Para as organizações socialistas, esta questão não é secundária, ela tem implicações políticas de vulto. Os defensores de uma conceituação mais restrita de proletariado (proletariado = operário fabril) alegam que as consequências de se aceitar todos os assalariados como membros do proletariado seriam: a diluição do papel central dos operários manuais no processo de transição revolucionária para o socialismo refletiria no conteúdo de classe e na forma do partido revolucionário de vanguarda, e isto, por sua vez, teria reflexo direto no próprio projeto de construção do socialismo.
Os autores que defendem uma conceituação ampliada de proletariado (proletariado = assalariados) acreditam que uma visão restrita de proletariado conduziria o movimento socialista a um beco sem saída, tendo em vista o processo de redução da classe operária tradicional na sociedade capitalista contemporânea. Outra questão estaria ligada ao modelo de construção do socialismo: um conceito de proletariado restrito levaria à constituição de um poder socialista assentado numa minoria da classe trabalhadora, podendo conduzir à restrição democrática do poder político. A “ditadura do proletariado”poderia se constituir numa ditadura de minoria.

Marx, Engels e o proletariado

Marx e Engels em suas obras jamais definiram de maneira clara, inequívoca, o que é o proletariado moderno. Em algumas existe a tendência de reduzir o proletariado à classe operária fabril. Em outras, porém, parecem estender o conceito no sentido de abranger o conjunto dos assalariados, incluindo os trabalhadores não manuais e não diretamente produtivos para o Capital.
No livro 4 d’O Capital (Teoria da Mais Valia) Marx escreveu: “Uma cantora que vende seu canto por conta própria é um trabalhador improdutivo. Mas a mesma cantora, se contratada por um empresário para ganhar dinheiro com seu canto, é um trabalhador produtivo, pois produz capital” (MARX, K. Teoria da Mais Valia, vol.1, p.396).
Em outra passagem do mesmo livro ainda afirmaria: “Nos estabelecimentos de ensino (…) os professores, para o empresário do estabelecimento, podem ser meros assalariados; há grande número de tais fábricas de ensino na Inglaterra. Embora eles não sejam trabalhadores produtivos em relação aos alunos, assumem essa qualidade perante o empresariado (…). O ator se relaciona com o público na qualidade de artista, mas perante o empresário é trabalhador produtivo”. (MARX, K. Idem, ibidem, p.404). Estas afirmações se reproduziriam em outras passagens de sua obra.
Vejamos agora o que ele diz sobre os comerciários: “entre o empregado do comércio e os trabalhadores diretamente empregados pelo capital industrial deve haver a mesma diferença que se dá entre o capital industrial e o capital mercantil (…). O trabalho não-pago desses empregados, embora não crie mais-valia, permite-lhe apropriar-se de mais-valia – o que para esse capital é a mesma coisa (…). Se o trabalho não-pago do trabalhador cria diretamente mais-valia para o capital produtivo, o trabalho não-pago dos trabalhadores comerciais proporciona ao capital mercantil participação nessa mais-valia.” Continua o autor: “É produtivo, para o capitalista, não por criar mais-valia diretamente, mas por concorrer para diminuir os custos de realização de mais-valia, efetuando trabalho em parte não-pago” (MARX, K. O Capital, Livro 3, vol. 5, p. 345).
O que ele alertava era que estes casos só se verificariam “em extensão reduzida” e que, “em virtude da natureza dessa atividade, só pode estender-se a algumas esferas”. No mesmo sentido, diria que todas “essas manifestações da produção capitalista são tão insignificantes que podem ficar despercebidas” (MARX, K. Teoria da Mais Valia, vol.1, p.404). É justamente isso que o faz dar pouca atenção a elas. Mas o que na sua época era um setor “insignificante” e “pouco extenso” passou a adquirir grande importância no decorrer do desenvolvimento do capitalismo, especialmente quando este ingressou na fase monopolista.
De fato, os assalariados não-manuais (ou colarinhos brancos) representavam apenas uma reduzidíssima parcela dos trabalhadores no tempo de Marx e Engels. Mesmo no início do século XX, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos – centros do capitalismo mundial –, eles representavam apenas 1% da população trabalhadora.
Marx em sua obra também desenvolve o conceito de “trabalhador coletivo”, segundo o qual o trabalho do conjunto dos empregados em determinada fábrica – os serventes (“que nada têm a ver diretamente com a transformação da matéria prima”), os engenheiros (“que em regra trabalham apenas com a mente”) e os operários não-manuais – deveria ser considerado, em seu conjunto, “máquina viva da produção desses produtos; do mesmo modo, considerando-se o processo global de produção, trocam trabalho por capital e reproduzem o dinheiro do capitalista como capital, isto é, como valor que produz mais-valia, como valor que cresce”.
