WALTER SORRENTINOPUBLICADO EM 24.02.2015

A derrota sofrida pela primeira experiência socialista no século XX impôs um tempo de defensiva estratégica, de acumulação estratégica de forças, para retomar um novo ciclo de lutas pelo ideal socialista, este também renovado a partir das lições extraídas daquela experiência. De outra parte, atuando nessas condições, há uma enorme pressão ideológica que se abate sobre os Partidos de concepção e prática revolucionárias, pressão tendente a rebaixar o papel estratégico do Partido Comunista.

O debate sobre o tema Partido não tem sido, em nosso tempo, alvo de exame sistemático do movimento comunista. A causa principal disso é a dispersão teórica, com seu efeito sobre as convicções revolucionárias, e a certa conduta inercial de fundo dogmático. Mas também decorre da insuficiente maturação de um pensamento estratégico revolucionário em resposta às necessidades de nosso tempo, ao qual se deve adequar o Partido Comunista.

Vivemos um novo tempo, distinto daquele em que foi elaborada a teoria leninista de Partido. Desenvolve-se outra configuração do modo de reprodução e dominação capitalista-imperialista, levando a outros desenvolvimentos das classes e lutas sociais. A derrota sofrida pela primeira experiência socialista no século XX impôs um tempo de defensiva estratégica, de acumulação estratégica de forças, para retomar um novo ciclo de lutas pelo ideal socialista, este também renovado a partir das lições extraídas daquela experiência.

De outra parte, atuando nessas condições, há uma enorme pressão ideológica que se abate sobre os Partidos de concepção e prática revolucionárias, pressão tendente a rebaixar o papel estratégico do Partido Comunista.

Que fazer frente a tantos elementos novos? Sustentamos que ainda não maturou a realidade objetiva para dar ensejo a uma reinvenção do partido de tipo leninista. Daí decorre a condição de apreender a teoria leninista do Partido de modo contemporâneo, em sua essência dialética e em sua historicidade, ligada à construção do pensamento estratégico do tempo presente, não necessariamente em sua manifestação concreta na forma do bolchevismo soviético do século passado.

O PCdoB é tributário de um caminho de permanência com renovação nas concepções e práticas de Partido Comunista. Busca realizar um aggiornamento, sem se perder com respeito aos fundamentos de um partido de tipo leninista.

Permanência porque é fator decisivo para a identidade comunista. Renovação porque é uma exigência a desenvolver o pensamento de partido: o apego a um modelo concebido para uma determinada época, em função de outro pensamento estratégico, pode se tornar disfuncional se não reagir ao tempo. E, ainda uma vez, permanência porque ao responder às novas exigências o Partido pode perder-se nas novas condições estratégicas. Ou seja, de um lado o doutrinarismo e esquematismo, de outro o pragmatismo e a perda de perspectivas de rupturas políticas transformadoras.

(…) No fundo, a questão do Partido vai sendo repensada em função do amadurecimento da reflexão programática e estratégica, e também pela sistematização de nossa trajetória [do PCdoB].

Abrir novos horizontes é indispensável, o que nos leva a novas questões e novos riscos.

(…) Para reconstituir o percurso do esforço de renovação de concepções e práticas de Partido, partimos das questões que fundamentam  a teoria do partido de tipo leninista. É necessário captá-la de modo contemporâneo, em sua essência dialética e em sua historicidade, que não pode ser reduzida a um modelo organizativo, de forma a-histórica. Aborda-se aqui um dos três pilares fundamentais dessa teoria: o primado da consciência revolucionária, vale dizer, a noção de um partido de vanguarda.

[Partimos sempre d] A questão da consciência, [que] é central para a visão dialética: não pode haver intervenção consciente na história sem ela. Sem a compreensão do papel da consciência, suas limitações e avanços, não se compreende necessidade da existência do partido de classe do proletariado, que é essa consciência organizada e capaz de agir sobre o processo histórico.

