Na sexta-feira, à medida que chegavam notícias do acordo, a Alemanha proclamou vitória e foi sem surpresa que a maior parte da imprensa aceitou a proclamação. Eles têm altas autoridades para citar e em quem confiar. De Londres, o jornal The Independent relatou:

“vários analistas concordam que os resultados das conversações equivalem a uma derrota humilhante para a Grécia”.

Não foram dados mais pormenores, os analistas não tinham nome, e as suas ligações ficaram por conhecer — embora mais abaixo dois deles foram citados e ambos trabalhavam para bancos. Podia dar muitos exemplos parecidos, dos dois lados do Atlântico.

A New Yorker é outro assunto. É uma revista independente, com grande reputação, escrita para um público imparcial. E John Cassidy é um repórter de análise. Os leitores tomam-no a sério e quando se engana, importam-se. A análise de Cassidy aparece sob o título “Como a Grécia foi passada para trás” e o parágrafo de abertura tem esta frase:

“O novo governo de esquerda do Syriza na Grécia passou semanas a dizer a toda a gente que não ia concordar com a extensão do resgate, e que queria um novo acordo de empréstimo que lhe deixasse as mãos livres, o que torna este acordo numa capitulação do Syriza e uma vitória para a Alemanha e o resto do establishment europeu”.

Na verdade, nunca houve a mínima hipótese para um acordo de empréstimo que pudesse libertar por inteiro as mãos da Grécia. Os acordos de empréstimo vêm com condições. As únicas escolhas eram entre um acordo com condições, ou nenhum acordo e nenhumas condições. A escolha tinha de ser feita até ao dia 28 de fevereiro, a partir do qual o apoio do BCE aos bancos gregos expirava. Não haver acordo significava controlos de capital, ou falências bancárias, incumprimento da dívida e saída imediata do Euro. O Syriza não foi eleito para tirar a Grécia da Europa. Logo, para cumprir os compromissos eleitorais, a relação entre Atenas e a Europa teve de ser “prolongada” de uma forma aceitável para ambos.

Mas prolongar o quê, ao certo? Houve duas frases em jogo, e nenhuma era a vaga “extensão do resgate”. A frase “extensão do atual programa” apareceu nos documentos da troika, implicado a aceitação dos termos e condições existentes. Para os Gregos isto era inaceitável, mas a tecnicamente-mais-correta “extensão do acordo de empréstimo” era menos problemática. O documento final prolonga o “Acordo de Assistência Económica e Financeira (Master Financial Assistance Facility Agreement – MFFA)”, o que era ainda melhor. O MFFA é “sustentado por um conjunto de compromissos”, mas estes são — tecnicamente — diferentes. Para resumir, o MFFA é prolongado mas os compromissos são revistos.

Também houve a bela palavra “dispositivo” (“arrangement”) — que a equipa Grega descobriu num projeto de comunicado entregue pelo Presidente do Eurogrupo Jeroen Dijsselbloem na segunda à noite e que depois começou a adotar à vontade. O documento de sexta é uma obra-prima a este respeito:

“O objetivo da extensão é completar com sucesso a revisão com base nas condições do atual dispositivo, fazendo o melhor uso da flexibilidade que será discutida conjuntamente com as autoridades gregas e as instituições. Esta extensão irá também estabelecer uma ponte temporal para as discussões de um possível dispositivo de acompanhamento entre o Eurogrupo, as instituições e a Grécia. As autoridades gregas irão apresentar uma primeira lista de medidas de reformas, baseada no atual dispositivo, no final da segunda-feira 23 de fevereiro. As instituições irão dar uma primeira opinião sobre se esta lista é suficientemente ampla para ser um ponto de partida válido para uma conclusão bem-sucedida da revisão.”

Se acha que pode encontrar aqui um compromisso inabalável com os exatos termos e condições do “atual programa” nesta linguagem, então boa sorte. Não está lá. Por isso, não, a troika não pode vir a Atenas queixar-se da readmissão das mulheres da limpeza.

Para perceber o que está realmente em jogo entre a Grécia e a Europa, é preciso ir um pouco mais ao fundo do infame “Memorando de Entendimento” assinado pelos anteriores governos Gregos. Primeiro: nem tudo naquele documento é despropositado. Muito apenas reflete as leis e regulamentos da UE. As disposições relativas à administração fiscal, fuga ao fisco, corrupção e modernização da administração pública são, em geral, boas políticas e apoiadas pelo Syriza. Por isso não foi difícil ao novo governo Grego declarar a adesão a “setenta por cento” do memorando.