Continua Marx: “É mesmo peculiar ao modo de produção capitalista separar os diferentes trabalhos, em consequência também o trabalho mental e o manual (…) e reparti-los por diferentes pessoas, o que não impede que o produto material seja o produto comum dessas pessoas ou que esse produto comum se objetive em riqueza material (…). Todas essas pessoas estão não só diretamente ocupadas na produção de riqueza material, mas também trocam seu trabalho diretamente por dinheiro como capital e, por isso, reproduzem de imediato, além do próprio salário, mais-valia para o capitalista” (MARX, K. Teoria da Mais Valia, vol.1, p.405). Esta mesma ideia estaria presente no Capítulo VI (inédito).
Tomando a obra de Engels, em seu conjunto, também podemos notar que existem múltiplas definições de proletariado, embora nos seus últimos trabalhos ele opte por utilizarem conceito ampliado de proletariado. A posição do “último Engels” está estampada numa nota de rodapé à edição inglesa do Manifesto do Partido Comunista, publicada em 1888: “Por proletariado entende-se a classe dos trabalhadores assalariados modernos que, não tendo meios próprios de produção, são obrigados a vender a sua força de trabalho para sobreviverem”.
Em outra nota de rodapé, desta vez no Livro 3 d’O Capital, ele se referiria aos comerciários como “proletariado comercial”. Esta definição engelsiana foi a que predominou no seio da II Internacional (1888-1914). Kautsky em 1887 falava de um “proletariado intelectual” que aumentaria rapidamente com o desenvolvimento do capitalismo. Esta mesma definição ampliada de proletariado levaria Kautsky a afirmar que “em quase todas as grandes cidades, o proletariado é hoje amplamente majoritário”.
Portanto, a definição do proletariado enquanto “a classe dos assalariados modernos” (e não apenas dos operários manuais fabris) não foi criada por Kautsky e Bernestein; ou seja, não foi uma criação do revisionismo. Como vimos, esta definição ampliada do proletariado pode ser encontrada nos próprios Marx e Engels. Embora não tenhamos dúvidas de que quando eles se referem ao proletariado moderno estejam, na grande parte das vezes, se referindo aos operários industriais, pelo motivo visto acima: falta de expressão social dos “colarinhos brancos”.
Os clássicos do marxismo, também, jamais desenvolveram um conceito de “classe média”, embora tivessem usado o termo diversas vezes, referindo-se a fenômenos sociais bastante distintos. Engels, no Prefácio à Situação da classe trabalhadora na Inglaterra, se refere à classe média enquanto burguesia nascente no seio da sociedade feudal em decomposição. Utilizou o mesmo termo, com o mesmo sentido, anos mais tarde, no livro Do socialismo utópico ao socialismo científico. Marx e Engels, por vezes, utilizavam o termo para designar a pequena-burguesia urbana, por sua posição intermediária entre a burguesia e o proletariado. Nenhum dos dois buscou transformar a expressão classe-média num conceito teórico.
Apesar do que foi dito acima, uma pergunta ainda fica: segundo Marx e Engels todos os assalariados poderiam ser considerados proletários? Para responder a isso não podemos nos restringir a citações isoladas – e descontextualizadas – desses autores, como a que está presente na famosa nota de rodapé de Engels ao Manifesto do Partido Comunista. Devemos sempre ter em conta o conjunto da sua elaboração teórica– nos seus mais diversos níveis de abstração. Nesse sentido, a resposta a ser dada a essa questão deveria ser negativa. Nem todos os assalariados são proletários, embora a grande maioria deles o seja.
Segundo Marx e Engels, não comporiam o proletariado os assalariados que realizavam serviços pessoais (empregados domésticos ou avulsos) ou os que estavam ligados à superestrutura jurídico-político-ideológica (funcionários públicos, padres, intelectuais tradicionais etc.). Estes seriam definidos como categorias sociais, como o são os estudantes. Não comporiam também o proletariado os assalariados que exerciam funções de coordenação e controle do trabalho, como gerentes e administradores de empresas. Eles não cumpririam apenas funções técnicas, mas também uma função relacionada a reproduzir as relações de dominação e exploração dentro das empresas. Representariam os interesses do capital em relação ao trabalho. Assim, não comporiam nem a burguesia e nem o proletariado, seriam um grupo social intermediário. É preciso não confundir esses “agentes do capital” com os trabalhadores técnicos, inclusive alguns engenheiros de produção, que exerceriam apenas ou predominantemente funções técnicas e produtivas. Estes seriam proletários e comporiam aquilo que Marx definiu com “trabalhador coletivo”.
Veremos agora como se desenvolveu esse debate entre os marxistas no século XX, tendo como referência apenas duas contribuições, que apontam para respostas bastante distintas sobre o que seja o proletariado moderno. A primeira é a opinião expressa na revista Problemas da paz e do socialismo e a segunda a de Nicos Poulantzas.

