Lênin e o partido de vanguarda
AUGUSTO CÉSAR BUONICOREPUBLICADO EM 04.02.2015
Uma contribuição ao debate sobre a relação entre partido revolucionário e movimentos sociais
Não os existe a priori um modelo único de organização leninista. Nesta nova fase de luta pelo socialismo, no início do século XXI, é preciso que repensemos coletivamente a forma-partido. Nesse sentido, Lênin pode nos oferecer pistas preciosas.Talvez poucos tenham sido os marxistas que estudaram o problema do partido tanto quanto Lênin. No entanto, depois de sua morte, buscou-se reconstituir o seu pensamento, enrijecendo-o, dogmatizando-o. A teoria do partido político revolucionário leninista foi uma das principais vítimas desse processo de dogmatização. Por longas décadas buscou-se vender a idéia que existiu em Lênin um único modelo organizativo de partido.
Mas na obra de Lênin não existe a apologia de um modelo único e universal de organização revolucionária. Pelo contrário, nela existe inúmeros modelos e o desenvolvimento das suas propostas organizativas estava intimamente ligado ao desenvolvimento do próprio movimento revolucionário russo.
O PRIMEIRO LÊNIN
A primeira fase de produção teórica de Lênin é pouco conhecida, particularmente sua elaboração sobre o problema do partido e da relação entre consciência e espontaneidade. Na sua obra “Projeto e Explicação do Programa do Partido Social-Democrata” de 1895 ainda não afirmava, como faria posteriormente, que a consciência socialista deveria vir de fora da classe operária, trazida pelos intelectuais revolucionários. Neste trabalho de juventude a consciência de classe (revolucionária) nasceria diretamente, sem mediações, das próprias lutas operárias, viria, inclusive, da luta econômica contra os patrões dentro das fábricas. Através da luta econômica os operários necessariamente adquiririam a consciência política de classe socialista. O papel da Social Democracia seria de unir as lutas isoladas a fim de acelerar o processo de formação da consciência revolucionária e socialista dos trabalhadores.
Nesta obra afirmou: “a luta dos operários contra os fabricantes por suas necessidades quotidianas, por si sé e de maneira inevitável joga-os de encontro a problemas relativos ao Estado e a política, problemas referentes a como se governa o Estado russo, como se promulgam as leis e os regulamentos e a que interesses servem”. Esta citação parece deixar claro que a consciência nasceria de modo espontâneo e inevitável das lutas nas fábricas, a consciência socialista seria extraída dessa luta. As teses de Lênin, nesta fase, se aproximavam bastante de algumas formulações de Rosa de Luxemburgo com quem mais tarde travaria uma rica polêmica .
As formulações gerais de Lênin sobre a formação da consciência socialista e sobre o papel da organização revolucionária eram de origem economicista. Sem dúvida, o jovem Lênin estava de um lado influenciado pelas grandes greves operárias de 1895-1896 e, por outro, pelo “primitivismo” teórico dominante nos círculos social-democratas russos.
No entanto, mesmo nesta época, o jovem Lênin tinha uma concepção muito mais avançada da luta da social-democracia revolucionária do que os economicistas. Embora afirme que a consciência política socialista poderia nascer da luta econômica isto não concedia a luta econômica a centralidade no processo revolucionário. A centralidade continuava sendo a da luta política. A luta econômica culminará na luta política de classes, a sua forma superior.
No mesmo texto, afirmou Lênin: “a luta da classe operária russa por sua emancipação é uma luta política (…) Na luta da classe operária russa por sua emancipação, o principal obstáculo é o governo autocrático (…) Por isso, a luta da classe operária russa por sua emancipação impõe necessariamente a luta contra o poder ilimitado do governo autocrático”.
A INFLUÊNCIA DE KAUTSKY E A CRÍTICA AO ECONOMICISMO
As greves de 1895-1896, ao contrário do que previu Lênin, não produziram automaticamente nem a consciência socialista e nem uma organização partidária sólida. Os economicistas parece terem sido derrotados pelos fatos.
O resultado deste processo foi que Lênin rompeu definitivamente com as teses economicistas e passou a estudar com mais atenção o problema da relação entre a luta econômica-corporativa dos operários e o processo de constituição de uma consciência revolucionária e socialista. O problema do Partido começou a ganhar relevo na construção teórica de Lênin. Consolidou-se nele a idéia de que somente o Partido revolucionário poderia assegurar às lutas econômicas de massa uma saída política adequada.