Os restantes “trinta por cento” centram-se sobretudo em três áreas: as metas orçamentais, as privatizações em saldo, e alterações à lei laboral. A meta de 4.5% de “excedente primário” não prestava, como todos admitiam em privado. O novo governo não se opõe às privatizações per se: opõe-se às que criam monopólios que fazem os preços disparar e opõe-se aos saldos que acabam por não trazer muito dinheiro. A reforma da lei laboral é uma divergência fundamental — mas a posição do governo Grego está em linha com as normas da OIT e as do memorando não. Estes temas irão ser discutidos agora. A meta orçamental já era, e os Gregos concordaram em abster-se de medidas “unilaterais” apenas durante o período de quatro meses, no qual irão procurar chegar a um acordo.

Cassidy admite parte disto, mas depois minimiza-a com o mentário de que o acordo “parece afastar qualquer adoção em grande escala das políticas de estímulo keynesianas”. Em que documento é que aparece tal promessa? Não há dinheiro na Grécia; o governo está na bancarrota. Políticas keynesianas em grande escala nunca estiveram em cima da mesa, uma vz que implicariam necessariamente sair — uma política expanasionista com uma nova moeda, com os habituais perigos, incluindo os investidores privados e o Banco Europeu de Investimento. A observação de Cassidy parece ter caído do céu.

Outra fantasia é a noção de que a equipa do Syriza estava inebriada com o êxito político, que surgira “praticamente do nada”. Na verdade o Syriza sabia há meses que se conseguisse forçar a haver eleições em dezembro, ganharia. E eu estive lá na noite de domingo, 8 de fevereiro, quando o primeiro-ministro Alexis Tsipras abriu o parlamento com a sua versão do Estado da União. Tsipras não fica inebriado. E as primeiras palavras de Yanis Varoufakis quando cheguei ao ministério pouco antes de o irmos ouvir foram estas: “Bem-vindo ao cálice envenenado”.

Passando para as negociações diplomáticas, Cassidy conclui que Tsipras e Varoufakis “exageraram a sua atuação”. Um observador presente no local teria reparado que o governo grego ficou unido; as tentativas iniciais para marginalizar Varoufakis foram feitas e rejeitadas. E enquanto as conversações prosseguiam, os dirigentes da União Europeia Jean-Claude Juncker e Pierre Moscovici saíram da linha para dar uma ajuda, trazendo um projeto de documento construtivo na segunda-feira. Outros governos suavizaram posições. No final, surpreendentemente, foi o governo alemão a ficar dividido — em público— com o Vice Chanceler Sigmar Gabriel a dizer que a carta grega era uma base para negociar, após o ministro das Finanças Wolfgang Schäuble dizer que não era. E isso levou a Chanceler Angela Merkel a fazer um telefonema desanuviador a Alexis Tsipras. Talvez a manobra tenha sido encenada. Mesmo assim, foi Schäuble quem recuou no fim. Parece que nada disto chamou a atenção de Cassidy.

Por fim, nas vésperas destas conversações, não teria o lado grego entendido que lhe faltava poder negocial, dando — como escreve Cassidy — toda a vantagem a Schäuble mal “ele percebeu que Varoufakis não podia jogar a carta Grexit”? Em boa verdade os gregos nunca tiveram a intenção de jogar nenhuma carta, nem e fazer bluff, como Varoufakis escreveu no New York Times e como eu o escrevi dois dias antes das eleições no Social Europe:

“Que poder negocial tem a Grécia? Evidentemente, não muito; o armamento pesado está do outro lado. Mas há uma coisa. O primeiro ministro Tsipras e a sua equipa podem apelar à razão sem qualquer tipo de ameaças. Então o gesto correto e moral do outro lado seria… conceder folga orçamental e garantir a estabilidade financeira grega enquanto decorrem as conversações. Se isso acontecer, então podem seguir-se negociações a sério”.

Parece que foi isto que se pasou. E aconteceu pela razão que dei no meu ensaio: no fim, a Chanceler Merkel escolheu não ser a líder responsável pela fragmentação da Europa.

Alexis Tsipras afirmou-o e bem. A Grécia ganhou uma batalha – talvez uma escaramuça — e a guerra continua. Mas a mudança política profunda que a vitória do Syriza provocou veio para ficar. Do ponto de vista psicológico, a Grécia já mudou; há um espírito de dignidade em Atenas que não havia há seis meses. Dentro em breve, novas frentes vão abrir-se em Espanha, talvez depois na Irlanda, e mais tarde em Portugal, em todos eles se aproximam eleições. Não é provável que o governo da Grécia se afunde ou vá sucumbir nas negociações que se aproximam, e com o tempo este espaço de manobra que foi ganho neste primeira escaramuça vai ficar mais evidente. Daqui por um ano a paisagem política europeia pode ser bem diferente da que parece agora.

Artigo de James Galbraith publicado no portal Social Europe. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.