A proletarização das classes médias

No final da década de 1950, a revista internacional Problemas da paz e do socialismo, ligada ao PCUS (Partido Comunista da União Soviética), resolveu realizar um intercâmbio de opiniões sobre a estrutura da classe operária nos países capitalistas desenvolvidos. Esse esforço teórico culminou num encontro de centros de estudos científicos e de revistas marxistas de vários países.
A conclusão desse evento foi de que, na dinâmica do capitalismo em sua fase monopolista, o número de operários manuais, ligados diretamente à produção de bens materiais, tenderia a se reduzir enquanto que o número de trabalhadores não-manuais e não diretamente produtivos a aumentar. Esta, afinal, teria sido uma previsão do próprio Marx, que afirmou: “O aumento extraordinário das forças produtivas, nas esferas da grande indústria, acompanhado como está de uma exploração cada vez mais intensa e extensa da força de trabalho de todos os demais ramos da produção, permite empregar improdutivamente uma parte cada vez maior da classe operária” (RUMIANTSEV, 1963:24).
Esses autores se negaram a reduzir o conceito de proletariado ao de operário fabril, diretamente produtivo. A confusão existente, segundo eles, teria sido introduzida pelos “sociólogos burgueses” para os quais o conjunto dos trabalhadores não-manuais comporia uma nova classe média, distinta e em contradição com os operários fabris. A despolarização da sociedade descentralizaria o problema da luta de classe e garantiria a estabilização do capitalismo. Ficaria, assim, demonstrada a falsidade da tese de Marx sobre a tendência de proletarização das camadas médias.
O critério de definição de classe não poderia ser reduzido à relação direta (física) com os meios de produção. A diferença fundamental da situação da classe do proletariado não seria a sua união direta com os meios de produção, e sim a sua separação dos mesmos. O fundamental, portanto, para a determinação de classe seria a relação de propriedade e não-propriedade que se estabeleceria com os meios de produção e o assalariamento. Estes dois fatores determinariam outros aspectos, como nivelamento dos níveis de vencimento, estabilidade no emprego etc. Além do mais, haveria uma tendência a corrosão do status e do prestígio dos assalariados médios não-manuais que os aproximaria mais dos operários fabris.
Dentre desse esquema, os trabalhadores em comércio e nos bancos comporiam a classe operária moderna porque além de não-proprietários, seriam assalariados. Apesar de não produzirem mais-valia, eles criariam as condições para que os capitalistas que os exploram se apropriarem de uma parte da mais-valia, expropriada diretamente dos operários. Eles, portanto, seriam fundamentais para a reprodução ampliada do capital.
Por isso – apesar de não produzirem diretamente mais-valia –, esses assalariados também poderiam ser considerados produtivos. Para Marx seria produtivo, no sentido amplo, o “trabalho que produz mais-valia ou que serve ao capital de meio de produzir mais-valia e transformar-se, por conseguinte, em capital, em valor produtivo de mais-valia”. A segunda parte dessa afirmação se refere justamente ao trabalho dos empregados no comércio e nos bancos. Nessa perspectiva, Marx não limitaria o conceito de trabalhador produtivo ao de operários fabris diretamente vinculados à produção de bens materiais.
Segundo o encontro internacional, a estrutura profissional e as condições de vida dos assalariados intelectuais (engenheiros, técnicos e profissionais de nível médio ou universitário) haviam se transformado muito no curso das décadas precedentes: “a tendência à proletarização predominou nitidamente sobre a tendência de aburguesamento, antes de tudo porque a imensa maioria dos intelectuais perdeu sua ‘posição independente’. Por isso deve se dizer que: a maior parte dos trabalhadores intelectuais se fundiu com a classe operária” (RUMIANTSEV, 1963:35). Esses autores, então, utilizam o conceito de “proletário do trabalho Intelectual”, no qual seriam incluídos, inclusive, os advogados das grandes empresas capitalistas; contanto que estes fossem assalariados e não empregassem força de trabalho alheia. Uma conclusão, em diversos aspectos, duvidosa.
Para esses autores, “o processo de nivelamento do caráter do trabalho dos distintos setores da classe operária leva objetivamente à aproximação ideológica da massa fundamental dos trabalhadores não-manuais com o núcleo do proletariado e neles vai inculcando a consciência de classe”. No entanto, reconhecem que as coisas são muito mais complexas. A “aproximação ideológica com o núcleo do proletariado” ainda seria uma promessa não realizada.
A luta desses assalariados não-manuais “não estaria isenta de inconsequências nem os levaria sempre a abraçar a ideologia proletária. Abundam os obstáculos, sobretudo em uma esfera onde seria particularmente lenta a evolução: na esfera da consciência, que nos empregados estaria sobrecarregada de individualismo e de tradições pequeno-burguesas”. Mas seria “no fogo da luta onde os trabalhadores, individualmente ou em grupos, perceberiam plenamente o seu pertencimento à classe operária” e ocorreria a “proletarização da consciência dos empregados” (RUMIANTSEV, 1963:45/47).

Obs. A bibliografia segue na segunda parte desse artigo.

* Essa é uma versão revisada e ampliada do artigo publicado na revista Princípios n°64 – de fevereiro/abril de 2002.

** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.