Tempos de tensão cada vez mais elevada (I)
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Há semelhanças inquietantes entre as situações de extrema pressão enfrentadas pela presidenta argentina Cristina Kirchner e sua colega brasileira, Dilma Rousseff.
Seus respectivos governos enfrentam quadros econômicos complexos, num cenário em que a oposição não está concentrada nos partidos políticos que atuam no parlamento sem norte nem rumo, sem propostas cuja consistência consiga superar a histeria dos ressentidos de sempre, mas nos meios hegemônicos de comunicação que respondem aos grandes interesses econômicos e financeiros.
Há pelo menos dois anos Cristina suporta pressões cujo objetivo inicial era sua deposição pela via de um golpe parlamentar. Uma vez que se tornou claro que essa manobra era inviável, a pressão agora é para que se antecipem as eleições presidenciais de outubro.
Além das manobras claras e indiscutíveis dos meios de comunicação, a mandatária argentina enfrenta o jogo sujo dos serviços de inteligência, cuja estrutura permanece, em seu cerne, inalterada desde os tempos da ditadura cívico-militar que sufocou o país entre 1976 e 1983. E, para completar, a atuação esdrúxula de parte dos integrantes do Ministério Público deixa claro que há uma ação triangular destinada a sufocar a presidenta, paralisar o governo e criar um ambiente de profunda incerteza no país.
Faltam poucos meses para que o eleitor argentino decida quem será o próximo presidente. No kirchnerismo, a corrente de centro esquerda desse emaranhado de tendências que é o peronismo, não está claro quem será o candidato à sucessão da atual mandatária. Para os grandes meios de comunicação, porém, o objetivo é outro e é claro: tornar o ambiente tão carregado que a candidatura da corrente kirchnerista se torne inviável independente de quem a assuma. Melhor que isso, só mesmo emparedar a presidenta até deixá-la sem outra saída que renunciar.
Se faltava alguma coisa para criar essa armadilha para Cristina e o kirchnerismo, o quadro agora está completo. Se todas as outras táticas se mostraram falhas ou insuficientes, nada mais oportuno que um escândalo judicial arrematado por um cadáver.
De alguma forma, o procurador Alberto Nisman contribuiu para esse quadro. Primeiro, elaborando um relatório, coalhado de falhas, referente às suas investigações sobre o atentado cometido em Buenos Aires por agentes do governo iraniano contra a AMIA, uma associação mutuaria israelita em 1994 e que deixou o dramático saldo de 85 mortos e mais de 300 feridos.
Nisman era um funcionário de carreira média, sem nada especialmente relevante a não ser sua proximidade com os serviços de inteligência das embaixadas dos Estados Unidos e de Israel na Argentina. Também mantinha estreitos laços com agentes do serviço argentino de inteligência. Ele apareceu morto em seu apartamento, cujas portas estavam trancadas por dentro, com um tiro de calibre 22 disparado a menos de um centímetro de sua cabeça. Até agora não se sabe se foi assassinado, se cometeu suicídio ou se esse suicídio foi induzido.
No afã destrambelhado para insuflar uma história que em si já seria extremamente preocupante, o grupo Clarín, que além do jornal de maior circulação nacional controla um monopólio midiático que se estende por emissoras de televisão aberta e fechada, além de rádios, por todo país, se lançou com fúria descontrolada numa única direção: o governo tem culpa e Cristina perdeu a noção de limites. Outros meios, como o ainda influente La Nación, seguiram na mesma trilha.
Nisman preparou um relatório, cujo conteúdo foi integralmente divulgado após sua morte, denunciando Cristina Kirchner, seu ministro de Relações Exteriores Héctor Timerman e mais um punhado de políticos ligados ao governo por acobertar os responsáveis pelo atentado contra a AMIA. Morreu – ou foi morto – antes de encaminhar a denúncia à Justiça. Seu substituto e sucessor, Gerardo Pollicita, se encarregou dessa missão.
A imensa maioria de todos os juristas respeitáveis – e respeitados – que analisaram o relatório em questão deixou claro que a denúncia tem a exata consistência de uma gema de ovo cru. Nisman, e agora Pollicita, dizia que um acordo firmado entre a Argentina e o Irã, e aprovado pelo Congresso argentino, tinha como objetivo acobertar os responsáveis pelo atentado e assegurar sua impunidade, em vez de avançar nas investigações, como foi anunciado oficialmente.
Essa tese tem como base três pilares principais. O primeiro deles: o ‘alerta vermelho’ da Interpol sobre os responsáveis foi suspenso. O segundo: foi criada uma espécie de Comissão da Verdade bilateral, cuja conclusão asseguraria a impunidade dos criminosos. Terceiro: seriam criadas falsas pistas para dizer que na verdade o atentado foi cometido por criminosos locais interessados em sabe-se lá o quê.
A troco disso, foi combinado um incremento consistente no comércio bilateral Irã-Argentina, com forte aumento da venda de soja para os iranianos e de petróleo para os argentinos.
Bem: as tais pistas falsas jamais surgiram, o ‘alerta vermelho’ da Interpol continua ativo, ninguém nunca ouviu falar da Comissão bilateral da Verdade, e o comércio entre os dois países continua tão frouxo como sempre. A Argentina não importa petróleo iraniano, e a soja que exporta para o Irã tem peso insignificante na balança comercial.
A Justiça agora irá analisar a denúncia apresentada contra a presidente e seu ministro de Relações Exteriores (que, aliás, é judeu). Nisman ignorou toda a documentação que recebeu como resposta a seus questionamentos enquanto elaborava o relatório, cujo conteúdo foi assumido de imediato por seu sucessor.
O que há de concreto nessa história? Um atentado brutal, uma investigação que ao longo de mais de vinte anos não chegou a lugar algum e uma imensa, incontrolável vontade de destituir uma presidenta que chegou onde está por ter sido eleita e reeleita pelo voto popular.
Esse o cenário, turbulento e preocupante, da Argentina. Como se não bastassem os problemas reais e efetivamente complexos, há quem queira e insista em arrumar um jeito qualquer de terminar com o mandato de Cristina Kirchner antes do prazo legal.
Publicado em Carta Maior