles devem ser dirigidos em relação aos desejos que terão. “O capitalismo decide o que o indivíduo tem que consumir”, afirma Madalena, referindo-se ao modo como a sociedade precisa consumir mais do que necessita para viver, para garantir o excedente do capital.
Por outro lado, o capitalismo criou subjetividades que possibilitam a resistência ao neoliberalismo, na medida em que o trabalho e seus benefícios são direitos fundamentais consolidados após as guerras. O neoliberalismo, por sua vez, estabelece uma subjetividade calcada na irracionalidade. Madalena mostra a evolução do racionalismo nas diversas teorias modernas, culminando na ruptura pós-moderna, em que “não se conhecem mais as coisas, pois só existem jogos de linguagem”, e não noções de verdade e de objetividade. “É como se todo o conhecimento produzido não tivesse existido”, diz ela, mencionando que o pós-modernismo transforma as grandes teorias, como o marxismo, em “narrativas falidas”.
Até mesmo o multiculturalismo, – estudos progressistas e avançados que lutam contra a desigualdade racial (e de gênero) -, foram apropriados pelo liberalismo norte-americano. É difícil perceber como a ideologia liberal impregna o pensamento multicultural, contaminando-o. “Ele se apropria de bandeiras avançadas, mas as devolve como aquilo que eles chamam de gestão democrática das escolas, identidade afro e hispano-americana, que mantém a discriminação sobre o ‘outro’, ou busca afirmar um inserção dos discriminados pelo mercado de consumo”.
“Segundo esse pós-modernismo, o mundo não está mais em transformação, pois vivemos um capitalismo perpétuo, que deixa o indivíduo a sua própria sorte, sem sequer garantia de trabalho, já que as novas tecnologias do capital dispensam a mão de obra do trabalhador”, descreve ela. Até mesmo os direitos conquistados são transferidos para o campo do consumo. Saúde, educação, férias, aposentadoria, tudo pode ser comprado. O que não é dito é o tamanho da massa populacional que não tem a menor condição de “consumir” esses direitos.
“No neoliberalismo, parecemos liberais porque temos que defender a cidadania”, ironiza ela, sobre o retrocesso que coloca os setores progressistas e revolucionários numa defensiva desesperada de tentar salvar conquistas mínimas e ultrapassadas. Neste quadro, o agravamento das desigualdade faz avançar ideias fascistas conservadoras e discriminadoras. Por outro lado, uma sociedade desigual causa contradições que provocam a luta social que o capitalismo sempre buscou esconder por meio da alienação.
As novas tecnologias também trazem novas subjetividades, ao sugerir valores individuais como liberdade de expressão e protagonismo coletivo. “A burguesia faz uma imagem de si mesma e do mundo, e faz isso cotidianamente para garantir uma aculturação da classe trabalhadora. Faz aculturação e precisa saber se deu certo, mas como tem a contradição, não vai saber, por isso faz aculturação o tempo todo”, diz ela, mostrando que nesse movimento, há a disputa pelas consciências.