Em 1899 escreveu “Uma tendência Regressiva na Social-Democracia” no qual antecipou algumas teses que estariam presentes em “Que Fazer?”. Afirmou Lênin: “Em todos os países europeus, o socialismo e o movimento operário, em seu início, existiram separadamente. O movimento operário não sendo iluminado pela ciência de vanguarda de sua época continuava reduzido, fracionado, sem adquirir nenhuma importância política. Por isto em todos os países vimos manifestar-se com força a tendência de fundir-se o socialismo como o movimento operário num único movimento social-democrático, essa função dá origem a uma forma superior do movimento operário e socialista, o Partido Social-Democrata independente”.
A influência de Kautsky nesta obra foi indubitável, todo este trecho baseou-se num comentário feito por Kautsky ao programa do Partido Social-Democrata Austríaco. Obra que também foi amplamente utilizada por Lênin na redação de “O Que Fazer?”. O chefe da social-democracia alemã passou a ser o principal alicerce teórico das críticas leninistas ao economicismo.
QUE FAZER?
Lênin começava então uma enérgica luta contra o economicismo e o espontaneísmo que solapava o processo de construção de um partido social-democrata revolucionário na Rússia. Em meio ao combate político-teórico ao economicismo escreveu a obra Que Fazer?.
O livro foi publicado em março de 1902. Lenin sabia que para construir um partido verdadeiramente revolucionário, que pudesse cumprir as tarefas colocada pela revolução, era preciso derrotar em todos os campos as concepções que negavam o papel da teoria revolucionária, da construção de uma sólida organização partidária e a necessidade de colocar no centro da tática e da estratégia socialista a luta política revolucionária contra a autocracia tzarista. A vitória do economicismo no interior do partido significaria a derrota da revolução russa.
A obra de Lênin foi um duro golpe na política dos economicistas que era predominante no seio da social-democracia russa entre os anos de 1900 e 1902. Ela foi um momento importante na elaboração da política de organização leninista e um dos marcos na construção do Partido bolchevique, da separação dos elementos “oportunistas” que se organizariam na corrente menchevique.
Lênin buscou analisar a complexa relação entre a o fator consciente e o movimento expontâneo das massas. Afirmou ele: “a classe operária, pelas suas próprias forças, não pode chegar senão a consciência sindical, isto é, a convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc.”
Lênin se posicionou firmemente contra o culto da espontaneidade do movimento operário desenvolvido pelos economicistas. Para ele “toda diminuição do papel do “elemento consciente”, do papel da social-democracia significa – quer se queira ou não – um reforço da ideologia burguesa sobre os operários (…) o desenvolvimento espontâneo do movimento operário resulta na subordinação à ideologia burguesa”
Essa tendência a subordinação à ideologia burguesa se deveu ao fato de que “cronologicamente, a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia socialista, está completamente elaborada e possui meios de difusão infinitamente maiores.”
Para Lênin a social-democracia dirigiria a luta da classe operária “não apenas para obter condições vantajosas na venda de força de trabalho, mas, também, pela abolição da ordem social que obriga os não possuidores a se venderem aos ricos”. Por isso os sociais-democratas não poderiam limitar-se a luta econômica, mas devia empreender, de maneira ativa, a educação política da classe operária. “A ‘luta econômica contra o governo’ constitui exatamente a política sindical, que ainda se encontra muito e muito longe da política social-democrata.”
Era, justamente, devido aos limites estruturais da luta econômica que a consciência política de classe não poderia nascer diretamente dela. A verdadeira consciência socialista não poderia nascer da relação direta, e exclusiva, entre operários e patrões dentro das fábricas. A consciência de classe era um reflexo da luta de classes no campo da política.
Afirmou Lênin: “Todo aquele que orienta a atenção, o espírito de observação e a consciência da classe operária exclusiva ou preponderantemente para ela própria não é social-democrata; pois para conhecer a si própria, de fato, a classe operária deve ter um conhecimento preciso das relações recíprocas de todas as classes da sociedade contemporânea”. Somente a burguesia interessaria reduzir a luta de classes apenas aos aspectos econômicos e sindicais. Por isso, para Lênin, “todo rebaixamento da política social-democrata ao nível da política sindical resume-se exatamente em preparar o terreno para fazer o movimento operário um instrumento da democracia burguesa”.
Portanto Lênin em “Que Fazer?” consolidou e aprofundou a sua guinada anti-economicista e forçou a nota no sentido contrário das afirmações feitas por ele mesmo em 1896. Agora, nada se poderia esperar do movimento espontâneo das massas.
