POR OLIVAL FREIRE JR.

75 anos depois da publicação desta obra filosófica fundamental de V. I. Lênin, escrita no calor de uma renhida luta contra os que pretendiam negar o materialismo dialético e o materialismo histórico, suas geniais teses e conclusões guardam toda a atualidade. É o que demonstra este artigo.

Em maio de 1909 publicava-se em Moscou a obra Materialismo e Empiriocriticismo de V. I. Lênin. A motivação imediata para a redação deste livro Lênin encontrou na difusão, por escritores influentes no movimento operário russo, de idéias filosóficas que renegavam dialético e o materialismo histórico, suas geniais teses e conclusões guardam toda a atualidade. E o que demonstra este artigo princípios básicos do marxismo. Estes escritores, Bogdanov, Tchernov, entre outros, capitularam ante as dificuldades criadas pela derrota da revolução de 1905. No período de refluxo do movimento revolucionário, a reação czarista, além do terror desencadeado contra o movimento operário, passou à ofensiva também no terreno ideológico. Divulgava-se em larga escala o individualismo e o misticismo.

Atacava-se o marxismo e a revolução. Curvando-se a tais pressões Bogdanov e outros adotaram, e passaram a divulgar na Rússia, sob a capa de marxismo, idéias desenvolvidas na Europa por filósofos e cientistas como Mach Ostwald, Avenarius e Poincaré. Estas concepções, denominadas de empiriocriticismo, situavam-se no campo do idealismo, ainda que disfarçado.

Para escrever tal obra Lênin trabalhou durante 9 meses pesquisando nas bibliotecas de Genebra e do Museu Britânico. Citou, ao longo do texto, mais de 200 títulos pesquisados, finalizando o trabalho em outubro de 1908. O tempo não foi gasto em vão. Lênin passa em revista todas as tendências filosóficas de certa expressão àquela altura. Generaliza e desenvolve conceitos básicos da filosofia marxista, especialmente no terreno da teoria do conhecimento (gnosiologia) e da concepção do materialismo. Lênin revela as raízes do empiriocriticismo, denuncia esta filosofia como idealismo reacionário e beatice disfarçada (1) além de desmascarar por completo o caráter antimarxista dos “machistas” russos.

Além de um valor histórico universal, pois representa um ajuste de contas com todas as correntes idealistas desenvolvidas até então, o texto guarda grande atualidade sob dois aspectos. Primeiro como uma introdução ao estudo da filosofia marxista. No prefácio à segunda edição, em 1920, o próprio Lênin destacava o papel da obra como “introdução à filosofia do marxismo, ao materialismo dialético”. Aliás, até 1960, só na URSS foram impressos mais de 5 milhões de exemplares do livro.
E o estudo da filosofia é decisivo para todos os que lutam pela transformação social, pois o materialismo dialético e o materialismo histórico constituem o fundamento teórico do comunismo e os princípios teóricos do partido marxista. Vencer este desafio encerra dificuldades ainda maiores num país como o nosso, onde as massas populares estão submetidas a um enorme atraso cultural. É sintomático que o obscurantismo do regime militar implantado em 1964 tenha-se manifestado também neste terreno com a exclusão do ensino de filosofia (mesmo da filosofia conservadora) nas escolas de 2º grau.

Nesta obra Lênin generaliza e desenvolve conceitos básicos da filosofia marxista, revela as raízes do empiriocriticismo, denunciando esta filosofia como idealismo reacionário e beatice disfarçada
O segundo aspecto de atualidade da obra é que o pensamento de Mach exerceu influência predominante sobre os cientistas do nosso século. Segundo o físico irlandês J. D. Berna!, “a maioria dos físicos absorveu de tal maneira esse positivismo (de Mach) durante a sua educação que acabou por considerá-lo parte intrínseca da ciência, em vez de o verem como uma maneira engenhosa de escamotear o mundo objetivo em termos de idéias subjetivas” (2).

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Ernst Mach é o representante mais destacado da corrente filosófica criticada por Lênin. Físico e filósofo austríaco, Mach expôs suas teses numa série de obras escritas entre o final do século passado e o início deste. Considerava as coisas, o mundo real, como “complexos de sensações”. A sensação era o dado primário à qual estava subordinada tanto a consciência (o elemento psíquico) como a realidade material (o elemento físico). Em uma de suas obras, a Mecânica, Mach define o objeto da ciência: “as ciências da natureza só podem representar os complexos de elementos a que chamamos vulgarmente sensações. Trata-se das ligações existentes entre esses elementos. A ligação entre A (calor) e B (chama) é do domínio da física; a ligação entre A e N (nervos) é do domínio da fisiologia. Nem uma nem outra dessas ligações existe separadamente; estão sempre juntas. Não podemos abstrair de uma ou de outra senão momentaneamente. Parece, assim, que os processos puramente mecânicos são sempre simultaneamente processos fisiológicos” (3).