A teoria marxista é a base fundante do Partido e, com ela, a ideologia ou concepção do mundo, que se transformam em práxis militante revolucionária. Não se pode prescindir  de uma teoria para o movimento transformador de superação do capitalismo. “Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário’’ que supere de fato a sociedade dividida em classes. É certo, na experiência histórica, que houve movimentos revolucionários de variados graus de conseqüência sem a participação de um Partido Comunista – ou que se formou  no seio do próprio movimento – como Cuba no fim dos anos 50 e Venezuela na atualidade o demonstram. Mas tratar de abrir caminho a uma nova formação econômico-social, socialista, exige forças conscientes e convictas, organizadas e motivadas, por um período de revolução social certamente prolongado, postas em movimento por uma formação que encarne esses valores. Como bem lembrou um dirigente do PC(M) da Índia, trata-se de abrir caminho para uma nova sociedade enquanto primeiro projeto histórico, não espontâneo e elaborado com base em uma concepção humana, de um novo modo de produção. Essa é a função histórica primordial do Partido Comunista.
A questão da consciência é central para a visão dialética. O centro da oposição entre o materialismo moderno, dialético, fundado por Marx e Engels e desenvolvido por Lênin, e o materialismo antigo, do século XVIII, positivista, cientificista no mal sentido, é justamente a desconsideração do papel da consciência. Este foi um traço típico do marxismo predominante desde a década de 1930, mal chamado de “marxismo soviético”, e que teve um desenvolvimento tardio na década de 1960 com a obra de Althusser: a tentativa de fundamentar uma concepção científica, determinista e reducionista, que eliminasse a intervenção do sujeito (veja-se os esforços de Althusser para “limpar” o marxismo daquilo que ele considerava historicismo e hegelianismo). Mas não há – não pode haver – intervenção consciente na história sem que exista uma consciência, e reconhecer este fato não é idealismo, como supõe aquela visão estreita e ultrapassada. É materialismo dialético e histórico.

Portanto, trata-se de um esforço essencial de, restaurando a visão marxista e leninista originária, desenvolver a teoria, inclusive sobre partidos. Sem a compreensão do papel da consciência, suas limitações e avanços, não se compreende necessidade da existência do partido de classe do proletariado, que é essa consciência organizada e capaz de agir sobre o processo histórico. A ação entre as condições objetivas e o sujeito é mediada pela consciência. A elaboração leninista, nesse sentido, é profundamente anti-positivista e isso precisa ser muito ressaltado ainda hoje. Nele o papel da vontade revolucionária, traduzida na iniciativa revolucionária de um sujeito coletivo organizado, era essencial para abrir caminho ao socialismo mesmo nas condições ainda não-“maduras” existentes na velha Rússia, fugindo a uma interpretação fatalista, economicista, mecanicista e vulgar do marxismo da 2ª. Internacional, segundo a qual a história abriria caminho “por si só”, e a intervenção consciente seria acessória, secundária. A enfatizar o papel da consciência, Lênin recuperou assim a unidade sujeito-objeto, o valor da práxis e da subjetividade no processo histórico, submetendo-as entretanto à análise concreta de cada situação concreta para abrir caminho à transição ao socialismo.

A compreensão disto é fundamental não só para compreender os próprios Marx, Engels e Lênin, como também a teoria como um processo de elaboração contínua, que decorre da análise concreta da situação concreta, e não de forma talmúdica como o relato de um futuro pré-fixado, definido teleologicamente, religiosamente, e que vai acontecer de forma automática, com ou sem a intervenção consciente, independente da forma como ocorra a resolução das contradições de classe, e sem considerar a correlação de forças existente na sociedade. Isto foi fundamento, no passado, da ação reformista, e não revolucionária.

O Partido Comunista, portanto, é – deve ser – a consciência avançada e revolucionária de nosso tempo. Não é uma organização arbitrária ou voluntarista – ele representa a consciência teórica e ideológica da luta revolucionária pela superação do capitalismo. Daí deriva seu caráter de vanguarda e não por autoproclamação ou como algo dado de antemão. Desenvolve-se ainda hoje uma polêmica de caráter histórico-estratégica quanto à indispensabilidade de um partido desse tipo para dirigir a transição ao socialismo, polêmica que só a práxis poderá deslindar.

Hoje, partindo dos fundamentos do marxismo-leninismo, é necessário desenvolver a teoria revolucionária – que se encontra em crise que resulta de seu insuficiente desenvolvimento – para dar conta da crítica da sociedade capitalista e abrir caminho ao socialismo – e inclusive para superar a própria crise programática e orgânica da esquerda (que veremos no desenvolvimento do tema).

Nesse sentido, o Partido é o intelectual coletivo, armado com a teoria e desenvolvendo-a criticamente. Este é um termo introduzido pelo Gramsci e que também precisa ser reforçado: a consciência de classe não existe bailando nos ares, mas tem uma expressão material, organizativa: o Partido que, exatamente por isso, é o intelectual coletivo elaborador e implementador dessa consciência.

O Partido Comunista é, também, por isso mesmo, o instrumento que organiza a luta pelo seu projeto político estratégico, a conquista do poder político, nas condições de cada país, com base na teoria aplicada a uma realidade concreta, visando a superação da sociedade dividida em classes.

As condições nas quais surge a consciência e como se desenvolve variam conforme as condições da luta de classes. Que Fazer?, de Lênin, tem universalidade, mas também historicidade. Devemos lembrar sempre que se Que Fazer? segue sendo um compêndio fundamental sobre a relação entre o espontâneo e o consciente – e o primado deste para o movimento revolucionário – não se deve ver nele um estudo filosófico sobre a origem da consciência revolucionária. É o que vai se estudar com o texto de suporte da próxima coluna.

Publicado em 16 e 19/01/2007