Para Lênin de “Que Fazer”, fiel discípulo de Kautsky, a consciência socialista só poderia ser importada de fora da classe operária. As razões disto eram muito simples: a consciência socialista só pode surgir sobre a base de um profundo conhecimento científico que os operários por si só são incapazes de conseguir. Os portadores desta ciência não poderiam ser os operários mas os intelectuais revolucionários de origem burguesa e pequeno burguesa . Mas Lênin, em uma nota, ao contrário de Kautsky, teve o cuidado de matizar a afirmação anterior e reconhecer que os operários poderiam participar da elaboração teórica (ou da construção da consciência socialista) mas não o fariam como operários e sim como teóricos do socialismo, ou seja como intelectuais.
Levando ao limite algumas formulações presentes em “Que Fazer?”, poderíamos chegar a conclusão de que o proletariado não teria capacidade revolucionária autônoma e tenderia espontaneamente a fazer, eternamente, o trade-unionismo, submetendo-se passivamente a dominação política da burguesia.
Lênin parece que, em tese, admitia que o proletariado pudesse ser instintivamente revolucionário e que, até mesmo, tenderia para o socialismo. Mas, de fato, para ele, esta capacidade permaneceria “em potência” enquanto os intelectuais revolucionários não as trouxesse à tona. Esta concepção, fortemente influenciada por Kautsky, iria conhecer retificações nos anos seguintes, especialmente após a eclosão revolução russa de 1905.
UMA POLÊMICA INTERNACIONAL
O livro de Lênin de início não causou grande polêmica no seio da social-democracia européia. Ele havia sido aceito inclusive pelos que brevemente seriam chamados de mencheviques (minoria). Afinal existia um esforço comum na luta contra as correntes economicistas dentro do movimento operário russo. As coisas mudaram após o II Congresso da POSDR com a cisão em torno dos métodos de organização. Lênin corretamente defendeu que todo membro do partido não só deveria trabalhar sob a direção de uma organização social-democrata, como deveria necessariamente incorporar-se em uma delas. Lênin neste ponto foi derrotado no congresso, mas suas teses acabaram, na prática, sendo vitoriosas e foram incorporadas, como método de organização, inclusive pelos seus adversários.
Ao contrário do que afirmavam alguns críticos, nada havia de antidemocrático na proposta apresentada por Lênin. Elas visavam apenas a dar mais unidade e eficiência a ação política da social-democracia russa.
No entanto, haviam pelo menos dois outros pontos na proposta de organização leninistas, elaborada nestes anos, que foram alvos de duras críticas por parte de inúmeras personalidade da social-democracia russa e européia. Os dois pontos mais polêmicos eram: 1º) o modelo de organização que se assentava quase que exclusivamente em um corpo de revolucionários profissionais e na mais rígida centralização que, inclusive, restringia os processos eletivos de base. 2º) A afirmação da positividade da disciplina fabril imposta aos operários e que esta poderia se constituir como base da própria disciplina partidária.
Rosa de Luxemburgo fez sérias críticas ao modelo organizativo proposto por Lênin baseado nos revolucionários profissionais, que manteriam uma relação de exterioridade com a classe operária. Mas, acredito, que Rosa e Lênin não falavam a mesma língua. E o principal motivo para isto era o fato de que eles viviam em situações econômicas, política e sociais totalmente distintas. Rosa julgava Lênin, muitas vezes, tendo como ponto de referência a Alemanha e não a Rússia tzarista.
A fórmula organizativa de Lênin – partido de quadros ou de revolucionários profissionais, relativização da democracia interna – correspondia plenamente a realidade russa, na qual imperava a mais irrestrita ilegalidade (inclusive para os sindicatos classistas). A realidade russa impunha a necessidade de um partido clandestino, centralizado e dificultava a realização de um amplo debate interno. A desobediência a qualquer dos pontos da normas organizativas e de segurança poderia significar a queda de parte, ou mesmo de toda, organização partidária. Para Lênin os métodos de organização e a abrangência da democracia partidária não poderiam ser considerados abstratamente.
Outro fato que não podemos esquecer era a inexistência, pelo menos até 1905, de um amplo movimento das massas operárias na Rússia. E por fim, não me parece que Lênin buscasse transformar este tipo de organização, indispensável para uma conjuntura de forte repressão e marcada pela inexistência de um amplo e profundo movimento de massas, como um modelo que deveria ser mantido em outras conjunturas.