Ainda segundo Mach “o que chamamos matéria não é mais do que certo vínculo regular entre os elementos (sensações)”. Desta premissa idealista deduz-se que categorias como necessidade, casualidade, determinismo, espaço, tempo, derivam da nossa consciência, da lógica e não da realidade objetiva, do mundo exterior. Nesta linha, Mach afirmou, em 1872, que “não é obrigatório imaginar os elementos químicos num espaço de três dimensões (…) não há nenhuma necessidade de situar os objetos puramente mentais no espaço, quer dizer, em relação ao visível e ao tangível”.

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Nos três primeiros capítulos do livro Lênin sistematiza e desenvolve a teoria marxista do conhecimento comparando-a com o empiriocriticismo. Sustenta que a realidade objetiva, material, é o dado primário do mundo ao qual subordina-se a consciência. Afirma que as “sensações” refletem este mundo material existente independente de nossa consciência. Mostra que esta concepção, materialista, está apoiada no conhecimento acumulado pelas ciências da natureza. formula e responde afirmativamente as perguntas: A natureza existiu antes do homem? O homem pensa com o cérebro? Apoiado no estágio alcançado pelas ciências, afirma que “a Terra é uma realidade existindo fora de nós (…) a Terra existia em épocas em que não havia nem seres humanos, nem órgãos dos sentidos, nem matéria organizada sob uma forma superior”. Evidencia, pois, que a consciência, o pensamento, é produto de um órgão material, o cérebro humano. Enquanto os materialistas consideram as idéias uma propriedade da matéria altamente organizada, os idealistas invertem a questão: a matéria não existe “fora do espírito”, as coisas são “combinações de sensações” como dizem os empiriocriticistas.

Ao fazer uma exposição detalhada da teoria marxista do conhecimento, Lênin formula quatro conclusões básicas: 1) As coisas existem objetivamente, independentemente de nossa consciência; esta é um reflexo da realidade, o que possibilita o conhecimento do mundo. 2) Na natureza não há diferença de princípio entre a aparência e a essência. Somente há distinção entre o que é conhecido e o que ainda não o é. 3) O conhecimento vai da ignorância ao saber, do conhecimento incompleto, impreciso, ao conhecimento mais completo, mais preciso. 4) A existência de uma verdade objetiva está ligada ao critério marxista de verdade, a prática.

Ao sustentar que o homem pode conhecer o mundo e que a veracidade deste conhecimento é dada pela prática, Lênin realça que “vimos Marx e Engels basear a teoria materialista do conhecimento no critério da prática. Por fora da prática a questão de saber se o pensamento humano pode chegar a uma verdade objetiva é entregar-se à escolástica, diz Marx na sua segunda tese sobre Feuerbach… Em contrapartida, a prática é para Mach uma coisa, e a teoria do conhecimento outra; podemos considerá-las lado a lado sem que uma condicione a outra (…) Se o que a nossa prática confirma é uma verdade objetiva única, final, daí deriva que a única via conduzindo a essa verdade é a da ciência baseada na concepção materialista”.

O capítulo do livro de Lênin que tem como título “A revolução moderna nas ciências da natureza e o idealismo filosófico”, apesar de escrito em 1908 tem uma imensa importância para o entendimento do estágio das ciências naturais neste final de século. A física sofria àquela altura um considerável abalo, fruto de descobertas revolucionárias: a radioatividade, com a transformação de determinados elementos químicos em outros e liberação de partículas e de energia sob a forma de ondas eletromagnéticas, a descoberta do Raio-X e do elétron, a constatação experimental de que este não apresentava a massa mecânica no sentido clássico (massa como constante, independente do movimento) e a suposição de que o átomo seria composto exclusivamente de partículas com carga elétrica. Estas descobertas levaram muitos cientistas e filósofos a declarar que “a matéria desapareceu”, e mesmo a proclamar que “as modernas ciências da natureza enterravam o materialismo filosófico”.

O estudo da filosofia é decisivo para todos os que lutam pela transformação social, pois o materialismo dialético e o materialismo histórico constituem o fundamento teórico do comunismo e os princípios teóricos do partido comunista

Lênin analisa exaustivamente a situação na física e mostra que “quando os físicos dizem que ‘a matéria desaparece’ entendem por isso que as ciências da natureza reduziam até agora todos os resultados das investigações sobre o mundo físico a estes três conceitos últimos: a matéria, a eletricidade, o éter; ora, os dois últimos subsistem sozinhos daqui em diante, porque se pode reduzir a matéria à eletricidade (…) as ciências da natureza conduzem, pois, à unificação da matéria”.

