WALTER SORRENTINOPUBLICADO EM 27.02.2015

Que fazer? de Lênin, do início do século passado, é antes de mais nada um livro sobre a estratégia a ser adotada pelos grupos revolucionários da velha Rússia. Compreende-se que, naqueles marcos, a questão de construir um partido político independente do proletariado surgia como o fator decisivo. Vai dar ensejo à formulação de partidos revolucionários de novo tipo, face às novas realidades advindas do desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes do tempo.

O clássico de Lênin foi publicado em 1902; nele, o líder bolchevique fundamentou a ideia de um partido revolucionário de novo tipo, à altura das exigências do desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes. Outra grande lição de Lênin é a visão dialética, correlacionando partido e movimento real. Neste sentido, precisa ser mais valorizada sua flexibilidade e sensibilidade para adaptar o partido às condições e exigências dos diversos momentos da luta de classes, pois ele não pode ser concebido como uma organização apartada do movimento real.

“Que fazer?” de Lênin, do início do século passado, é antes de mais nada um livro sobre a estratégia a ser adotada pelos grupos revolucionários da velha Rússia. Compreende-se que, naqueles marcos, a questão de construir um partido político independente do proletariado surgia como o fator decisivo. Vai dar ensejo à formulação de partidos revolucionários de novo tipo, face às novas realidades advindas do desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes do tempo.

Lênin fundamenta a noção do partido de vanguarda, elaborador-portador da teoria revolucionária, a qual não surge espontânea e diretamente do confronto econômico entre operários e patrões. A consciência vem “de fora” dessa relação imediata. Sabe-se que Lênin partiu de formulação de Kaustky, bastante mecanicista a esse respeito. Entretanto, o próprio Lênin, durante esses anos (reconhecendo-o em 1912) se negara a tratar “Que fazer?” fora do âmbito do debate então travado: tratava ele de corrigir a “curvatura do bastão” dos economicistas, em suas próprias palavras.

“Que fazer?” faz a crítica da visão evolucionista e do seguidismo que caracterizavam a corrente economicista, predominante na interpretação da 2ª. Internacional. Lênin faz a apologia do partido político em oposição à perspectiva estreita daquela corrente. Marcante nesse sentido é o recorrente apelo de Lênin, no livro, para que se observe “todos os aspectos da vida social”, “todos os aspectos da vida política”, voltar a atividade do partido a “todo o povo”, “todas as classes da população”, observando a relação entre “todas as classes”, explicar a “todos” o significado histórico mundial da luta emancipadora do proletariado (Burgio). Portanto, é central a luta contra a concepção corporativa da própria identidade e função do partido. Isso é um aspecto central e mais que nunca atual para o pensamento de partido. Com o Partido Comunista se define teórica e politicamente “a autonomia da classe operária, como expressão da sua capacidade de se fazer intérprete e protagonista do processo político que envolve toda a sociedade” (Gruppi). Portanto, quando ele diz que a consciência vem “de fora”, indica que ela não provém da experiência imediata da relação de exploração, mas da visão crítica global da sociedade. Ela vem da parte do partido, que observa o campo das relações recíprocas entre todas as classes. O Partido é assim a fusão do elemento consciente com o elemento espontâneo.

Ao mesmo tempo, Lênin demarca com o determinismo mecânico e o positivismo. Movendo-se no campo do determinismo materialista (que nega o fatalismo e,  ao contrário, fortalece o próprio terreno para uma ação racional), Lênin “correlaciona partido e movimento real, iniciativa revolucionária e situação objetiva, sujeito e objeto, com forte destaque ao sujeito revolucionário” (Gruppi).

Formas de determinismo estrito e mecânico nesse terreno são fatais para a ação revolucionária. Nessa armadilha envolveram-se muitos, entre os quais o próprio Stalin. Conduzem o partido a uma formação monolítica e monocéfala, de “homens e mulheres de aço”, exigindo não raro mediações de ordem moral, beirando a religião, para definir a militância. A experiência soviética, no limite, demonstrou onde pode levar tal caminho, ossificando a forma-partido, impondo a obediência a-crítica e desarmando ideologicamente o proletariado em sua luta. O mais certo é que não se deveria derivar diretamente de Que fazer? uma filosofia sobre a origem da consciência revolucionária, que não foi esse o escopo da obra.

Tampouco se poderia derivar da formulação leninista naquela obra um determinado modelo de forma organizativa qual seja, a de um partido fechado, de quadros, de predominante atividade ilegal ou clandestina, do doutrinarismo de um partido de puros, “poucos mas bons”. Ou seja, de um leninismo doutrinário. No fundo, a demarcação é política no sentido de não conceber a organização como fim em si mesma e não fazer a apologia da passividade, do sectarismo, da relação mecânica entre condições objetivas e subjetivas. O próprio Lênin flexibilizaria suas formulações já no auge da revolução de 1905 (Sobre a reorganização do partido) e também posteriormente (Novas tarefas, novas forças). É notória, e deveria ser mais valorizada, a flexibilidade e sensibilidade de Lênin para adaptar o partido às condições e exigências dos diversos momentos da luta de classes. Nessa armadilha envolveram-se muitas organizações, presas do sectarismo e dogmatismo, pela “esquerda”, bem como outras, que diluíram seu caráter revolucionário sob a bandeira da renovação, pela “direita”. Pense-se no ex-PCI eurocomunista ou mesmo na experiência brasileira do atual PPS.

Em suma, o partido não pode ser concebido como uma organização apartada do movimento real. Na relação espontâneo-consciente em Lênin, o espontâneo é uma forma embrionária do consciente. O partido é a predominância do fator consciente, mas se alimenta permanentemente do fator espontâneo da luta dos trabalhadores, generaliza-a e dá-lhe uma perspectiva política de ruptura. Não se deve contrapor mecanicamente uma “espontaneidade privada de consciência a uma consciência estranha ao movimento espontâneo” (Gerratana). De essencial, não confundir espontaneidade – que não cessa de se repor na luta real – e espontaneísmo, que é sua apologia.

A consciência está em primeiro plano para o partido revolucionário. As bases fundantes do Partido estão, como já se disse, em primeiro lugar, na teoria. O marxismo é teoria e ideologia do proletariado revolucionário. Mas, ao mesmo tempo, as condições nas quais se forma essa consciência se alteram historicamente.

Tais polêmicas não cessam de se repor ao movimento e devem ser confrontadas, como exigência para o avanço do pensamento marxista e leninista. Por ora, centremos a atenção no essencial: o componente ideológico, ou seja, a concepção de mundo emanada da teoria marxista, classista e revolucionária, é central à retomada da perspectiva transformadora. Dela derivam os valores da tenacidade, dedicação e heroísmo na luta revolucionária. Materializa-se em homens e mulheres militantes, conscientes, que adotam uma perspectiva de ruptura com a ordem atual, dedicam energias ao movimento transformador, organizados em seu partido de classe. Sem homens e mulheres assim não há partido de ação revolucionária. Como o fazem e em que condições – e como se formam tais homens e mulheres -, não está escrito nas estrelas. Exigem ser enfocadas nas condições do tempo contemporâneo e da perspectiva estratégica. Daí a noção de universalidade e historicidade de “Que fazer?”
___________________________
Os textos da bibliografia podem ser encontrados nos Estudos Estratégicos sobre o tema partido: http://www.portaldaorganizacao.org.br/?page_id=1923&did=6

Publicado em 23/1/2007