Embora na crítica de Rosa pudéssemos constatar, em certas afirmações isoladas, uma compreensão avançada sobre a relação dialética entre consciência e espontaneidade, devemos constatar que, no conjunto, ela também não respondeu satisfatoriamente o problema.
Rosa, no geral, ficou presa a uma análise fatalista do capitalismo. As contradições objetivas do sistema levariam automaticamente que o proletariado tomasse consciência da necessidade de derrubá-lo, a consciência nasceria espontaneamente da luta econômica e social, a luta econômica tenderia a se transformar em luta política de classes. Esta concepção tendeu a subestimar o papel da vanguarda, do partido político revolucionário. Um erro que Lênin não cometeu.
A REVISÃO LENINISTA
Os acontecimentos revolucionários de 1905 contribuíram de maneira decisiva para a alteração das concepções de Lênin sobre a relação entre consciência socialista e espontaneidade operária e, portanto, sobre a própria política de organização da social-democracia russa..
A tarefa da vanguarda passou a ser, segundo ele, dirigir a “atividade revolucionária espontânea das massas”, ou seja, as massas deixadas a sua própria sorte poderia produzir algo mais que apenas o trade-unionismo. A história, que é o desenvolvimento da luta de classes, fez Lênin retificar e precisar algumas de suas teses presentes em Que Fazer?.
A ação espontânea das massas operárias urbanas, sem direção de uma vanguarda socialista, fez nascer os sovietes nos quais os bolcheviques, num primeiro momento, se recusaram a participar. Lênin, do seu exílio, conclamou os seus partidários a aderirem aos sovietes, criação das massas insurgentes e o embrião de um novo poder operário .
Lênin escreveu: “Não nos isolemos do povo revolucionário, mas submetamo-nos a seu veredicto cada um de nossos passos, cada uma das nossas decisões, apoiamo-nos por inteiro, e exclusivamente, na livre iniciativa que emana das próprias massas trabalhadoras”. Curiosamente essa carta não foi publicada na Rússia, a fração bolchevique ainda estava impregnada pelo espírito de “Que fazer?” e por um certo preconceito em relação a ação espontânea das massas. No entanto a proposta de Lênin acabou prevalecendo.
Não foi sem um forte tom de ironia que Lênin chegou a afirmar: “Nós, dirigentes do proletariado social-democrata, nos comportamos como aquele chefe militar que havia disposto seus regimentos de um modo tão absurdo que a maior parte de nossas tropas não participou ativamente da batalha.”
Entre 1906 e 1907 Lênin reforçou esta guinada e enfatizou o caráter revolucionário das organizações soviéticas e a capacidade das massas elevar-se espontaneamente ao nível da luta política revolucionária. Ainda durante o ano de 1906 fazendo um balanço da experiência dos Sovietes afirmou: “Não foi nenhuma teoria, nenhum apelo, nem a tática ou a doutrina de nenhum partido, mas a força da própria realidade que levou um órgão sem partido, de massas, a necessidade de desencadear a insurreição e os converteu em seu órgão”. Dois meses depois Lênin repetiu o mesmo juízo: “Passando por cima das organizações, a luta proletária das massas converteu-se em revolução. Da greve política geral, o movimento elevou-se ao grau superior”.
Enquanto no “Que Fazer?” era a direção que indicava as massas, espontaneamente trade-unionista, o caminho da revolução aqui eram as massas, espontaneamente revolucionárias, que indicavam o caminho da revolução aos dirigentes socialistas. A nova conjuntura impôs também um novo modelo de organização. Lênin passou a defender uma estrutura mais democrática e elástica, reivindicou a entrada massiva de operários nas fileiras social-democratas, a fim de transformar “em vida os cinzentos esquemas dos intelectuais”; propôs que houvesse para cada intelectual várias centenas de operários.
A conclusão da guinada se deu com a publicação do texto “Doze Anos”, em 1906, prólogo de uma compilação de textos escritos pelo próprio Lênin entre 1895 e 1906. A primeira parte foi dedicada, quase exclusivamente, a “esclarecer” o papel desempenhado por “Que Fazer?”. Nele, respondendo aos seus críticos, afirmou: “O erro principal dos que hoje polemizam com o Que Fazer? consiste em desligar por completo esta obra de uma situação histórica determinada, de um período histórico concreto do desenvolvimento de nosso partido que passou a muito tempo. Que Fazer? é um resumo da tática e da política iskristas em matéria de organização durante os anos de 1901 e 1902. Um resumo, nem mais e nem menos.” e continuou: “nem mesmo no II Congresso pensei em erigir as suas formulações em algo programático, em princípios especiais”.