Percebendo que o avanço das ciências naturais no final do século passado estava a exigir a distinção entre o conceito físico, tradicional de matéria, ligado à propriedade da massa mecânica clássica, do conceito filosófico de matéria, Lênin afirma que a declaração “a matéria desaparece”, apenas quer dizer que “desaparece” o limite até ao qual conhecíamos a matéria, e que nosso conhecimento se aprofunda; propriedades da matéria que nos pareciam antes absolutas, imutáveis, primordiais (impenetrabilidade, inércia, massa, etc) desaparecem, reconhecidas como relativas, inerentes apenas a certos estados da matéria. Porque a única “propriedade” da matéria, que o materialismo filosófico reconhece, é a de ser uma realidade objetiva, de existir fora da nossa consciência”. Podemos afirmar hoje que esta é a definição leninista de matéria.

Ao analisar as raízes gnosiológicas do “idealismo físico”, Lênin mostra que “a idéia fundamental desta escola da nova física, é a negação da real idade objetiva”. Alerta para o fato de que “os grandes progressos das ciências da natureza, a descoberta de elementos homogêneos e simples da matéria cujas leis do movimento são suscetíveis de uma expressão matemática, fazem esquecer a matéria aos matemáticos, ‘a matéria desaparece’ só subsistem equações”. A existência nos dias atuais de uma corrente idealista, neo-positivista, liderada pelo filósofo Bertrand Russell que incide precisamente na substituição da realidade material pela lógica matemática mostra a atual idade deste alerta.

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As ciências contemporâneas têm feito descobertas que provam a justeza do materialismo dialético. E mais que isto, só podem ser compreendidas à luz desta filosofia. Tal tem sido com a física nuclear, com a relatividade e a teoria quântica. Aliás é de se registrar que a crítica desenvolvida por filósofos e cientistas materialistas a determinadas interpretações idealistas dos fenômenos quânticos tem contribuído para o desenvolvimento posterior desta teoria.

Neste sentido é extremamente atual a formulação de Lênin: “o idealismo ‘físico’ dos nossos dias… mostra apenas que uma escola de cientistas, num ramo das ciências da natureza, caiu na filosofia reacionária, por não ter sabido elevar-se diretamente, de uma só vez, do materialismo metafísico ao materialismo dialético. A física contemporânea dá e dará este passo (…) não em linha reta, mas em ziguezague, não conscientemente mas espontaneamente, não guiada por um objetivo final nitidamente avistado, mas às apalpadelas, hesitando e, por vezes, até recuando. A física contemporânea está em trabalho de parto. Dá à luz o materialismo dialético. Parto doloroso. O ser vivo e viável é inevitavelmente acompanhado por alguns produtos mortos, restos destinados a serem evacuados com as impurezas. Todo o idealismo físico, toda a filosofia empiriocriticista (…) etc. estão entre estes restos”.

Vejamos algumas evidências do materialismo dialético reveladas pela física moderna:

1. A relatividade restrita, formulada por Einstein, suprimiu a hipótese da existência do éter como meio material de propagação das ondas eletromagnéticas. Mostrou que a massa mecânica clássica é de fato um aspecto particular de uma propriedade mais geral da matéria, a massa relativística ou simplesmente massa. Esta é função do estado de movimento da própria matéria e cresce com o aumento da velocidade. É também proporcional à massa clássica, denominada na teoria da relatividade de massa em repouso. Estabeleceu também que a toda quantidade de energia, sob qualquer forma, corresponde uma determinada massa; expressa na conhecida relação; E = mc2 (onde E é energia, m é massa e c é a velocidade da luz). E generalizou tanto a lei da conservação da massa quanto a lei da conservação e transformação da energia, já conhecidas no século passado, formulando a lei da conservação e transformação da massa/energia. Esta lei expressa no terreno científico a concepção materialista de que o movimento é o modo de existência da matéria. E uma lei extremamente geral. Tem-se verificado mesmo nos processos mais elementares ocorridos no interior do átomo.

