Trabalho, educação e capital: a lógica perversa do sistema
O mundo capitalista é surpreendente em inovações, glamour e contradições. Entremeado por períodos de bonanças e crises, em que as sociedades se ajustam às benesses e às dificuldades, umas piores ou melhores que as outras, o vigor ou torpor que o mantém se produz e reproduz por meio de suas relações econômicas e sociais.
As inovações e o glamour são conhecidos e apreciados seja pelas informações na mídia, seja pelos próprios produtos que chegam de quando em vez ao mercado em todos os ramos de atividade.
A produção cada vez mais orientada pelos avanços tecnológicos e descobertas científicas invadem as gôndolas dos supermercados, as vitrines das lojas, os pátios das montadoras, as prateleiras dos shoppings, enfim, o caleidoscópio de mercadorias e serviços à disposição dos consumidores.
Por trás e por dentro da máquina de pesquisa, desenvolvimento e fabricação deste sistema as relações mercantis e produtivas se mesclam e definem, através das estratégias dos produtores individuais, empresas e grupos econômicos, o modo mais eficiente e produtivo do uso do trabalho, da técnica e do capital.
Desnecessário observar, mas importante confirmar, que a predominância no desenho e estabelecimento das relações recai nas unidades de produção de maior relevo, pujança e receitas. As demais unidades a elas se ajustam dentro dos nichos, esquemas e possibilidades encontrados.
Chama especial atenção uma contradição que perpassa os vários períodos de expansão capitalista no mundo, qual seja a relação entre trabalho, educação e capital. Na linguagem dos economistas liberais, a relação entre os fatores de produção, já na nomenclatura dos economistas não liberais (para dar maior abrangência aos grupos) a relação entre trabalho e capital.
Não é a mesma coisa, embora pareça. Os fatores de produção reservam lugar ao trabalho e ao capital apenas na linha de montagem, ou na ilha de produção, ou no canteiro de obras, ou na logística das empresas, e assim sucessivamente.
Já trabalho e capital envolvem estes locais específicos de produção, mas também as decisões, determinações e soluções, pelo menos, estratégicas e financeiras, que põem o aparato produtivo das unidades a funcionar.
Aos fatores de produção a dimensão econômica, ao capital e ao trabalho as dimensões econômica e política. Daí as expressões economia liberal, de um lado, e economia política, de outro.
Da economia política é que surgem a verificação e análise das contradições, daquela somente as imperfeições no funcionamento do sistema; nessa, as soluções são encontradas em ajustes técnicos e operacionais para devolver ao equilíbrio as combinações ideais entre os fatores de produção; naquela, a falta de soluções faz parte do capitalismo, porque inerente a ele, independentemente de acertos postos em marcha aqui e ali
O caso do desemprego é emblemático porque oportuno, atual e dramático na Zona do Euro. Para os liberais, ele surge do desequilíbrio momentâneo entre as combinações técnicas entre capital e trabalho, mediados pela tecnologia predominante de produção. Basta esperar um pouco para que a equação de produção aponte novas combinações e a quantidade produzida, bem como os volumes dos fatores se ajeitem e voltem ao normal.
Para os não liberais, a conversa é outra. O desemprego faz parte da lógica produtiva. Se todos se empregam, no pleno-emprego, o capital vê minguar o valor extra, a mais valia, e não há retorno de lucratividade.
Daí não haver incentivo para continuar produzindo. Há que operar utilizando sempre o menor número possível de trabalhadores para que a mais valia, o mais valor, seja o mais mesmo. Aqui entra o argumento de eficiência, eficácia e produtividade. O desemprego, portanto, é produto do capitalismo para todo o sempre.
E como fica o discurso dos empresários de que o desemprego é motivado pela inadequação da oferta de trabalho, em outras palavras, da falta de qualificação da mão de obra ou do desajuste do fator de produção? Falta que é provida, segundo eles, por mais educação.
Assim, quanto mais educação, quanto melhor a qualificação, mais oportunidades de trabalho, mais redução do desemprego, mais melhoria do nível salarial, que bom, voltamos ao equilíbrio liberal! Uma mera questão de ajuste no desequilíbrio momentâneo dos fatores de produção.
Só que essa conversa é para entrar num ouvido e sair no outro. O que fica mesmo na cabeça é que não é mais qualificação que garante emprego, nem que reduz o desemprego. O que garante o emprego é, de um lado, a adequada utilização do capital no processo produtivo e, de outro, o maior aproveitamento do trabalho no mercado. Solução esta que, infelizmente, está fora da lógica capitalista porque inerente as suas contradições: para o sistema, o que vale é economizar trabalho para maximizar o capital.
Dados apurados na pesquisa que conduzimos no NEPP/Unicamp ano passado, mostra que não é a educação dos trabalhadores que lhes permitem conseguir mais e melhores vagas no mercado. Mas, sim, a própria permanência no emprego. Ou melhor, sua adequação, reconhecimento e manutenção na estrutura ocupacional das empresas. O tempo de trabalho garante a qualificação.
Mais ainda, quanto mais permanece no emprego de uma empresa ou no mercado, em empresas semelhantes, mais o trabalhador alcança melhores salários. Melhores níveis de educação ficam atrás nessa comparação. Assim, ganha mais no mercado aquele trabalhador que permanece trabalhando, não aquele que estuda mais ou se especializa mais!
Então, pela conversa liberal a coisa não funciona por ajustes periódicos ao equilíbrio geral. Não funciona nem funcionará dia algum se o capital produtivo deixa de sê-lo para se travestir de capital financeiro à cata de taxas superiores de lucratividade; se o mais valor na produção significa menos emprego e trabalho no processo; se não é a educação a razão mais importante para se conseguir ou se manter no emprego e no trabalho, mas sim a própria experiência acumulada no exercício da profissão, sempre ameaçada pelo desemprego, nem a razão que favorece a obtenção de melhores salários.
Contradições que, desculpem a redundância, contradizem a mesmice do discurso e da retórica dos mandantes liberais do sistema de produção e finanças mundiais.
A austeridade no combate às crises econômicas é uma falácia de perversidade. De fato, ela é aplicada apenas no sentido de alijar do processo econômico os mais fracos e dependentes dos mais aquinhoados para restaurar um novo ciclo de produção e finanças com os sobreviventes, 99,9% das vezes os maiores e os mais poderosos.
A tentativa da Grécia de saída da crise frente a tríade financeira (FMI, BCE e CE), se bem-sucedida, pode favorecer mais tarde à Espanha e Portugal. A boa repercussão pode igualmente ajudar aos países menos desenvolvidos no enfrentamento da lógica perversa capitalista de servir a mesa com uma mão e tirar com a outra.
O banco dos BRICS pode, inclusive, ser uma boa alternativa de financiamento das crises econômica e financeira desses países, abrindo uma nova frente de apoio, fomento e incentivo internacional ao desenvolvimento.
José Carlos Peliano é economista (Phd/Campinas), trabalhou no IPEA, CNPq e Câmara dos Deputados. Atualmente, é pesquisador colaborador no Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) – Unicamp
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