Referindo-se a questão da democracia interna no partido afirmou Lênin: “O Partido Social Democrata aproveitou-se antes de qualquer outro o período passageiro de liberdade para introduzir nas suas fileiras a estrutura democrática ideal, de uma organização aberta, como um sistema eletivo, com uma representação nos congressos proporcional ao número de membros organizados. Esse procedimento não foi utilizado pelos social-revolucionários e nem pelos cadetes, os mais organizados dos partidos burgueses, quase legal e que possui recursos financeiros infinitamente maiores e tem a possibilidade de utilizar a imprensa.”
Lênin expressou neste texto sua opinião de que não se devia atribuir a obra de 1903 um caráter teórico geral, nem mesmo tendo em vista a realidade russa pós-1905. No entanto, Lênin defendeu firmemente a política organizativa adotada em 1903 afirmando ter ela cumprido um papel de garantir a vitória sobre o economicismo, principal obstáculo a construção de um partido centralizado e forte em nível nacional. Afirmou ele: “fiz a distorção da nota distorcida pelos economicistas e precisamente porque corrigi energicamente as deformações, a minha nota será sempre mais justa”.
Quando Lênin propugnou que o Partido se abrisse para o ingresso de milhares de combatentes operários, houve duras resistências por parte de bolcheviques mais doutrinários, que acreditavam que a abertura do Partido levaria a sua descaracterização como Partido de Vanguarda.
Lênin reagiu com rigor a tais teses: “No momento presente, quando o heróico proletariado demonstrou na prática a sua disposição (…) de lutar num espírito puramente social-democrata, seria por demais ridículo duvidar de que os operários que ingressam no nosso partido (…) não sejam social-democratras em 99% dos casos. A classe operária é social-democrata por instinto, de modo espontâneo, e em dez longos anos de trabalho, a social-democracia fez muito, muitíssimo, para converter essa espontaneidade em consciência.”
Continuou Lênin: “A clandestinidade desmorona-se. Avante, com maior audácia, empunhai as novas armas, entregai-as a gente nova, ampliai as vossas bases de apoio, chamai todos os operários social-democratas, incorporando-os às centenas e aos milhares à fileiras das organizações do partido! (…) Deixemos de lado todo o espírito mesquinho na necessária reforma do partido: comecemos sem dilação a nova via”
No entanto, a revolução de 1905 foi derrotada e o movimento operário e socialista entrou num período de refluxo. O impacto da derrota da revolução e da repressão que se seguiu podem ser aquilatados pela evolução do número de militantes em Moscou. Dos milhares que existiam no auge da revolução restavam apenas 150 em 1909 e um ano depois, no auge da crise, não passavam de algumas poucas dezenas.
O impacto foi maior entre os intelectuais a ponto de Lênin não conseguir montar uma nova redação para órgão central bolchevique por falta de quadros. Foi um período de crise do movimento socialista e da própria teoria revolucionária. A nova tática aberta após 1905-1906 deveria ser defensiva e o próprio marxismo renovado. Lênin, novamente, seria um dos poucos a compreender que o movimento operário e socialista estava entrando numa nova etapa histórica.
CONCLUSÃO
Lênin compreendia o Partido como um instrumento à serviço da revolução socialista e não como um fim em si mesmo. O desenvolvimento das formas organizativas estava intimamente ligado ao desenvolvimento dos processos revolucionários na Rússia. O partido deveria se adaptar ao processo revolucionário e não a revolução adaptar-se ao partido. Portanto, não existiria a priore um modelo único de organização leninista. O que existiam eram alguns princípios gerais que poderíamos sinteticamente definir: um partido de vanguarda, orientado pelo marxismo, vinculado organicamente com a luta do proletariado, um partido comprometido com a ruptura em relação a ordem capitalista e com a conquista do poder político para os trabalhadores e que se organiza à partir do princípio do centralismo democrático.
Nesta nova fase de luta pelo socialismo, no início do século XXI, é preciso que repensemos coletivamente a forma-partido e sua relação com os movimentos sociais. Neste sentido Lênin pode nos oferecer pistas preciosas mas não pode responder por nós, pois estes é o nosso problema e não o dele.
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Augusto César Buonicore, Historiador, doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp, membro do Comitê Estadual de São Paulo, do Comitê Central do PCdoB e do Conselho de Redação das revistas Debate Sindical e Princípios
Fonte: revista Princípios