2. A teoria quântica formulou a dualidade onda/partícula. Qualquer radiação eletromagnética (luz, por exemplo) tem, portanto, além de propriedades ondulatórias, características de partículas. O fóton é a partícula da luz. Ele é fisicamente caracterizado por uma determinada energia ou por um determinado momento. O momento é um traço típico das partículas e é dado pelo produto da massa pela velocidade. No caso do fóton o momento está associado à existência de sua massa relativística, que é função da freqüência da radiação. A radiação eletromagnética, conhecida antes da teoria quântica exclusivamente por suas propriedades ondulatórias, é matéria do ponto de vista filosófico, pois é uma realidade objetiva existente independentemente de nossa consciência. Mas a descoberta da natureza corpuscular da radiação é um fato que põe em relevo, no terreno estritamente científico, seu caráter material. E não só na teoria da física moderna fica evidente a material idade da radiação. No terreno experimental a física dispõe de evidências conclusivas da natureza material da radiação: a medida da pressão da radiação eletromagnética, o efeito Compton e a criação de partículas a partir de um fóton de elevada energia ou o inverso, a aniquilação de partículas gerando fótons, são alguns exemplos.

3. Já no início do século, quando os “idealistas” físicos ainda sustentavam que o elétron e o átomo eram conceitos “puros” sem conteúdo objetivo, a experimentação científica, através dos trabalhos de Thomson e J. Perrin, demonstrava de maneira irrefutável que tanto o átomo como o elétron são realidades objetivas.

Mas a física nuclear e a física de partículas reafirmaram esta materialidade num plano superior. Descobriu-se que o interior do átomo não tem uma estrutura simples, revelando mais uma vez a inesgotabilidade da matéria sustentada por Lênin. Nos dias de hoje existem identificadas cerca de duas centenas de partículas constituintes do átomo e de seu núcleo. A material idade destas partículas, seu caráter objetivo, é uma evidência experimental tão forte que ninguém se atreve a considerá-las como “simples conceitos”. A própria descoberta destas partículas tem sido um processo muitas vezes eminentemente empírico. Os modernos aceleradores de partículas têm dispositivos que registram fotograficamente as trajetórias e as interações destas partículas.

4. A tese marxista da prática como critério para medir a veracidade objetiva dos nossos conhecimentos é reforçada pelo fato de se terem criado novos ramos industriais (eletrônica e energia nuclear) apoiados no conhecimento do homem sobre a natureza do átomo e de seu núcleo.
A realidade objetiva, material, é o dado primário do mundo ao qual subordina-se a consciência

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No último capítulo de sua obra Materialismo e Empiriocriticismo, Lênin analisa a incursão dos “machistas” no terreno social. Põe a nu todo o reacionarismo desta filosofia. Analisa historicamente o sentido e o conteúdo da luta entre as duas correntes fundamentais da filosofia (o materialismo e o idealismo), esclarece uma importante questão, o espírito de partido em filosofia. Finaliza o livro afirmando, “é impossível não discernir por detrás da escolástica gnosiológica do empiriocriticismo, a luta dos partidos em filosofia, luta que traduz, em última análise, as tendências e a ideologia das classes inimigas na sociedade contemporânea. A filosofia moderna está tão impregnada de partido como a de há dois mil anos. Quaisquer que sejam as novas etiquetas ou a imparcialidade medíocre (…) o materialismo e o idealismo são efetivamente partidos em luta (…) o papel objetivo, o papel de classe do empiriocriticismo reduz-se inteiramente a servir os fideístas na sua luta contra o materialismo em geral e o materialismo histórico em particular”.

As descobertas das ciências contemporâneas só podem ser compreendidas à luz da filosofia do materialismo dialético
Decorridos 75 anos de sua publicação, Materialismo e Empiriocriticismo é obra de grande atualidade. Seja pelo rigor das suas teses, seja porque persiste, com maior acirramento, a luta entre partidos na filosofia. Este acirramento reflete o fato de que o capitalismo, na sua fase imperialista, agrava as contradições fundamentais do capitalismo pré imperialista e gera outras. Portanto, na luta contra o idealismo filosófico, largamente difundido nos dias de hoje, inclusive nos meios científicos, o estudo de Materialismo e Empiriocriticismo é uma arma insubstituível.

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Olival Freire Jr. é professor do Instituto de Física da Universidade da Bahia.

Notas
(1) Para escapar da censura czarista, Lênin denomina esta corrente de fideísta, isto é, doutrina que atribui à fé um papel decisivo no conhecimento.
(2) Ciência na História, vol. 1, Livro Horizonte, Lisboa, 1975.
(3) Apud Lênin, em Materialismo e Empiriocriticismo. Todas as citações de Lênin também são extraídas desta obra, de acordo com a 2ª edição da Editorial Estampa, Lisboa, 1975.

Fonte: revista Princípios